18/09/2011

eric baret - le seul désir / dans la nudité des tantra

(tradução e adaptação por nc)


algumas palavras do vigário de thuringe, prior de erfurt, meister eckhart, dirigidas por este aos seus "filhos espirituais" que lhe colocavam todo o tipo de questões quando se reuniam para a refeição da noite

(citado por eric baret)

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os homens dizem: "gostaria tanto de viver a piedade e o fervor que os outros parecem viver, estar em paz com deus como os outros estão, ser verdadeiramente pobre". ou, ainda: "o que quer que eu faça e onde quer que eu esteja, nunca estou satisfeito. gostaria tanto de estar longe de casa, dos meus afazeres, num mosteiro ou num local recolhido..."

na verdade, tudo isto és tu e nada mais, a tua própria vontade, que segues constantemente mesmo sem te dares conta disso. quer o admitas quer não, nunca um descontentamento surge em ti que não seja criação tua

entendamo-nos bem: fugir disto, dirigirmo-nos àquilo, evitar estas ou aquelas pessoas, buscar um modo ou uma ocupação, não é mais que a tua agitação. a causa das tuas dificuldades não está nas coisas, mas em ti nas coisas. donde, olha primeiro para ti e larga-te! na verdade, enquanto não te libertares do teu querer, podes fugir à vontade, mas encontrarás obstáculos e inquietudes por todo o lado

buscar o que quer que seja nas coisas exteriores, a paz, um local de retiro, a sociedade dos homens, uma forma de actuar, nobres escritos, o exílio, a pobreza ou o abandono de tudo e todos, qualquer que seja a suposta grandeza que aí adivinhemos, tudo isto é nada, conta para nada, não nos dá nada - muito menos a paz. uma busca deste teor não conduz a parte nenhuma: quanto mais buscamos desta maneira, menos encontramos o que quer que seja; uma vez tomado um caminho falso, não fazemos mais que afastar-nos, mais e mais, a cada dia

que fazer então? antes de mais, abandonar-se a si próprio e, por extensão, abandonar todas as coisas. na realidade, aquele que renuncia a um reino, que pretende largar o mundo mas conservando-se a si próprio, não renuncia a nada. mas o homem que renuncia a si próprio, o que quer que mantenha, honras, riquezas ou outras, renunciou a todas elas

olha, vê e, aí onde te encontras, renuncia a tudo. eis o mais elevado

dá-te conta de que jamais alguém se abandonou o suficiente ao ponto de não encontrar ainda mais por onde se abandonar. começa, portanto, por aí, morrendo para a acção, é lá que encontrarás a verdadeira paz, em nenhum outro sítio

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saber que a paz não se encontra no mundo mas no olhar de paz que mantemos sobre o mundo (...) que a alegria nunca é para amanhã: ela é hoje ou não será nunca


jacques lusseyran "o mundo começa hoje"

não há criatividade senão na ausência de intenção, na ausência de expectativa. qualquer projecto tem como consequência reter-nos na memória e, aí, deixa de acontecer acção, apenas reacção. passa a haver só repetição. viver sem projecto é ser criativo, pela tomada de consciência de não haver nada a cumprir, nada em que se tornar, apenas presença, de instante a instante

sobre o desejo:

o problema não está no desejo mas nas histórias que construímos em torno dele. quando o desejo se liberta das imagens que lhe colamos, permanece um verdadeiro desejo: o desejo da vida

a vida contém demasiado movimento para que possamos pensá-la, é demasiado bela para que sobre ela façamos projectos. todos os projectos são medíocres. querer este homem, esta mulher, esta religião... porquê privarmo-nos do resto? há que querer tudo! querer coisas específicas é perder o todo, o desejo específico impede a criatividade, a criatividade está no não-desejo - é aí que ela vem ao nosso encontro!

um pintor que quer pintar não consegue pintar. mas ele pode colocar-se em estado de disponibilidade. nessa disponibilidade, da intuição, surge a execução da pintura. querer ser criativo é uma falta de criatividade, significa querermos separar-nos do universo para sermos criativos! querer ser criativo é uma falta de escuta. o querer bloqueia a criatividade

quando deixamos de pensar, recebemos algo que nos ultrapassa. quando pensamos, quando tentamos ser criativos, apenas repetimos tudo aquilo que já sabíamos

o poeta é alguém que sabe calar-se. nesse silêncio, ele ouve a poesia e escreve o que escuta. a criatividade nasce do silêncio, não vem do pensamento

a obra de arte é, por si própria. porque ela provém da própria criatividade, ela situa-se além da compreensão. querer compreender um objecto artístico é permanecer na memória e reduzi-lo às categorias do conhecido. não há que compreender a pintura, a música, a dança, a arquitectura, elas provêm de além do pensamento e irradiam humildade

da mesma forma, a vida é uma obra de arte em que todas as possibilidades se apresentam - sem técnica! a técnica não é mais que memória. darmo-nos conta, a cada instante, de que estamos constantemente no exercício da técnica, que procuramos vencer na vida, que tentamos ser criativos. sem mais, de forma clara, sem juízo, constatar que estamos permanentemente em pretensão, a saber o que é certo e errado, e que nem sequer conseguimos ser de outra maneira

a vida é emoção. viver essa emoção de foma clara. nós não estamos na emoção, é ela que acontece em nós. deixar a tristeza, o medo, a avidez, o desejo, visitarem-nos. eles são carícias, algo se liberta por via deles. mas sem técnica, projecto, futuro
apercebermo-nos de que estamos constantemente a impor ao nosso corpo, ao nosso psiquismo, ao que nos rodeia, uma ideia - "seria melhor assim" - ver a nossa postura de ditadores. quando deixamos o nosso psiquismo e o nosso meio ambiente ser o que são, eles revelam-se e surge uma clareza, surge acção. diferente de ter medo e pretender deixar de ter medo, sentir-se agitado e querer estar tranquilo, por aí fora - porque aqui começamos a tentar valer-nos da técnica e entramos no projecto, no adiamento, na projecção da memória e do conhecido no futuro

sobre a cidadania:

quando deixo de carregar às minhas costas com as chaves para o mundo, quando deixo de transportar as soluções para a vida do vizinho ou para o ambiente, ou para o governo, para o corpo, para o psiquismo, fico disponível para o que se me apresenta aqui, no imediato: a clareza

dela deriva, naturalmente, uma utilização funcional do nosso organismo. não um uso para qualquer coisa mas por qualquer coisa, agente, não objectivo. impossível a noção de um fim, o "fim" é a vida, a cada instante, sem escolha, sem técnica. estamos condenados a ser felizes... agora! - não no futuro, quando se reunirem as condições que constantemente reeditamos e enunciamos como necessárias

quando vivemos na intenção, não podemos ocupar-nos da nossa família. ocupamo-nos apenas de nós próprios, servindo-nos da nossa família para tentarmos garantir a nossa segurança. utilizamos a nossa mulher para obtermos prazer, os filhos para nos sentirmos felizes, o trabalho para encontrarmos uma identidade. não realizamos a actividade de que o país, por hipótese, necessita, ocupamos a função que convém ao nosso esquema. não fazemos o que é correcto para com a nossa mulher, fazemos o necessário para que a nossa mulher faça o que nós queremos. não agimos com os nossos filhos duma forma justa, empurramo-los para o "sucesso" (nos nossos moldes) porque isso nos satisfaz pessoalmente. a acção que emana do dinamismo duma personalidade nunca é funcional, ela traduz-se na manipulação auto-gratificante da realidade ao redor num controlo e cobrança constantes. a realidade torna-se, assim, um instrumento para satisfazer o próprio, para garantir segurança

a profissão, o casamento, a casa, vividos como um casaco adequado: quando o tamanho e o corte do casaco são os correctos, não sentimos que o trazemos vestido, se alguma zona dele "se manifesta", não devemos comprá-lo. o mesmo para um trabalho, o nosso local de residência...

a aprendizagem faz-se por mimetismo e essa via tende a traduzir-se em competência. por extensão, quando fazemos bem qualquer coisa, sentimo-nos contentes e, geralmente, acabamos por conseguir financeiramente sustentar-nos com essa actividade. podemos colocar-nos questões vocacionais mais ou menos estéreis e periféricas mas o que aprendemos por convivência pode bastar a uma vida laboral funcional

numa sociedade como a nossa em que aprendemos tardiamente o nosso trabalho, as capacidades ficam limitadas, duma forma geral, ao plano técnico e conceptual. aí, incapazes de exprimir o que quer que seja de criativo, podemos tornar-nos agentes imobiliários, terapeutas, homens políticos ou gurus...

mas, ainda aqui, o problema é essencialmente de natureza psicológica: num espírito livre de preconceitos, se nos sentirmos músicos e tivermos que trabalhar numa fábrica, permaneceremos músicos pelo coração, agindo como operários, sem qualquer contrariedade

em termos práticos, quanto mais vamos ficando livres da ficção de nos julgarmos qualquer coisa de objectivo, mais haverá facilidade de adaptação a qualquer cenário particular - não exigimos ao nosso trabalho que seja agradável. encaramo-lo duma maneira funcional. nesse instante, dá-se uma descompressão. e porque ela ocorre, a complexidade, a beleza, a justificação profunda do nosso trabalho naquele momento - que, até então, por preconceito, julgávamos medíocre e desinteressante - vai apresentar-se. então, podemos subsistir felizes em qualquer actividade. o nosso corpo poderia preferir deitar-se mais cedo, trabalhar menos, mas não há ali um problema. não há conflito psicológico, não há patologia. pode haver conflitos funcionais mas sem ramificações psicológicas. eles não existem fora do instante imediato e não deixam traços no nosso psiquismo, deixa de haver a possibilidade de nos sentirmos sufocados pelo ambiente ao redor

regressando ainda ao exemplo do casaco: não o devemos sentir, não devemos sentir psicologicamente o nosso trabalho, ou o nosso cônjuge ou a nossa casa, não devemos sentir nada! quando não sentimos mais nada psicologicamente, aí sentimos verdadeiramente!

sobre o silêncio:

não podemos dizer o que é o silêncio. mas podemos afirmar que o silêncio é aquilo que queremos profundamente, aquilo de que sentimos nostalgia. as nossa tentativas no sentido de obter isto ou aquilo, na verdade, testemunham, de facto, essa nostalgia do silêncio

todos os desejos são uma nostalgia da ausência de desejo, ausência esta que é uma outra forma de designar o silêncio, a tranquilidade profunda

no plano relativo, o silêncio mental é um reflexo do verdadeiro silêncio

esse silêncio último pode ser vivido em simultâneo à actividade mental

da mesma forma, o mental pode estar silencioso e o silêncio profundo permanecer desconhecido

nesse sentido, o silêncio mental, o silêncio do mundo, não são temáticas do shivaísmo cachemiriano - como uma porta, o silêncio mental abre para qualquer coisa, mas não é a porta que nós procuramos

isso sobre o que o silêncio mundano pode abrir não é uma mulher, nem um automóvel vermelho, nem mesmo o silêncio, nem mesmo a felicidade: não há palavras que o descrevam! não provém mais da inactividade que da actividade mental, mas este pressentimento reflecte-se num espírito tranquilo. o espírito tranquilo não cria o silêncio mas torna-se-lhe disponível, e o êxtase que este recebe dele preenche-o mais do que qualquer objecto

a poesia conduz a esse silêncio, tal como a música, a arquitectura, o teatro, mais que quaisquer explicações, discursos ou afirmações

por ser difícil pressentir este reflexo num espírito agitado, pode até afirmar-se como apropriada a atitude de disponibilização do corpo e do espírito. não que isto seja necessário, mas tal pode impôr-se, isento de qualquer intenção de apropriação na investigação da disponibilidade mental e corporal

a sensorialidade é o que vai mais longe no pressentimento do silêncio. o aroma da terra, os uivos dos coiotes no novo méxico, o som de uma serpente a deslizar na areia, a visão de uma pedra ou de um caixote de lixo, a sensação da água a escorrer na pele, conduzirão sempre ao silêncio mais que qualquer reflexão alguma vez o permitiu. aí não há senão abertura. uma discussão não pode conduzir ao silêncio. ela pode, na melhor das hipóteses, como acontecia com sócrates, levar a uma percepção dos limites do mental. quando o mental constata os seus limites, torna-se mera função

todas as compreensões fazem referência àquilo que a pessoa já sabe. pouco a pouco, o mental vai perdendo a sua pretensão de compreender o que o ultrapassa. damo-nos conta de que não podemos pensar um ser humano, não podemos pensar a verdade, não podemos pensar a alegria, não podemos pensar um fio de erva. aí, o mental perde a sua pretensão e transforma-se num instrumento, como as pernas. quando temos necessidade de discriminar, servimo-nos do pensamento. mas deixamos de utilizar o mental em busca da verdade

eis a marca de uma verdadeira inteligência: utilizar o pensamento apenas para aquilo em que ele é necessário. a busca da verdade não tem qualquer conexão com a reflexão. o pensamento serve, ao fim e ao cabo e apenas, para exprimir os seus próprios limites

no mesmo sentido, as vias progressivas põem a tónica na ideia de permanecer aberto. a via directa, porém, dirige-se à abertura, sem mais. a abertura não depende do facto de se estar ou não aberto. quando a abertura é pressentida, estamos passivos e ela prevalece. tornar-se aberto é uma actividade. qualquer intenção de abertura fixa a pessoa na ideia de estar ou tornar-se aberta: o ser aberto, o yogi, o sábio! - todos estes esforços nos distanciam da abertura, que é não ser. na via directa, não é colocada nenhuma ênfase no facto de ficar aberto, mas sim na própria abertura: nesta perspectiva, o yoga é uma expressão da liberdade, não um meio para a atingir

no momento em que me apercebo de que começo a pretender que sei o que é melhor, há que aperceber-me igualmente, desde logo, de que é impossível sabê-lo, que não posso saber o que é melhor para mim, para os meus filhos, para o que me rodeia, para o mundo. não posso saber se a paz ou a guerra, a saúde ou a doença, os aparentes sucessos ou derrotas são ou não convenientes ao que está à minha volta. no instante em que essa evidência me surge há tranquilidade, há ressonância com o que está ali, no imediato. é um não-projecto. o projecto é apenas aquilo que acontece ali, no instante. pressentir-se sem projecto, eis o que podemos chamar meditação

em contrapartida, querer sentar-se para ficar tranquilo quando alimentamos um sem número de projectos para os nossos filhos, para a nossa saúde, para o nosso corpo, é impossível. é inútil dar-se ares de tranquilidade. não "acomodemos" a meditação. evitar a mania de meditar todos os dias a certa hora. é um insulto! é um pouco como se nos propuséssemos amar o nosso filho todos os dias de tal a tal hora. ou meditamos ou não meditamos. amamos ou não amamos. não são actividades!

levantar-se de manhã e ir meditar não tem qualquer sentido excepto se o fizermos como quem vai à casa de banho: fazemo-lo sem qualquer veleidade de nos iluminarmos com o procedimento mas simplesmente porque nos é natural, como lavar os dentes, passar água pela cara, etc, atitudes comuns da vida quotidiana

o jean klein dizia que meditar voluntariamente é como querer não apanhar o combóio: se não queremos apanhar o combóio, não há nada a fazer para isso, simplesmente não o apanhamos, não nos dirigimos à estação à hora certa para o deixar ir!

isto lembra-me um amigo meu que se tornou um guru famoso e sobre quem um outro amigo comentava: "eu sinto que ele atingiu um certo silêncio mas o silêncio não o atingiu a ele!" o que me soou particularmente inspirado como apontamento sobre esse amigo "iluminado" - se meditamos com um objectivo, com um horário, poderemos lograr alguma forma de silêncio mas o silêncio provavelmente não nos tocará jamais

sentarmo-nos em silêncio simplesmente pela alegria de nos sentarmos em silêncio! - na índia, todas as noites ou todas as manhãs, as pessoas procedem a rituais à frente das suas casas. se lhes perguntarmos porque o fazem, elas não entendem sequer a pergunta. fazem-no porque há que fazê-lo, está na natureza das coisas fazerem-no. não há qualquer razão para limpar um templo ou uma igreja, para dançar ou praticar yoga: é a vida que faz como que sintamos o impulso de limpar o templo, de praticar yoga ou outra arte qualquer, casarmos, divorciar-nos... não há nada de intrínseco ali, não nos traz nada. faz-se pela alegria de viver. familiarizemo-nos com esta capacidade de agir sem razão...

meditar intencionalmente pode separar-nos da verdadeira meditação que são, ao fim e ao cabo, momentos involuntários na vida em que somos simplesmente, convidados ao silêncio

na verdade a pesquisa impõe-se, o pressentimento da beleza e da perfeição buscam-se a si próprios, por si próprios, sem terem que ser promovidos

num certo plano, podemos afirmar que a prática do yoga prepara o corpo para que ele possa suportar a explosão da visão, mas sem tal se constitua como um objectivo - não é um processo cumulativo mas um estado de admiração perante a exaltação da sensibilidade e as impensáveis possibilidades sensoriais que, por sua vez, vão cedendo lugar a uma admiração sem objecto. esquecer o que se admira, sem mais espaço sequer para um sujeito admirador. o brilho do encantamento consome, como chama, todas as formas. e isso... somos nós!

toda a nossa actividade física e psicológica é um dado à partida. aquilo que parece um desenvolvimento voluntário é, na verdade, uma concretização inevitável. um atleta de corrida não se torna um grande campeão por se ter intensamente treinado todos os dias. ele correu todos os dias por ser um grande campeão e esse tornou-se naturalmente o fio condutor da sua expressão. qualquer outro poderia ter seguido o mesmo programa de treino sem contudo lograr tornar-se um grande campeão

é a emoção de base que cria a expressão. não é a actividade que cria a qualidade. a qualidade precede a actividade. somos músicos e, depois, aprendemos música. aprender música não gera grandes músicos. possivelmente o músico não sabe disso no início...

o que fazemos é a expressão do que é potencial em nós. o que fazemos não cria o potencial

quanto mais nos situamos no não projecto, mais activos ficamos. ter um projecto é uma forma de passividade. torna-nos repetitivos. deixamos de ver tudo o que não seja o nosso projecto. o mesmo para a reactividade: ela é passiva, é a repetição constante do mesmo esquema

o alcoolico não saboreia o vinho. quando temos necessidade de qualquer coisa, não conseguimos verdadeiramente saboreá-la. para saborear o vinho há que estar livre do vinho. aí, por fim, deixamos o vinho falar

se dermos uma iguaria especial a alguém esfomeado, essa pessoa não vai tomar-lhe o gosto, vai engolir. é o facto de não necessitarmos de comer que nos faz conseguir saborear

da mesma forma, quando não temos necessidade de tocar ou de sermos tocados é que podemos, verdadeiramente, tocar e ser tocados. caso contrário, o contacto fica na pele, não passa dali, não é um verdadeiro toque. quando as mãos estão livres, tocamos de outra forma

na prática do yoga, há que estar livre do corpo para começar verdadeiramente a trabalhar o corpo, sem projecto, sem direcção, sem objectivo

na vida, não esperar nada do que acontece, pela compreensão profunda de que o que procuramos não está no que acontece. o que procuramos é o que somos. não podemos encontrá-lo num automóvel, num marido, numa criança, num corpo, numa religião, ou seja, deixamos de utilizar a beleza da vida para nos encontrarmos nela. quando paramos de tentar utilizar a situação para nos encontrarmos, ficamos disponíveis à situação, podemos funcionar harmoniosamente com os acontecimentos da vida

não podemos passar a vida a mudar o nosso modo de funcionamento. actuamos de acordo com aquilo que se nos apresenta, na legalidade, na ilegalidade... de qualquer forma a vida não se situa aí, trata-se apenas de um uniforme. não podemos passar a vida a mudar de vestimentas a ver se ficamos melhor como santos, ou demónios, ou isto ou aquilo. o traje que trazemos é o certo e, ao apercebermo-nos do facto, deixamo-lo estar. até pode ser que ele mude, pelos acasos da existência. mas deixamos de nos ocupar com a ideia de nos tornarmos ricos se somos pobres ou vice-versa. se o acaso da vida decidir de outra maneira, vamo-lo acompanhando

sempre que se nos impõe mudar de aparência há que fazê-lo! mas a certa altura deixamos de ter tempo ou disponibilidade para sermos outra coisa que não aquilo que somos a cada instante. não temos tempo para nos tornarmos outros, deixa de ser estimulante ir por aí. conservamos as maleitas, as manias, tudo o que nos caracteriza. e damo-nos conta de que as nossas limitações não nos limitam, o nosso contexto não tem eco sobre nós. é nesse sentido que é possível afirmar que há que deixar que existam criminosos, padeiros, sem-abrigo, etc. no sentido de não ficar colado à sua "farda"

no plano humano, a criminalidade destina-se a seres de excepção. é dífícil, como é difícil lidar com as acções na bolsa. exige resistência neurológica e um psiquismo de grande qualidade. pouca gente consegue arriscar com facilidade a sua vida como o soldado, o nadador salva-vidas ou o bombeiro. pouca gente tem a capacidade de pegar numa arma perante um polícia armado. o que tão pouco significa que haja que o fazer para demonstrar o que quer que seja. trata-se apenas da constatação da necessidade de características inatas que não se encontram em toda a gente

na verdade, aquilo que fazemos, tal como aquilo que pensamos, não tem a mínima importância, o que nos permite, precisamente, a certa altura, deixar de perder tempo a ocupar-nos disso! aí, o que é orgânico apresenta-se-nos. sermos budistas, ateus, casados, viúvos, pobres, padeiros ou outra coisa qualquer não tem qualquer importância. a ressonância do essencial não se encontra aí. e quando essa ressonância é percebida, ela manifesta-se também nesses planos, mas não a conseguimos fazer derivar dessas actividades. há que aceitar o nosso terreno. não em forma de resignação mas de acolhimento, viver verdadeiramente com aquilo que se nos apresenta

há pessoas que não conseguem suportar a autoridade e vivem fora da lei. é assim, tão simples quanto isso. não ficam excluídos da tranquilidade última, pelo facto. uns conseguem seguir as leis, outros não. não há sequer escolha ou mérito aqui no meio, é puramente biológico

e isto, por todas as vias: darmo-nos conta, a certa altura, de que aquilo a que chamávamos "prazer egoísta" acaba por ser, como tudo o resto, busca da felicidade e que nada é prazer egoísta. todas as formas de busca do prazer provêm da aspiração à tranquilidade, as diferenças são formais e secundárias. ir dançar, ir à igreja assaltar um banco ou ir praticar yoga, provém da mesma motivação: a busca da tranquilidade. certas actividades parecem mais profundas e adequadas que outras mas tudo isso são aparências. fazer por ganhar muito dinheiro ou procurar ser um grande yogi vai dar ao mesmo (e, às vezes, até coincide!)