19/08/2012

namaste!



vivemos numa época tremendamente mecanicista, habituados a encontrar explicações para tudo

às vezes chega a ficar a impressão de que o grande fulcro da vida humana é compreender como o mundo funciona

por momentos desejaria que os naturalistas e os seus dedicados fotógrafos deixassem em paz os animais das florestas tropicais ou do ártico, preservando a sua privacidade

vem-me à memória a chamada de atenção de ralph waldo emerson para o facto de se tornar nocivo tornarmo-nos demasiado "entendidos" sobre o funcionamento interno do corpo

a ânsia da ciência na exploração do céu retirou-lhe parte considerável da magia e fantasia que outrora nos era possivel encontrar nele

neste contexto racionalista e mecanicista a oração parece deslocada


hildegard von bingen, meister eckhart, s. joão da cruz, sta. teresa d'ávila devotaram-se à vida interior, a essa zona da experiência religiosa em que o mistério é abordado cuidadosamente, vagarosamente e, por vezes, dolorosamente

propunham a receptividade mais do que a actividade e reconheciam a importante ligação entre o modo de vida quotidiano e a preparação para a contemplação


o místico pode parecer absorvido em si próprio mas não é forçoso que assim seja: a vida interior, tal como a vida mundana, pode abrir para um universo de mistério onde o ego dificilmente tem lugar

a vida interior não significa necessariamente a vida pessoal

já não somos nós que partimos em busca do silêncio, a quietude apodera-se de nós e conduz-nos - a questão não é progredir e refinar o controlo mas rendermo-nos ao silêncio subjacente em nós

em linguagem psicológica, poderíamos chamar a isto um elemento de "não-ego" na contemplação

o nosso mundo está repleto de "ego", isto é, de estratégias de análise, entendimento e manipulação de si próprio e da realidade

o campo da psicologia - pela ênfase na compreensão racional e utilitária da vida - constitui-se, frequentemente, como um grande empreendimento da autoria do ego, dirigido ao ego e pleno de ego

a religião, igualmente, foi profundamente afectada pelas filosofias da nossa época, maioritariamente dirigidas pelo ego, mesmo quando os elementos "egóicos" ficam subtilmente escondidos ou implícitos


william blake dizia que o corpo era a alma apreendida pelos sentidos

o corpo não precisa da mente para se justificar

não é separado dela e, como tal, não lhe é subordinado

não é desprovido de vida e significado, não carece de explicações

neste sentido quando adoptamos gestos, oramos

nada mais tem que ser acrescentado nem entendido nem justificado


thomas moore

prefácio de "sadhana - a way to god" de anthony de mello

(trad. e adapt. nc)

_____________________________________________



"o corpo é o meu templo, asana é a minha oração"

b.k.s. iyengar

_____________________________________________


parafraseando eric baret:


a maior parte de nós não sente o corpo, apenas pensa o corpo

o corpo, tal como é vulgarmente designado, é um conceito, uma abstracção

o corpo não é o corpo - a certa altura sobrevém uma maturidade que nos leva a pressenti-lo

há que estar livre do corpo para começar a trabalhar o corpo: em vacuidade plena, sem desejo, inutilmente

como saborear: só na ausência de sede se aprecia verdadeiramente um vinho

_____________________________________________


jung dizia que o homem criou a religião para se proteger de deus

no discurso de eric baret, a distinção entre prazer e alegria sugere que o psiquismo humano se serve do primeiro para se defender da segunda: o prazer como forma subtil de contracção (vizinha polar da dor) impede e vela a alegria

o prazer localiza, a alegria irradia em todas as direcções, sem centro

o prazer é periférico, projecta-se num objecto e só nele encontra sentido, a alegria é íntima e impessoal, recebe todos os objectos

no mesmo sentido, muitas escolas sistematizaram o yoga para se defenderem da sensibilidade. codificaram o corpo como estratégia de fuga à evidência - mentalmente aterradora - de que ele não existe, para lá do plano conceptual que constantemente o recria segundo o mesmo esquema

num sentido último, as escrituras são uma defesa que ruidosamente nos distancia do silêncio da tradição eterna, inscrita no éter

mas todos - religião, prazer, sistema de yoga ou de pensamento - só o são, enquanto tais, no instante em que os actualizamos mentalmente, pretendendo conferir-lhes uma forma que obscurece a sensibilidade profunda

sentir o perfume de silêncio que permeia a palavra sagrada, a alegria que o prazer mascara, a vacuidade onde corpo e asana ocorrem

nc 2011

09/08/2012

cântico espiritual




... por haberse, pues, estas canciones compuesto en amor de abundante inteligencia mística, no se podrán declarar al justo, ni mi intento será tal, sino sólo dar alguna luz general, pues vuestra reverencia así lo ha querido

y esto tengo por mejor, porque los dichos de amor es mejor dejarlos en su anchura para que cada uno de ellos se aproveche según su modo y caudal de espíritu, que abreviarlos a un sentido a que no se acomode todo el paladar

y así, aunque en alguna manera se declaran, no hay para qué atarse a la declaración; porque la sabiduría mística - la cual es por amor, de que las presentes canciones tratan - no ha menester distintamente entenderse para hacer efecto de amor y afición en el alma, porque es a modo de la fe, en la cual amamos a dios sin entenderle


san juan de la cruz

(do prólogo ao "cântico espiritual")

01/08/2012

de lá



a imagem é o silêncio da linguagem

deixa que a imagem se faça em ti como se não pudesses falar: como se sentisses a impotência de dizer seja o que for

que eu te ame - que sobre mim caia um voto de silêncio - que tu passes a ser uma imagem...

talvez o que procuremos no amor seja tocar no vazio de um corpo (quanto cuidado, porém, quanta discrição, para rodear esse vazio)

o vazio que um corpo amado liberta: como se fosse aureolado por uma luz dos abismos. a imagem em que esse corpo se tornou mostra-nos que a intimidade vazia é intocável, melhor: que esse é o lugar onde o toque desfalece

cada amante procura agarrar a alma do outro. mas um vazio não se agarra nem se toca: é o lugar onde o toque desfalece. daí a sensação de o corpo do outro se escapar por entre o nosso corpo, daí o peso dos corpos só ressurgir depois do desfalecimento de ambos

os amantes dão-se. a forma reflexiva do verbo indica que eles não trocam entre si objectos nem sobretudo o seu próprio corpo como objecto (parcial ou total). amar significa dar-se que significa dar-vazio. que não quer dizer nada - mas mostra o seu esvaziamento

ser invadido pelo vazio de um corpo até deixar de sentir o seu próprio corpo: isto define o amor como plenitude vazia

o mesmo é dizer que cada corpo amante/amado liberto é uma alma, e que ele morre nessa dádiva (porque a alma só existe na medida em que há o sentir-se a si mesmo morto, o deixar-de-se-sentir graças ao outro). e que ambos ressurgem após a dádiva: a ressurreição dos corpos é o amor - a única ressurreição

com os olhos fechados e o toque a desfalecer: assim se pressente a forma de uma alma

assim se reconhece a potência de uma imagem: esta é forte se o desconhecido que ela dá a ver se mantém irredutível a qualquer operação cognitiva

a imagem é propriamente inesquecível quando resiste à vontade de reduzi-la a um objecto de conhecimento (ou de autoconhecimento, por quem a fez ou por quem a vê)

nós nunca nos esqueceremos do que nos faz lembrar o desconhecido inato - como um assombro vitalício

quanto mais imaginamos assim, mais nos desconhecemos porque mais reconhecemos, graças à imagem, esse desconhecido (que nos precede e sucede: que se nos atravessa); o que será, de resto, um ser amado - é a minha conclusão provisória - senão uma encarnação do daimon?

conheço-te desde sempre, sei-o, e, com o mesmo saber, posso afirmar que não nos conhecíamos. a "relação amorosa" (expressão a revisitar) está para aquém do conhecer e - depois - quando se trava conhecimento (como se diz) quando se dá, por assim dizer, corpo ao desconhecido, aquela "relação" projecta-se para além desse eventual conhecer. daí que se possa amar alguém sem dele ser conhecido, reconhecendo, todavia, a sua imagem (ou, talvez primeiro, a sua voz)

a imagem mostra o que há de inominável em tudo o que vemos e quanto mais pura se mostra mais essa imagem tende a gerar, à sua volta, tanto um silêncio como um discurso interminável porquanto ela não cessa de desafiar a impotência de nomeação

deste modo, a imagem procura apenas fazer jus á realização da vida - à vida sem acréscimos de significados. volto a lispector: "quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto?" e a resposta é: não é só isto, é exactamente isto.

"só que ainda preciso tomar cuidado para não fazer disto mais do que isto, pois senão já não será mais isto. a essência é de uma insipidez pungente. será preciso purificar-me muito mais para inclusive não querer o acréscimo dos acontecimentos. antigamente, purificar-me significaria uma crueldade contra o que eu chamava de beleza e contra o que eu chamava de "eu", sem saber que "eu" era um acréscimo de mim" (lispector)

"nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair - só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz. minhas civilizações eram necessárias para que eu subisse a ponto de ter de onde descer. é exactamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. só então minha natureza é aceite, aceite com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. e é aceite a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. e já que vivê-la é a nossa paixão. a condição humana é a paixão de cristo" (lispector)


excertos retirados de:

assombra - ensaio sobre a origem da imagem

tomás maia




assombramento



porque é que fazemos imagens?

estranhamente, para que deixemos de ver e passemos a ser vistos por um olhar que nunca veremos - e que nos assombra

tomás maia

alumbramiento