19/12/2013

sin ruido


la manera que tienes
de irte despidiendo
de las cosas,
una a una,
es también la de irlas
recibiendo
para hacerlas más tuyas
y liberarte, al fin,
de ellas y de tí,
en un acto de amor

josé corredor-matheos (sin ruido, 2013)

21/11/2013

ceniza




TODO será ceniza.

ceniza.

pero ahora,
qué plenitud

todo, en vuelo

y tú,
sabiéndote ceniza,
pero ardiendo.


josé corredor-matheos

18/11/2013

chama, a palavra


a poesia deve trabalhar o desaparecimento não como o contrário do aparecimento das coisas mas como o seu avesso, como a sua ressonância interior

toda a manifestação de algo traz no seu interior o silêncio do seu desaparecimento, como uma voz que transporta o eco perdido de si mesma


nuno nabais
(prefácio de "chama, a palavra" de zlatka timenova)




pai,
vejo as tuas rugas
no meu rosto
será longo o inverno?

zlatka timenova

17/10/2013

aqui, de lá



clamor


ali, onde se ocultam os nossos segredos

poderíamos dizer que esta arte é a de expor, de desvelar, o mais belo, o mais terrível dos segredos

palavras, imagens, gestos, sons, surgem e evoluem no espaço, sem ruído

o espectador olha, ouve e embarca nesse voo como que pela fresta de uma porta ou de uma cortina de palco de onde saísse um raio de luz que lhe permite desvelar a personagem

esta encontra-se a sós consigo própria, não revela o seu segredo a ninguém, liberta, pela respiração, um segredo que já não pode guardar, inaudível porque proveniente do coração

cada espectador capta um instante do segredo, algo que inconscientemente lhe pertence

alcança, em voo, instantes íntimos dele próprio, sonho, expectativa, desejo, brecha, exaltação

trata-se de um movimento ininterrupto, nos dois sentidos, da cena à sala, um encontro, em diálogo

lentamente, cada espectador opera um regresso a si próprio, ao mais profundo do seu ser, lá, onde habita o seu próprio segredo - onde se encontra o significado do teatro e de todas as artes

o actor é um instrumento desse encontro, apenas isso, um movimento

de diferentes formas, cada espectáculo oferece ao espectador a oportunidade de um regresso a si próprio; o espectador entra no espectáculo e esquece-se de si, no final passa pelo movimento inverso

estes dois movimentos representam um abandono ao objecto (cena) e um regresso ao espectador permitindo a este último, enquanto sujeito, recuperar-se, sair da identificação, voltar a si próprio

há uma similitude flagrante entre este processo e a (arque)típica jornada mística de retorno ao sujeito, condição do conhecimento


jean klein, considerações sobre o teatro

(trad/adapt nc)

(foto: clamor de pedro ferreira, rita roberto e tomás maia)

29/09/2013

os olhos de kiarostami



no nosso dia a dia apercebemo-nos dos estados pelos quais vamos passando, não do espaço onde estes ocorrem, trazemos a tónica às nossa personalidades pouco pressentindo do que é impensável, indiscernível, inapreendível

a atenção pura, sem representações, é o espaço, a totalidade, é o que somos: tudo o que aí aparece se referencia inevitavelmente a esse fundo sem forma

a observação não profanada pelo eu não tem direcção, é virgem, expande-se e converte-se em inteligência englobante de toda a nossa sensibilidade

essa totalidade é compreensão integral

a visão é acção

acção e atenção que não são interiores nem exteriores, nem centro nem periferia, conhecem-se a si próprias quando a investigação se faz sem investigador, apenas pela constatação do que surge, são transformação: acolher e escutar sem nomear, sem qualificar, acarreta uma reorquestração imediata das energias que constituem o ser


jean klein, uma lição

(trad/adapt nc)

(foto: abbas kiarostami: five)

11/08/2013

transversal do tempo




naquilo que vulgarmente designamos busca, ou caminho espiritual, é inevitável que nos confrontemos com o desafio de observar intimamente os mecanismos que nos comandam: receptivos, abertos ao desconhecido, acolhendo tudo o que se nos apresenta

coloca-se-nos então o problema da nossa autonomia: estaremos livres de um eu e daquilo que o rodeia?

a nossa natureza essencial não se pensa a si própria, não se representa, não se liga a nenhuma característica, não é uma sensação, não tem centro nem periferia

pela compreensão de que não podemos encontrar aquilo que é, intrinsecamente, essa natureza de fundo, procuramos ficar atentos não aos objectos mas à presença na qual eles são apercebidos, permanecendo igualmente libertos da percepção destes, ainda que esta continue, espontaneamente, a ocorrer

nessa independência, deixamos de sentir qualquer possibilidade de controlo, numa assustadora ausência de suportes ou referências

há que ficar aqui, não recuar: sentir o instante em que esta liberdade se revela sem escorregar para o objecto - cuja inutilidade se nos tornou evidente - permanecendo nessa autonomia

é aí que encontramos a presença que conduz a nossa vida

(...)

a ausência de um eu acarreta, naturalmente, a ausência de um outro

trata-se de uma relação de amor, de viver na unidade

geralmente, o que é que desejamos? - ser reconhecidos, ser amados

raramente permitimos ao nosso interlocutor - ou ele a nós - a liberdade de ser

transcender a identificação com a pessoa e viver intensamente esses instantes de graça que se nos apresentam enquanto totalidade manifesta

na verdade, o que é que buscamos? - exactamente essa liberdade, que é nossa desde sempre e para sempre

para quê tentar adquirir ou atingir o que quer que seja?

compreender que basta viver não a presença ou a ausência de alguém mas a presença, tout court


jean klein (à l'écoute de soi/ trad. nc)

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neti neti

não se procurar nas expressões, não se procurar nas reacções, não se procurar nas qualidades, não se procurar nas emoções, não se procurar nas sensações, não se procurar nos pensamentos, não se procurar no corpo, não se procurar nos projectos, não se procurar nas acções, não se procurar no conhecimento, não se procurar nos objectos, não se procurar nos outros, não se procurar no silêncio, não se procurar

encontrar-se na presença onde eles acontecem

nc


presence á l'absence de soi-même

eb

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transversal do tempo









as coisas que eu sei de mim
são pivetes da cidade
pedem, insistem e eu
me sinto pouco à vontade
fechada dentro de um táxi
numa transversal do tempo
acho que o amor
é a ausência de engarrafamento

as coisas que eu sei de mim
tentam vencer a distância
e é como se aguardassem feridas
numa ambulância
as pobres coisas que eu sei
podem morrer, mas espero
como se houvesse um sinal
sem sair do amarelo

joão bosco / aldir blanc

09/08/2013

corporalidade livre






duma maneira geral, conduzidos pela imagem de um eu autónomo e delimitado, servimo-nos dos objectos na busca da segurança e da preservação dessa identidade imaginária: utilizamos o nosso automóvel, o nosso cão, o nosso marido, o nosso apartamento, os nossos filhos, a nossa profissão, o nosso corpo, para provarmos qualquer coisa, para provarmos a nós próprios e aos outros que existimos

utilizamos, pois, o corpo, como um objecto: desenvolvemos esforços para que ele se pareça com isto ou com aquilo, treinamo-lo, procuramos mantê-lo de boa saúde, alimentá-lo desta ou daquela maneira, para que ele se assemelhe à ideia que fabricámos do que é a nossa identidade, impondo ao nosso corpo o que adivinhamos que nos permitirá um melhor reconhecimento pelo meio ambiente que nos rodeia

desembocamos, dessa forma, na vivência de um corpo instrumental, um corpo explorado, escravizado

quando entendemos profundamente que não temos que nos pôr à venda, que não há necessidade de sermos certificados pelo exterior, quando começamos a pressentir essa autonomia afectiva, olhamos para o nosso cão, para o nosso automóvel, para o nosso marido, para a nossa mulher, para o nosso tapete, para o nosso corpo e vemos outra coisa, já não vemos um material para inscrever no nosso cartão de visita, já não vemos uma marca para nos comercializarmos, a nós e aos outros, vemos uma imensidão, vemos a vida, vemos significando que escutamos

aí vamos verdadeiramente ver o cão e o que é que será mais funcional para ele, o mesmo irá acontecer em relação ao tapete, ao marido ou ao automóvel, não para impressionar o vizinho quando ele aparecer mas por evdência do que lhes é mais adequado

nesse momento, ao ser escutado, o corpo, tal como os outros objectos, assume naturalmente o seu lugar, permitindo-nos descobrir as nossas capacidades, talentos, facilidades ou dificuldades, e passamos a poder deixar esta sensibilidade exprimir-se vivamente, não em função do que gostaríamos, não em função do que isso nos possa trazer, mas de acordo, simplesmente, com o que se apresenta a cada instante

esta forma de estar presente ao corpo torna-se por vezes surpreendente e incompreensível para o exterior, visto que deixamos de escutar por sobrevivência, por comércio, escutamos por amor

apresentam-se, então, outras redes de frequência, outras redes de escuta, de carácter muito mais íntimo, muito mais profundas do que a superficialidade dos conceitos de conforto ou de desconforto, de saúde ou de doença, funcionalidade ou disfuncionalidade, frequências que não são afectadas por aquelas, são, antes, essas polaridades que participam delas, mas naturalmente: a dor e a doença não têm que ser um erro, a saúde e o conforto não são forçosamente um bom sinal, elas são o que são

apenas numa mente sem opiniões podemos entender de forma não conceptual o que são consonâncias e dissonâncias, do ponto de vista comum, a sua compreensão torna-se redutora

ocorre uma forma de aprofundamento, o corpo apresenta-se como um mistério: como o nosso cão, como o nosso tapete, como o momento em que engolimos um trago de água - o que é que pode haver de mais extraordinário que beber um gole de água ou poder inspirar, ou sentir um dedo da nossa própria mão, ou contemplar uma folha que é levada pelo vento?

a profundidade e a plenitude estão em tudo e, quando deixo de tentar saber e compreender, elas vão-se revelando duma forma cada vez mais vasta e menos conceptual

é o verdadeiro início duma exploração íntima em que nos surge também a evidência de que sentir isolamento é viver à superfície dos seres e das coisas, é viver no pensamento

quando começamos realmente a sentir o corpo, torna-se impossível sequer conceber o isolamento, é impensável: não há senão contacto, o corpo não é outra coisa senão contacto, o tocar é constante, estamos permanentemente imersos na experiência de tocar, é aí que encontramos o afecto, a conexão profunda, que não são uma ligação psicológica, são um vínculo que se faz pelo coração, incompreensível para a mente

num corpo vivo, numa sensibilidade desperta, podemos ter um contacto profundo com alguém que nem sequer está objectivamente presente, um contacto eminentemente físico, mas não o físico tal como a mente o concebe

aquele que o vive sente esse laço como tal, mas trata-se de uma ligação que não precisa de ligar, apenas re-une, é uma corrente de energia como aquela que relaciona certas árvores, certos animais, certos espaços, certos países, certas culturas, não são laços imaginários, são ressonâncias

deixamos que nos cheguem todas essas formas de reverberação que não pertencem sequer ao passado, o passado apenas existe enquanto conceito, a ressonância passa-se no presente: quando, por exemplo, tomamos contacto com uma espada que foi utilizada em rituais específicos, eles encontram-se presentes, não são passados

antes de encontrarmos uma espada ritual, antes de encontrarmos um pai ou um filho, antes de encontrarmos um marido ou um amante, um amigo ou um inimigo, a linha já se encontra lá

numa subordinação a estas linhas, o encontro dá-se, no instante, naturalmente, mas o que está lá essencialmente é a linha subjacente a ele, pelo que, a exteriorização não tem que acarretar, sequer, um dispêndio de energia 

os seres humanos e os objectos fazem parte duma imensa cartografia que tem as suas regras

da mesma forma, a prática das posturas de yoga constitui-se como celebração de um regresso a formas fundamentais arquetípicas, não como atingimento ou conquista de configurações aleatórias, alheias ao corpo

a postura de yoga pré-existe no espaço, o corpo físico escoa, até se fundir nela

não há nada que nos seja verdadeiramente exterior, surge uma ligeireza, não há nada que nos seja alheio, tudo o que encontramos é a nossa intimidade

eric baret

(trad e adapt nc)


08/08/2013

cascatas




há cascatas de vento vento vento
que correm me correm ocorrem
cascatas cataratas decorrem escorrem no tempo
cascatas cantam captam tempo em catavento
canto que corre vento que corre acorre ocorre
ao corpo que escorre água água água ao vento que canta

há cascatas de vento e água que ocorrem no corpo
barro da terra terra terra terra e acorrem
ao corpo luz da areia dourada sereia ateia
traço passo na areia que corre canta ao vento
cascata de mar e mar e mar o mar a mar amar amor
e cor e cor e dor dor dor não morre não dorme
e corre e corre ocorre no tempo

há cascatas de vento e mar e terra
e sopro de água na areia sereia
ser de areia encandeia a praia
ateia fogo fogo fogo fogo
cascata de luz e mar e sol sol sol
cego céu cego sol céu céu céu sol e vento
águia plana alta estática cascata
catarata de vento que corre corre corre
escorre veio de luz acorre passa
veia de mar ser da areia sereia ateia
cascata de fogo canta canta canta
chama chama chama chama chama
incendeia o vento que me percorre

nc 2013

(foto: tiago cunha)

02/08/2013

solilóquio



o que és distrai-me do que dizes

lanças palavras velozes,
enfeitadas de risos,
convidando-me a ir
aonde elas me levem

não te atendo, não as sigo:
fico a olhar para os lábios
de onde nasceram

olhas de súbito para longe
fixas ali o olhar, não sei em quê,
e desde logo a tua alma afiada
como flecha se solta em sua busca

não olho para onde olhas
fico a ver-te olhar

e quando desejas algo
não penso no que tu queres
nem o invejo: é menor

desejas o que queres hoje,
esquecê-lo-ás amanhã
por outro querer

não. espero-te para lá
dos fins e dos princípios

no que não há-de passar me fixo.
no puro acto do teu desejo,
querendo-te

e já não quero outra coisa
senão ver-te a ti querer


pedro salinas

("la voz a ti debida", 1933, trad. nc)

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what you are looking for is what is looking

wei wu wei

16/07/2013

silogismos


loucura significa fugir à banalidade, ver mais longe, sentir mais intensamente

nós temos pena dos homens-robot quando eles têm pena de nós, homens-loucos

mas se somos nós os que vemos mais longe e sentimos mais intensamente

somos nós os que temos verdadeira consciência do porquê da nossa pena


t p

08/06/2013

focusing on water



água de histórias

uma história é como água
que aquecêssemos para um banho

transporta mensagens
entre o fogo e a nossa pele,
fá-los encontrarem-se e lava-nos!

poucos são os que conseguem
sentar-se no meio do próprio fogo
como uma salamandra ou abraão
- precisamos de intermediários

sensações de plenitude espreitam
mas faz-nos falta algum pão
para as trazermos

a beleza cerca-nos
e ainda assim, por vezes, é-nos necessário
passear num jardim para nos apercebermos dela

o próprio corpo em si é uma tela
que guarda, e em parte revela,
a luz que internamente fulge
por trás da nossa presença

água, histórias, corpo,
tudo o que fazemos, são mediadores
que ora escondem ora mostram
o que está oculto

estudemo-los,
disfrutando da limpeza que ocorre
por via deste segredo
que por vezes entendemos
e outras vezes não

jalalu'l-din rumi (trad. nc)

foto: tiago cunha

06/06/2013

this is the time and this is the record of the time



  




from the air

good evening, this is your captain
we are about to attempt a crash landing
please extinguish all cigarettes
place your tray tables in their
upright, locked position
your captain says: put your head on your knees
your captain says: put your head on your hands
captain says: put your hands on your head
put your hands on your hips, heh heh
this is your captain - and we are going down
we are all going down, together
and I said: uh oh, this is gonna be some day
standby
this is the time
and this is the record of the time
this is the time
and this is the record of the time

uh-this is your captain again
you know, i've got a funny feeling i've seen this all before
why? 'cause i'm a caveman
why? 'cause I've got eyes in the back of my head
Why? it's the heat
standby
this is the time
and this is the record of the time
this is the time
and this is the record of the time

put your hands over your eyes
jump out of the plane
there is no pilot
you are not alone
standby
this is the time
and this is the record of the time
this is the time
and this is the record of the time


laurie anderson
big science, 1982







o superman (for massenet)

o superman
o judge
o mom and dad
mom and dad

o superman
o judge
o mom and dad
mom and dad

hi! i'm not home right now, but if you want to leave a
message, just start talking at the sound of the tone

hello? this is your mother
are you there? are you coming home?

hello? is anybody home?
well, you don't know me, but I know you
and I've got a message to give to you

here come the planes
so you better get ready, ready to go
you can come as you are, but pay as you go
pay as you go

and i said: ok, who is this really?
and the voice said:
this is the hand, the hand that takes
this is the hand, the hand that takes
this is the hand, the hand that takes

here come the planes
they're american planes
made in america
smoking or non-smoking?

and the voice said: neither snow nor rain nor gloom
of night shall stay these couriers from the swift
completion of their appointed rounds.

'cause when love is gone, there's always justice
and when justice is gone, there's always force
and when force is gone, there's always mom - hi mom!

so hold me, mom, in your long arms
so hold me, mom, in your long arms
in your automatic arms
your electronic arms
in your arms
so hold me, mom, in your long arms
your petrochemical arms
your military arms
in your electronic arms


laurie anderson
big science, 1982








born, never asked


it was a large room
full of people
all kinds
and they had all arrived at the same building
at more or less the same time
and they were all free
and they were all asking themselves
the same question:
what is beyond that curtain?

you were born
and so you're free
so happy birthday



laurie anderson
big science, 1982

21/05/2013

satya 2




herzog: marc anthony, do you see a whole universe in this one single drop of water?

marc: i cannot hear what you say for the thunder of what you are


werner herzog - short dialoge from the documentary "the white diamond"

12/05/2013

marguerite yourcenar - sadhana 3



excertos do caderno de notas: "meditações num jardim"

(surgem na forma de exortação - o "outro", a quem se dirigem, assume o lugar de "alter-ego" da autora)
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aconselho-te a orar todas as manhãs ao despertares, e à tua maneira

dessa forma, sairás mais facilmente do sonho, se te for necessário

as minhas orações variam

acontece-me por vezes repetir a frase admirável do salmo: "este dia é um dia que o senhor fez"

pode também ser bom orar pelas criaturas que morreram ou sofreram enquanto dormias

quanto às "boas intenções", desconfia desses pavimentos escorregadios

coloca-te, antes, num estado em que não te sejam necessárias boas intenções
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fora destas ("boas intenções") considerar a simples reafirmação de propósitos, a recitação, por exemplo, dum sutra budista que tenhas adaptado à tua medida e para teu uso: "por muitas que sejam as minhas más inclinações vou combatê-las; por muito difícil que seja o estudo vou dedicar-me a ele; por muito inacessível que seja a sabedoria vou tentar atingi-la; por inumeráveis que sejam as criaturas no universo vou trabalhar para as salvar"

repete por vezes, ao longo do dia, separadamente, quando a ocasião surgir, uma ou outra destas afirmações

mas não recites nada mecanicamente, de pernas cruzadas no teu tapete

nem sempre és digna de formular tais afirmações, não ganhas nada em fazê-lo caso elas provenham da fadiga, da distracção ou apenas da superfície dos lábios

que elas se encontrem sempre, porém, impressas em ti
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disciplina do despertar

é belo sair do sono tal como saímos dum banho e realizarmos desde logo exercícios de maleabilização

que estes não degenerem, porém, numa exibição de rígida disciplina ou numa rigorosa domesticação de ti própria: se estiveres demasiado cansada para te pores de cabeça para baixo, renuncia à ideia - o teu corpo sabe melhor que tu o que lhe convém

em caso de doença ou fadiga extrema, algumas escolas recomendam a execução mental de exercícios físicos, com resultados notáveis

não julgues, porém, que estes exercícios mentais sejam isentos de esforço
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as pretensões dos yogins são extravagantes

mesmo que não o fossem, não te diriam respeito, de qualquer das formas: não te cabe esperar que "siddhis" sejam alcançados por via dos teus modestos esforços de principiante

não obstante, eles têm razão quando afirmam que qualquer indivíduo que se submeta, ainda que brevemente e com frágeis resultados, àqueles métodos físicos e mentais, será profundamente transformado por eles, pela descoberta da possibilidade de um equilíbrio mais seguro, pela tomada de consciência de forças para lá de si próprio

se se revela suficiente para chegar a este nível tão modesto, mas definitivamente adquirido, dedicar todas as manhãs alguns minutos à prática de exercícios psíquicos durante alguns anos, onde não poderá chegar aquele que lhes consagre uma boa parte da sua vida?

o yoga assemelha-se ao piano, onde não fazes mais que ir descodificando timidamente uma página de bach e, mesmo essa, numa versão simplificada, o que é já, aliás, uma grande conquista

sem tão pouco pretender com isto negar a existência de virtuosos
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no teu caso, e contrariando opiniões mais autorizadas, sugerir-te-ía que desconfiasses dos gurus

primeiro porque existem poucos e aqueles que se encontram acessíveis são, de nove em dez, charlatões ou medíocres

com excepção de que o acaso da vida te proporcione encontrar um mestre admirável, trabalha só

fazes as tuas orações sozinha, donde, podes também exercitar-te a sós

nestas práticas que ultrapassam a inteligência, tal como a inteligência é vulgarmente entendida, ela própria permanece, porém, o teu agente de controlo

não esqueças que um professor é também um espectador e que facilmente um desejo de performance e elementos de vaidade entram em jogo

mantém presente igualmente a noção do antagonismo quase inevitável entre mestre e discípulo

caso o teu mestre seja um oriental, pensa também na possibilidade de mal entendidos raciais e culturais, por muito boa vontade que adivinhemos, de parte a parte, no sentido de os contornar

na leitura dos textos e no estudo, a própria reflexão tem poder de afastar estes equívocos, os quais, frequentemente, no contacto directo, facilmente te podem trazer distracções irritantes

evita também a fácil - ainda que ligeira - ponta de exotismo que se pode insinuar em tudo isto

poupa-te, por fim, à desilusão face à prática ou ao estudo que te pode derivar do facto de ouvires um swami da moda que não está mais próximo de patanjali que um qualquer capucho estaria de francisco de assis, a tentar explicar de forma rudimentar os textos em causa, reduzindo-os a receitas infalíveis e obtusas, ou a debitar alguns lugares comuns que supõe adaptados à tua mentalidade "europeia" e "moderna"

à falta de melhor, cultiva-te a sós, tal como, na falta de um bom jardineiro, podes cuidar a sós do teu jardim
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praticar não significa imitar, dia após dia, flexão a flexão, posições sagradas que não tenham sentido para ti, nem recitar mantras impronunciáveis sem ressonância no mais profundo de ti próprio

tentar, no entanto, por uma vez praticá-los, por uma vez dizê-los, revelou-te músculos que não tinhas consciência de possuir, abriu-te portas
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qualquer exercício executado de forma puramente mecânica é destrutivo, mesmo que, inicialmente, os resultados possam parecer brilhantes
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sadhana constante, escuta perene

no jardim, as clematites, frágeis em petite plaisance, crescem vigorosamente pelo muro de pedra

saindo pela pequena porta junto ao portão da lua, saúdo o buda de bronze que ali se encontra

este toca a terra com uma das mãos e repousa a outra no seu manto monacal

desde que vim morar aqui fui mudando a minha forma ritual de lidar com ele: inicialmente colocava-lhe na mão uma pequena moeda de cobre, um pouco como a miúda que vi uma vez atirar uma moeda à fonte, e como eu própria fiz, em águas puras, em roma, inglaterra ou thingvellir na islândia

depois, por desagrado com a ideia da moeda, comecei a colocar uma flor ou uma folha, não colhida por mim (igual relutância em fazê-lo) mas apanhada de entre as que encontrava caídas na terra

hoje não havia nenhuma

não esquecer porém que somos simultaneamente aquele que oferece, a oferenda e aquele a quem tudo é oferecido

- e porque não mencionar aqui, tendo-me embrenhado um pouco mais profundamente no bosque, a satisfação de urinar? - o meu corpo sábio liberta-me deste líquido supérfluo, que escorre, tépido, por cima das agulhas de pinheiro, espécie de oferenda à terra à qual pertencerei um dia

... noção do quanto estes jardins tão belos, estas estátuas sentadas ou erguidas sob enormes árvores, saem dos poços de petróleo da família rockefeller, são o fruto duma concorrência selvagem; o quanto esta paz é produto do delírio de locomoção que contamina a terra

porém este canto de riqueza espiritualizou-se em parte, como a dos médicis ou a dos farnèse, convertida em mármore e manuscritos antigos

há que saber aceitar este pouco de bem que nasce do mal

seja como for, tentei descrever aqui esta manhã sem sombra

nirvana é samsara
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epílogo

esta tarde, sentada na varanda onde se tinha deitado sobre uma chaise-longue, quase escondida debaixo de um cobertor e tremendo de febre ouvi-a murmurar distintamente a palavra: "epílogo"

porquê epílogo? - perguntei, no tom mais brando e confluente possível com o dela

não sei. há a palavra prólogo. há a palavra epílogo

e foi tudo - voltou a caír no mesmo estado de semi-sonolência



trad. e adap. - nc

30/04/2013

marguerite yourcenar - sadhana 2



selecção de excertos e comentários (em itálico) de marguerite yourcenar sobre o tantrismo a partir de "l'yoga della potenza" de julius evola

para quem tenha acompanhado (ou queira consultar) os fragmentos sobre o pensamento de eric baret neste blog, esta resenha de comentários de yourcenar "polariza-os" igualmente, em alguns momentos, convidando a uma reflexão crítica sobre as asserções daquele

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carácter absoluto e orgânico da aspiração...

um discípulo pergunta ao seu mestre espiritual, junto de quem se banhava, quando chegaria, enfim, à realização (do "sadhana")

o mestre, como única resposta, mergulha-lhe a cabeça sob a água e mantém-lha ali até que ele, sentindo-se sufocar, se liberta e sai

aí, o mestre diz-lhe: "quando em ti a realização espiritual for uma necessidade tão profunda como aquela que te impulsionou há pouco na reafirmação da tua existência material, aí, e só aí, obterás resultados fecundos"
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fazer do controlo de si próprio uma disposição interior por forma a excluir, de forma fulminante, fluxos de ideias que possam engendrar, de alguma maneira, estados de dúvida ou de esperança...

a aceitar apenas neste contexto de prática heróica, visto haver momentos em que, pelo contrário, se torna indispensável acolher e estimular em si mesmo a dúvida, bem como, útil e são favorecer a esperança
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retardar as reacções

alguém dizia, com razão: "meço a energia de um ser pelo grau em que ele consegue suspender e temporizar uma reacção"

parece que no pitagorismo se aconselhava respirar três vezes profundamente antes de dar livre curso a uma reacção impulsiva que tenderia a manifestar-se de forma mais imediata

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constitui-se como disciplina no yoga budista a acção de captar primeiro como desagradável o agradável, depois como agradável o desagradável e, num terceiro tempo, conservar um ânimo igual perante o agradável e o desagradável
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não fazeres o que gostas mas o que te custa. tomar sempre, por princípio, a linha de maior resistência

(chamada de atenção relativa à substituição da felicidade que deriva da satisfação do desejo pela felicidade heróica)

psicologicamente, e deixando à parte a questão da orientação moral que igualmente se pode colocar, a grande dificuldade, em casos mais graves, está em saber onde se situa, para cada ser, a linha de maior resistência. o problema é mais complexo do que se poderia pensar, num primeiro momento

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exercitarmo-nos na ruptura com os nossos próprios hábitos, por forma a emanciparmo-nos do vínculo que constitui o seu automatismo

haverá, naturalmente, que fazer a distinção entre o hábito que representa mestria, aquisição, habilidade (como no pianista, no esquiador, etc) e aquele que denota uma qualidade densa e inerte, onde a vontade (sobre)vive dependente da acção passada. romper...

admiravelmente dito e muito útil

evola quase se equivoca ao colocar à parte os supostos bons hábitos do pianista e outros - o artista maior sabe romper com as habilidades adquiridas

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deveríamos ter por regra: permitirmo-nos tudo aquilo que sentimos que poderíamos igualmente deixar, a que saberíamos renunciar

(para que nos demos conta de a que ponto os modernos são homens apenas de nome, pensemos apenas no que representa para muitos deles o tabaco)
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não nos arrependermos de nada

simultaneamente verdadeiro e falso - na prática, tremendamente verdadeiro no sentido em que arrepender-se, para a maior parte das pessoas, é ainda uma forma masoquista de asserção de si próprio, uma ruminação mórbida sobre aquilo que foi

o arrependimento puro ocorre pela via duma completa mudança de direcção

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enuncia-se, em seguida, um princípio delicado e perigoso que estabelece que tal como a caridade pode ser uma disciplina a crueldade pode ser outra, particularmente para seres qualificados na busca da potência e do desenvolvimento mentais

é verdade que aqui apenas uma fronteira subtil e perigosa separa a verdadeira transcendência (das fraquezas humanas, da ordem moral habitual) daquilo que se revela como uma disposição inferior, inerte e instintiva
um mesmo acto pode provir de um eu endurecido, quase bestial, tal como pode revelar uma força e uma natureza libertas...

esta ressalva é insuficiente, antes de mais porque quase ninguém é capaz de avaliar de forma sã e lúcida as motivações dos seus próprios actos

numa acepção última, o risco de crueldade desvanecer-se-ía na medida em que um ser quase perfeito como um buda qualquer seria incapaz de ceder, ou, mesmo, de se colocar sequer a possibilidade de ceder a estes impulsos irreflectidos que podemos adequadamente qualificar como o "mal", e cuja crueza será, talvez, a pior
na imensa maioria dos casos, porém, o perigo torna-se, pelo contrário, mortalmente grave

a vertente malsã da asserção de evola parece associar-se sobretudo ao facto de que, duma forma muito evidente, a crueza se constitui nele como um pendor, uma inclinação, e ele aproveita todas as ocasiões para a afirmar doutrinalmente

o completo desprezo dos valores morais favorece este desregramento, porém, a ética tradicional tão pouco pode funcionar aqui como guarda ou protecção: foi evidentemente por razões supostamente morais que hitler ou conrad de marburg (inquisidor do século XIII) puderam acreditar que era legítimo exterminar os adversários da sua fé ou do seu grupo

há nos hermetistas do tipo de evola uma tendência, análoga à dos homens de ciência, que consiste em desenvolver a eficácia do instrumento (no que lhe respeita, neste caso, a ferramenta mental) com pouca inquietude relativamente à utilização possivelmente monstruosa que dele possa ser feita

(dito isto, a nota de evola conserva, ainda assim, o seu valor: basta pensar na aparente crueza do médico na cauterização duma chaga - e ainda assim, mesmo para o médico, subsiste o risco de que a crueldade se insinue sob a máscara do serviço...)

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como correctivo do endurecimento que possa derivar de tais disciplinas poderá ser útil habituarmo-nos a compreender o ensinamento oculto em tudo o que (adversidade, dor, sofrimento) nos pode atingir por razões contingentes... é um princípio basilar nos textos orientais que no plano duma qualquer disciplina específica nada disto seja evitado, antes entendido como suporte na "via", como um "guru" sui generis...

princípio importante, porém, contrariamente à intenção de evola, este exercício poderá acarretar um endurecimento ainda maior

a lacuna fundamental nestes elementos de evola são os princípios de humildade e amor cristãos, de simpatia e compaixão budistas, passíveis de impedir, autenticamente, eles sim, qualquer endurecimento, servindo simultaneamente, talvez de forma ainda mais eficaz do que o treino ascético, a transcender o plano meramente personalizado do indivíduo

evola prossegue, aqui, numa justeza admirável:


o objectivo é, precisamente, o oposto (do endurecimento estóico)

a lição do sofrimento e da adversidade deve sintetizar-se numa flexibilização, numa maleabilidade, na capacidade de estarmos presentes e activos mesmo quando uma força superior se impõe

capacidade de aceitar impessoalmente e compreender uma possibilidade ou direcção tanto quanto outra qualquer
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a impassibilidade fisionómica (akara maura): suprema mestria dos músculos faciais

se autenticamente espiritual, parece-me da ordem das coisas obtidas, não conquistadas, ainda que, no plano espiritual tudo seja simultaneamente (ou sucessivamente) obtido e conquistado, feito de disciplina e de graça

a aparência exterior de impassibilidade é já uma vitória da quietude

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renúncia: é absurdo pensarmos que nos seja possível dominar ou possuir alguma coisa, se nos colocarmos - pelo desejo que dela temos - num estado de passividade e de dependência

pelo contrário: é pela renúncia que a relação se altera, porque acedemos a um estado de auto-suficiência que inverte a polaridade do processo

a quem não pede será concedido
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purificar-se de: piedade

expressão de baixos instintos da parte de evola, naturalmente pouco inclinado para a piedade

tem, pelo menos, razão - e mesmo aí nem sempre - quando afirma:

"o primeiro ser face ao qual devemos ignorar a piedade é o eu próprio"

digamos antes que a infinita piedade deve ser controlada para ser eficaz e algo mais que apenas uma emoção, ou, no sentido básico da palavra, uma paixão - piedade controlada do médico

mas, ainda aqui, nunca serão demais as precauções no sentido de evitar que esta piedade fria se torne desumanidade: o grande inquisidor que condena os seus hereges imagina que os manda queimar por caridade
a piedade controlada na pessoa de um fanático conduz à atrocidade, pura e simples

não somos suficientemente piedosos face a um ser enquanto não velamos pelo seu bem-estar físico tanto quanto pelo seu bem-estar moral



trad. e adap. - nc

24/03/2013

rumi's friend, the beloved

                                   


                                     




the turn of the road


will you walk with me beyond the road's turning,
where day takes the valley that leads into night?
love will you walk with me all through my journey
or only 'till the light?

believe me I need you don't think of leaving
this evening your love lights my way to the dawn
don't leave me here now you've got me believing
tomorrow I'll wake newborn

if you will love me as I love you
who cares how dark the night may appear
if you will love me as I love you
then I will know no fear

the signs on the road are just there to mislead you
at times I misread them 'though I was so wise
the turn of the road, my love, that's where I need you
tears always blind my eyes

love, will you hold me through all my life's evenings?
love, will you take the road right to the end?
i've never had someone i could believe in
forever my lover, my friend

les barker

26/02/2013

eterno retorno





dans la leela des mondes infinis
des liens se tissent entre les fils de moi-même
pour la seule joie de me retrouver
dans le regard des gens qui s'aiment

yvan amar

(citado por isabelle padovani)

23/02/2013

jojo






jojo,
voici donc quelques rires
quelques vins quelques blondes
j'ai plaisir à te dire
que la nuit sera longue
a devenir demain

jojo,
moi je t'entends rugir
quelques chansons marines
où des bretons devinent
que saint-cast doit dormir
tout au fond du brouillard

six pieds sous terre jojo tu chantes encore
six pieds sous terre tu n'es pas mort


jojo,
ce soir comme chaque soir
nous refaisons nos guerres
tu reprends saint-nazaire
je refais l'olympia
au fond du cimetière

jojo,
nous parlons en silence
d'une jeunesse vieille
nous savons tous les deux
que le monde sommeille
par manque d'imprudence

six pieds sous terre jojo tu espères encore
six pieds sous terre tu n'es pas mort


jojo,
tu me donnes en riant
des nouvelles d'en bas
je te dis mort aux cons
bien plus cons que toi
mais qui sont mieux portants

jojo,
tu sais le nom des fleurs
tu vois que mes mains tremblent
et je te sais qui pleure
pour noyer de pudeur
mes pauvres lieux communs

six pieds sous terre jojo tu frères encore
six pieds sous terre tu n'es pas mort


jojo
je te quitte au matin
pour de vagues besognes
parmi quelques ivrognes
des amputés du cœur
qui ont trop ouvert les mains

jojo,
je ne rentre plus nulle part
je m'habille de nos rêves
orphelin jusqu'aux lèvres
mais heureux de savoir
que je te viens déjà

six pieds sous terre jojo tu n'es pas mort
six pieds sous terre jojo je t'aime encore


jacques brel

18/02/2013

caminho das flores




no início o trabalho assemelhava-se a uma imitação exterior ou a uma criação mais ou menos regida pela vontade

a partir do centro, bem do interior, nada acontecia

quando perguntava como se poderiam alcançar essas “coisas” interiores, recebia a resposta aparentemente monótona: em primeiro lugar, através de imitações exemplares, o mais frequente e fielmente possível

as aulas decorriam no devido silêncio, pois no oriente desde sempre se valorizou muito a transmissão silenciosa, melhor dizendo, a transmissão “de coração a coração”

o ensinamento era transmitido de pai para um dos seus filhos, e do professor a um dos seus alunos preferidos

o requisito essencial era uma afinidade espiritual entre ambos, mas, sobretudo, a capacidade comprovada do aluno de captar intuitivamente o ensinamento do mestre

mesmo os preceitos de conduta requerem apenas que o ensinamento “verdadeiro” do já falecido mestre se deixe reconhecer e seja de novo vivido, mas não abordam o ensinamento verdadeiro propriamente dito

o verdadeiro conteúdo do ensinamento só se revela àquele que está preparado para o vivenciar, ao que sabe compreendê-lo tantas vezes quantas ele se apresentar

o “espírito verdadeiro” do ensinamento não pode ser expresso por palavras

as palavras são, na melhor das hipóteses, pontes para se chegar a ele

quer isto dizer: aquele que fala não sabe, e aquele que sabe não fala

por isso o mestre, na maioria das vezes, limita-se a executar um trabalho que sirva de padrão ao aluno

a tarefa do aluno é inferir dele a sua essência última e alcançar aquele invisível que está na origem do visível, partindo daquilo que vê

a exigência de atenção é muito mais importante que a actividade excessiva

também não basta empreender o trabalho como quem toma o chá das cinco. o arranjo floral não é um passatempo e não serve para distrair

a aula de arranjo floral entra no quotidiano, não fica à margem. e não é fácil trilhar o caminho das flores de manhã até à noite!

não existe uma “conclusão” da aprendizagem, no sentido que nós lhe damos. mesmo a colocação de três ramos, aparentemente a mais fácil, pode ser muito difícil, se tivermos em conta que deve fazer justiça ao “coração universal”

é quase natural que um europeu aguarde ansiosamente as primeiras aulas de arranjo floral com um espírito de iniciativa vigoroso e desenfreado e um grande sentimento de autoconfiança

e, de facto, para além de umas mãos habilidosas e um gosto artístico, não se poderiam considerar estes atributos como vantagens particularmente desejáveis?

mas logo nas primeiras aulas o principiante que assim pensa é acometido de uma certa perplexidade: ele dá-se conta de que por este caminho não ganha qualquer contacto íntimo, nenhuma relação interior com o ponto de partida desta arte

se o aluno quiser penetrar até às suas raízes, terá de decidir se o seu móbil foi uma atracção por alguns meros momentos estético-artísticos ou se quer vivenciar a totalidade, a universalidade desta arte

no segundo caso, terá sempre que reconhecer que recomeça como uma criança, que todos os tipos de ambição representam obstáculos e que todos os desejos de originalidade pessoal se atravessam no seu caminho

que tem de abstrair-se do seu ego, aprendendo a ser pequeno e modesto, para poder então trabalhar tranquilo e desapegado, conforme lhe exige a atitude espiritual oriental

no início a tónica parece recaír fortemente nesta sintonização preparatória, pois na ausência deste primeiro requisito, tudo o que iniciamos, mesmo como principiantes, estará errado aos olhos do mestre

o mestre viu, no seu próprio exemplo e no exemplo de outros, como o desassossego, a pressa e a impaciência só trazem discórdia à vida e ao ambiente

espreitou as plantas expostas ao vento, à tempestade e à intempérie, como elas se inclinam, baloiçam, como cedem cada vez mais facilmente e deixam imperturbáveis tudo passar sobre si e assim ficam a salvo

a execução propriamente dita é secundária em relação à atitude interior

profundamente imerso em si mesmo, procurava atingir o estado de espírito que lhe permitia tornar-se uno com o coração da flor

ele sabe da sua longa experiência e muito treino que isto não é uma mera figura de retórica, pois só quando se estabelece, literalmente, o estado de união do próprio coração com o coração da flor e, assim, com o “coração universal” – como os mestres florais japoneses exprimem de uma maneira tão feliz – ele repousa na quietude silenciosa da qual emerge espontaneamente o criar e o dar forma, desprovidos de intenção

só gradualmente o aluno se habituará a encarar tudo como não sendo importante nem perturbador e comprovará com satisfação que a a concentração, quando posta à prova, cria raízes - mesmo se algum ruído forte vindo da rua se fizer ouvir na sala de aula, não lhe prestará atenção

deste modo compreende-se a condição essencial desta e de qualquer outra arte japonesa: a necessidade de permanecer em silêncio eterno

e também se compreende que isto é realmente possível quando se arranja força para praticar todos os dias sem se deixar desanimar por nenhum insucesso: a concentração diária, nem que seja apenas por meia hora, representa a melhor forma de equilibrar o fatigante ritmo quotidiano e a actividade desenfreada que apenas dispersa, ao invés de centrar. só descobrimos quanto tempo temos disponível quando deixamos de acreditar que não temos nenhum

uma característica do extremo oriente é começar com o pequeno e o modesto, que não é evidente mas deve ser longamente praticado, até já não existir nenhuma imperfeição, até ser totalmente integrado

os primeiros passos são os mais difíceis

neste caminho, o significado do número três é importante, não só no manuseio das plantas como também na relação com o próximo e com o mundo animal

a linguagem simbólica dos três ramos encontrou a sua expressão em “céu”, “humano” e “terra”. não nos fala apenas do exterior. no núcleo da sua essência vibram os ritmos eternos de forma e conteúdo, de substância e vazio. no círculo do “tri-princípio” o humano está entre o céu e a terra. este princípio do três contém, na sua assimetria, a acção recíproca do pleno e do vazio, da vitalidade e da inacção, contém em si o círculo inteiro. ao trabalhar, o aluno “desdobra” novamente a totalidade de céu, humano e terra numa unidade visível e numa forma simbólica. ele coloca lá dentro as limitações do “eu” e equilibra-as

ao participar com todo o seu ser, o pequeno "eu" torna-se insignificante perante a totalidade do cosmos e dá lugar ao "não eu"

palavras do mestre bokuyo takeda:

- humanos e plantas são mortais e mutáveis; o sentido e a essência do arranjo floral são eternos;
- deve buscar-se a forma exterior trabalhando a partir do interior;
- o material utilizado é secundário, só o pensamento correcto leva a deus
- a união de beleza e virtude é poderosa;
- a beleza em si é insignificante; ela só se completa em união com a “verdadeira” conduta;
- o correcto manuseio das flores aprimora a personalidade;

preceitos de conduta:

- não efectuar nenhum movimento brusco; modos delicados e tranquilos são fundamentais; tratar as flores com doçura;
- humildade, consciência de degraus mais elevados que o nosso;
- não esperar das flores mais do que as suas características permitirem;
- não desdenhar outras escolas, retirar delas o que possa ser bom;
- a superficialidade leva sempre ao erro;

todas as explicações conhecem o seu limite quando se chega à essência última, à verdade; aquilo que não pode ser dito, mas unicamente vivenciado. não se pode apreender o que não se sentiu;

ao manter o ensinamento em segredo, o japonês foi educado num profundo respeito perante todas as realizações artísticas, que constantemente surpreende os estrangeiros. basta observar com quanto respeito se comporta um japonês numa exposição floral, ou observando uma pintura a tinta da china ou segurando nas mãos uma espada valiosa; como se, ao mergulhar na obra do criador, pudesse também participar do seu espírito

as virtudes:

- o que está em cima e o que está em baixo estão em relação através do arranjo floral;
- trazer o “nada” – o universo – no coração;
- maneira de pensar clara e serena. sem pensar é possível encontrar a solução;
- libertação de todas as preocupações;
- trato confiante e cuidadoso com as plantas e os seres da natureza;
- amar e respeitar todos os seres humanos;
- preencher o espaço com harmonia e profundo respeito;
- o “verdadeiro espírito” nutre a vida; ligar o arranjo floral com o sentimento religioso;
- harmonia de corpo e alma;
- abnegação e moderação; livre do mal

(uma “severa disciplina do espírito”)

só quem viveu muito tempo no oriente sabe que por “libertação de todas as preocupações” se entende a capacidade de aceitar com serenidade mesmo os mais cruéis golpes do destino. nas catástrofes naturais tão frequentes no japão, demonstra-se mesmo entre os mais humildes, que por detrás destas palavras pode esconder-se uma espantosa força espiritual

o “trato confiante com a natureza” representa muito mais do que um entusiasmo semtimental pela natureza. esta expressão refere-se muito mais a esse trato produtivo, que descobre a essência das coisas, olhando-se simultaneamente no coração. trazer o “nada” no coração significa possuir o sublime e o último, o próprio “universo”. estar próximo desta essência do universo, poder viver a partir dela, dessa raíz original do coração, cria o “espírito verdadeiro, que nutre a vida”. e, da mesma maneira, aquele que conhecer essa “essência da natureza” irá também compreender a essência do ser humano e “amá-lo e respeitá-lo, por amor do espírito verdadeiro”, que também poderá ser tornado vivo nele. um exemplo disto é a solicitude japonesa perante as catástrofes naturais

a par disto é exigido: “estar vazio de si mesmo”, sem pensamentos mesquinhos e perturbadores, em “harmonia de corpo e alma”, dar espaço ao “coração universal” ser despreocupadamente “tudo e porém nada”, como as flores na pradaria

a expressão significativa do silêncio é dada pela flor ou planta humilde, escolhida justamente por esse motivo, que ocupa um lugar muito importante na sala de chá, mas assiste despretensiosa à cerimónia do chá, com as suas cores leves e a forma apaziguante, como se quisesse sublinhar o significado da ocasião precisamente através do seu silêncio quieto, repousando em si mesma

no espaço amplo do vazio tudo se condensa, realça, é posto em evidência, para se reflectir ao mesmo tempo nesta ilimitude, na força de realização da origem criadora. assim também podemos aproximar-nos da realização assimétrica das linhas do “tri-princípio”, através da sua visível fluidez no silêncio vivo da sala. nesta união de vazio e forma a obra supera as suas fronteiras e limitações. revive como uma criação nova e livre precisamente através dessa contínua força de realização do vazio

também na pintura a tinta da china os espaços vazios são compreendidos como meio indispensável de expressão positiva e cheia de significado. quantas superfícies amplas, na pintura a tinta da china, ocupam o lugar do ar, da neblina, do céu nublado e de superfícies aquáticas apenas insinuadas!

no teatro nô e em antigas peças de teatro representadas no teatro kabuki, as passagens mais impressionantes e mais significativas são precisamente aquelas em que não há nenhuma fala, em que o actor tem de expressar tudo a partir de dentro, sem palavras, através da mais parcimoniosa e porém concentrada mímica e gesto

observar o crescimento e as possibilidades de desenvolvimento da planta significa um enriquecimento da vida afectiva

a fusão em unidade com as flores respira o espírito do samurai e a seriedade da irrevogável e derradeira decisão

o perfeito artista floral é precisamente o que é capaz de criar obras que parecem criação da própria natureza

ao contemplar o “ensinamento verdadeiro” ressalta um conceito de liberdade característico do oriente. a verdadeira liberdade interior é entendida no oriente como um unir-se às formas que encerram o significado das leis cósmicas. o-que-se-une será directamente integrado na coerência última do mundo

embora para os orientais o autodespojamento e a capacidade de se dissolver no princípio espiritual do mundo e da vida seja o objectivo mais elevado e aí se encontre o sentido mais profundo da vida religiosa, isto não significa, porém, que uma obra criada a partir desta atitude tenha de ser inteiramente impessoal. o artista oriental também não pode evitar que a sua obra mostre traços do ser individual – isso faz parte da obra – no entanto a sua individualidade não deve perturbar o espírito das obra, mas deve ser completamente absorvida por este. isso significa que o artista não deve tentar deliberadamente dar uma nota pessoal à sua obra. só na medida em que esta singularidade se manifesta involuntariamente na obra e se funde de forma espontânea com a sua lei essencial numa unidade absoluta, ela é legítima e adquire mesmo um significado profundo

o que está na base do arranjo floral e que deve ser simplesmente vivenciado não tem forma em si mesmo, mas ganha forma assim que se procura representá-lo simbolicamente. é exactamente esta forma espiritual que constitui a ideia de arranjo floral. numa fusão visível, o incomensurável lança luz mesmo sobre as formas mais modestas do mundo sensível

aqui se encontra, sem dúvida, a chave para a compreensão da arte oriental e de toda a vida espiritual do oriente: ver esta “capacidade de abstrair-se de si mesmo” do oriental e esta total não-intencionalidade, que são as mais elevadas manifestações espirituais. é assim que o pintor traça sempre as suas linhas, não como se ele as traçasse, mas “como se elas mesmas se desenhassem a partir da origem”. nem a mais leve intenção de querer dispor as flores de forma “bonita” deve perturbar este estar-imerso-em-si-mesmo, nem sequer a intenção de total não-intencionalidade. por detrás do explicitamente representável, está o indizível e o irrepresentável, ou seja, o que se revela inesperadamente

esta arte não é uma escola de habilidades nem um exercício manual mas sim a experiência de ser


extractos de:

zen e a arte do caminho das flores

gusty l. herrigel

15/01/2013

oráculo perpétuo



live as if you were living already for the second time and as if you had acted the first time as wrongly as you are about to act now


viktor frankl

astrologia / 1 (português)

oráculo perpétuo

viver como se tal ocorresse já pela segunda vez e estivéssemos prestes a agir, no próximo instante, tão erradamente como agimos na primeira

viktor frankl


O QUE É UMA CARTA ASTROLÓGICA

um tema natal, horóscopo, carta do céu, mapa astrológico, como uma fotografia do céu, consiste numa representação gráfica bidimensional da posição relativa que os planetas do nosso sistema solar, mais o sol e a lua, ocupavam vistos a partir do ponto da terra e do momento do nascimento

nascimento de uma pessoa, de um animal, de uma empresa, de um país, de qualquer coisa que tenha, por assim dizer, entrado na vida naquele momento, como organismo independente

a importância deste facto para a astrologia assenta num princípio muito antigo, a chamada lei das analogias ou das correspondências oriunda da tradição alquímica e que como enunciado é quase simplista: o que está em baixo é igual ao que está em cima, mais conhecido pelo inglês as above so below

a afirmação é, de facto, simples, mas encerra uma ideia muito abrangente, que é a de que existe uma ordem universal, constatável a qualquer nível da realidade a que nos situemos, desde as grandes galáxias e estrelas até às mais pequenas partículas sub-atómicas

pertencemos a um imenso oceano de energia, a uma consciência global não localizada que se revê a si mesma em cada ser humano, sendo que cada um de nós não faz mais que cumprir, como instrumento, como centelha divina auto-consciente, a sua função neste gigantesco puzzle

tudo se encontra, assim, regido pelas mesmas leis universais e, nesta óptica, ao nascermos, nós reproduzimos, à nossa escala, o jogo de forças que se passava no universo naquele momento, transformando-nos no que poderíamos chamar uma espécie de micro sistemas solares

esta matriz inicial impregna-nos, é o nosso bilhete de identidade cósmico, e vai acompanhar-nos, dinamicamente, ao longo de todo o nosso processo de vida.


A DINÂMICA DO MAPA - LIBERDADE E CONDICIONAMENTO

uma carta natal não deve ser visto como um diagnóstico acabado daquilo que a pessoa é, ou vai ser, ele representa, antes de mais, um enunciado do potencial que cada um traz para a vida, composto de um património psíquico e energético universal

as diferentes escolhas que podemos fazer, na utilização desta matéria-prima representam a liberdade e responsabilidade que temos, como seres humanos, na condução das nossas vidas, são a margem de insondável, dentro da própria astrologia, que escapa a qualquer cartografia, ou esforço de pré-determinação

quero dizer com isto que é impossível olhar para um mapa e apenas por aí saber que tipo de expressão é que a pessoa a quem ele se refere vai dar ao potencial com que nasceu

podemos, sim, ter uma noção clara dos principais padrões (comportamentais, psíquicos, motivacionais) que a dinamizam, bem como das fases que poderá estar a atravessar -  a partir daí, lançados os dados, temos a vida na sua complexidade e variedade, como mistério a ser vivido por cada ser humano

o psiquiatra suíço c.g. jung dizia que a liberdade é a capacidade de fazer com prazer aquilo que tem que ser feito, exprimindo exactamente esta ideia, de que é pela aceitação, não resignada nem contrariada mas plena e incondicional, da vida, mesmo quando ela se apresenta contra os nossos desejos, que pode emergir um sentimento de serenidade e paz interior

conhece a lei, sê livre - numa expressão simples, de forma simbólica, alinhando a nossa vontade pessoal com a vontade divina, como uma e a mesma manifestação

há que deixar emergir o yin interno, a nossa receptividade e confiança mais profundas, para que o yang dos céus possa operar através de nós, conduzindo-nos

no fundo, uma outra forma de dizer que a inteligência, o amor, a sabedoria, o que quisermos, tal como a ignorância, o ódio, a obscuridade, não são nossos, não são de ninguém, eles fluem, através de nós

é comum em astrologia afirmar-se que o sábio é a pessoa menos livre do mundo, à luz dos nossos valores estritamente humanos e terrenos, porque pelo grau de consciência que o rege ele só pode tomar um único rumo: aquele que a vida lhe pede, a cada momento

neste sentido, quanto menos conscientes somos, mais nos afastamos mentalmente da sabedoria de cada minuto, mais se nos multiplicam, ilusoriamente, as alternativas possíveis, pela ignorância do nosso verdadeiro lugar e função

lugar e função esses que não se nos revelam por antecipação, mas exactamente a cada momento, quando sabemos nascer e morrer a cada instante

quase se poderia dizer que quanto mais nos interrogamos, menos sabemos

em contrapartida, quanto mais nos permitimos apenas ser, numa atitude de profunda atenção ao presente, mais nos encontramos


A INFLUÊNCIA DOS ASTROS E A SINCRONICIDADE

quando falamos da influência electromagnética dos planetas sobre a terra não se trata tanto de uma lógica de causa/efeito, em que estes estariam antes e desencadeariam uma acção sobre nós, depois, mas de uma sincronia universal, de uma simultaneidade: o que se passa na terra corresponde ao que se passa nos céus, como corresponde, também, ao que se passa em dimensões mais microcósmicas

partindo do mesmo princípio de que a realidade é um todo uno, integrado, e de que a mesma ordem rigorosa se materializa em qualquer das suas partes, então, se eu for capaz de descodificar uma dessas parcelas, posso tirar conclusões para outras, ou seja, ao analisar um mapa astrológico, posso obter informações sobre a pessoa a que ele corresponde (bem como, por exemplo, em relação à época histórica em que ela nasceu, e que a condiciona)

esta é, aliás, a lógica que preside a todas as chamadas artes divinatórias, seja a astrologia, o tarot, as runas, o i ching ou outras, com a diferença de que a astrologia tem um carácter simultaneamente estrutural e dinâmico: serve-se de uma matriz natal e da sua análise ao longo dos tempos

jung, no seu conhecido princípio da sincronicidade, segundo o qual existem coincidências significativas que escapam aos nossos modelos clássicos de causalidade, veio retomar, à escala da tradição cultural ocidental do século xx, esta velha ideia do universo visto como uma imensa respiração, um pulsar cósmico, unitário dentro da sua aparente variabilidade


A LEI DA RESSONÂNCIA

uma outra lei universal, taoísta, basilar na astrologia, a lei da ressonância vibratória ou da resposta subtil das energias diz-nos que energias com um determinado tipo de vibração atraiem, por ressonância, vibração de igual frequência, consonante ou dissonante

aplicado à vida humana, este princípio diz-nos que nós estamos permanentemente a dinamizar fora o que somos dentro, como faces da mesma moeda, ou seja, que pessoas, circunstâncias, acontecimentos dos mais variados, que compõem o nosso quadro de vida e a que habitualmente chamamos destino, são um reflexo directo, um prolongamento da nossa energia interior

nesta perspectiva, num plano terreno - admitindo que nos assista alguma autonomia na condução das nossa vidas - só podemos intervir de forma consciente no tão falado destino, ou alterar profundamente a nossa vida, transformando-nos a nós próprios

é frequente as pessoas dirigirem-se ao astrólogo, ou a alguém versado nestas áreas, em momentos em que se sentem mais perdidas, mais desesperadas, mais confusas, e há como que uma natural tendência humana para procurar alvos externos que sustentem o mal estar interior

esses alvos podem ser múltiplos: o marido ou a mulher, os pais, os filhos, os amigos, a família, o trabalho, a saúde, a cidade ou o país, a crise mundial, os maus espíritos, as (supostas) energias negativas, os próprios astros, etc

acontece, porém, que se tentarmos actuar sobre qualquer destes aspectos (mesmo admitindo que eles sejam moldáveis) sem que haja, em paralelo, uma efectiva transformação interior, passado algum tempo, com outros nomes, outras caras, vamos tender a recriar exactamente o mesmo tipo de situação conflitual que antes nos perturbava, um pouco como se a vida nos devolvesse, como um espelho, o nosso próprio equívoco, para podermos entender que qualquer verdadeira mudança é essencialmente um processo interno que se reflecte no exterior, e não o inverso

claro que isto é completamente diferente de sentirmos que estamos a atravessar uma profunda reestruturação interna e que, a certa altura, possivelmente, a realidade que até ali nos servia deixa de comportar aquilo que passámos a ser, como se já não coubéssemos, não encaixássemos, no quadro anterior

aí, podemos realmente proceder a alterações, radicais até, mas já não naquela tentativa vã de que estas acarretem uma mudança interior, antes, sim, pela constatação de que de facto algo mudou, de que estamos outros, e de que, a partir daí, se impõe mudar o cenário externo, em conformidade

em última análise, poderá considerar-se que tudo isto tem um carácter algo interactivo (há que saber esperar o tempo certo, deixar que a vida dê o primeiro passo) mas se algum sentido prioritário houver ele será de dentro para fora, não de fora para dentro, passe o equívoco que estes termos possam conter


A ASTROLOGIA COMO FORMA DE ACONSELHAMENTO

a astrologia pode funcionar como um instrumento de auto-conhecimento de grande utilidade, por duas vias básicas: por um lado, permite lançar luz sobre as áreas em que não nos conhecemos ou onde somos mais confusos e bloqueados, por outro, proporciona uma noção global do caminho não tanto sequer rumo a nós próprios (onde é que outro lugar poderíamos estar senão em nós?) mas enquanto reencontro - existe no corão uma expressão inspirada para este fenómeno: estamos todos a regressar

a astrologia explicita, de forma precisa, os tempos em que este retorno se desenrola: quando é que é suposto ganhar coragem e mudar, apesar das dúvidas, medos e ansiedade que eu possa sentir, porque a vida me pede isso? quando é que é suposto conviver com uma situação penosa – mas instrutiva - amadurecer, incubar, quando o primeiro impulso é fugir, esquecer, não querer ver?

michelangelo tinha uma expressão muito inspirada e humilde, em que dizia que no seu trabalho como escultor não criava nada, apenas retirava a pedra que estava a mais em formas que a própria natureza já continha

da mesma maneira, em astrologia, podemos afirmar que nós já somos, por essência, completos e perfeitos: o nosso processo de vida seria, então, como que uma gradual depuração de medos, bloqueios, mitos, ilusões, um despojamento de tudo o que impede que se revele essa essência original e eterna em que tanto podemos afirmar que somos um com todo o universo como o nada absoluto

faz parte dessa espécie de lastro a largar, a própria compulsão no sentido de fazer, realizar, atingir, lutar, por metas, terras prometidas, que nos projectam num futuro ilusório desvirtuando a vivência plena de um verdadeiro presente, onde tudo se passa


OCIDENTE E ORIENTE: PSICANÁLISE E REENCARNAÇÃO

falando de temporalidade, importa salientar que se podem definir, genericamente, pelo menos duas linhas básicas de abordagem do mapa astrológico

uma, mais mística, transcendente, assenta no pressuposto de que cada um de nós constitui uma centelha da consciência universal global, a ela pertencente, sem identidade própria (ou ego) para lá do mundo da fenomenalidade

neste sentido, na terra, somos apenas focos de consciência, oriundos de um passado colectivo que nos condiciona, destinados a desempenhar um papel neste imenso drama cósmico: captamos, à nossa maneira, uma parte desse oceano de energia feito de toda a experiência que nos antecedeu (o inconsciente colectivo de que fala jung) e pela nossa acção tornamo-nos co-participantes da construção do universo de que somos parte integrante

nesta perspectiva, não somos nós, enquanto consciência separada, ou ego, que vivemos noutro tempo ou lugar com outro corpo, (como é comum afirmar-se quando se fala da reencarnação) apenas transitoriamente emergimos como bolha de espuma desse oceano global para logo a ele retornarmos, sem memória pessoal a transmitir, apenas deixando como vestígio – samskara segundo a tradição hindu – as nossas acções – o tão falado karma - que nalgum outro tempo e lugar, produzirão efeitos, numa qualquer outra centelha de consciência, que não seremos nós, nem outros, apenas o mesmo todo reeditado numa partícula efémera

neste sentido, iluminar-se é tomar consciência da insubstância da individualidade, é tomar consciência da nossa inexistência como seres separados e da própria inexistência do tempo como entidade autónoma, para lá da consciência individual humana que o recria

da mesma forma, conhecer o nosso tema natal, nesta perspectiva, é conhecer a partícula de consciência universal que nos cabe exprimir no micro-segundo cósmico que é a nossa passagem sobre a terra

uma outra perspectiva, mais dentro dos cânones da nossa tradição ocidental, é uma linha de análise mais psicológica/psicanalítica, que encara o mapa astrológico como um registo onde se encontram presentes dimensões conscientes e inconscientes da personalidade, memórias, condicionamentos decorrentes do passado, arquétipos, mitos, imagens ancestrais das próprias figuras parentais e outras, que afectam, de maneira mais ou menos directa, a nossa forma de estar na vida a cada momento

em qualquer dos casos, temos sempre presente como base o pressuposto de que não vimos vazios para a vida, já contemos muita informação, seja de onde for que ela seja oriunda (do nosso código genético, do referido inconsciente colectivo, não importa) que nos faz desde a primeira respiração atraír, por ressonância, determinados processos e circunstâncias e não outros


O TEMA NATAL COMO TESTEMUNHO DE UNIVERSALIDADE

será talvez interessante referir ainda que a astrologia pode constituir, entre outros tipos de conhecimento, um dos que permitem de forma mais palpável e imediata testemunhar a igualdade entre todos os seres: de facto, qualquer habitante deste planeta, seja qual for a época ou lugar em que tenha nascido, tem um mapa astrológico que nas suas componentes essenciais é igual ao de qualquer um de nós - a configuração pessoal varia, porém, em todos existe uma dimensão representada pela lua, pelo sol, vénus, marte, etc

independentemente de se ser ou não cristão, quando se diz nas religiões cristãs – como em outras, de resto – que o homem é feito à imagem de deus, e que deus contém tudo, então, por analogia, podemos considerar que também nós contemos tudo, que há dentro de nós uma parcela de tudo o que existe no cosmos, do mais sublime ao mais obscuro

todos nós transportamos um património de memória colectiva inconsciente resultante de toda a experiência humana , ou outra, acumuladas, cabendo a cada um de nós reapropriar-se dele, recriá-lo, por forma a dar-lhe uma expressão única, individualizada. e, do fundo dessa consciência individual unificada, como referia ao princípio, torna-se-nos possível abrir para a constatação da nossa natureza universal: já não apenas a busca de um bem-estar pessoal, mas através e além dele, em congruência connosco próprios, cumpre-se a tão falada missão ou propósito da nossa existência, o nosso papel específico no referido drama cósmico


AS PREVISÕES EM ASTROLOGIA

uma última referência, apenas para clarificar a importância e o sentido da vertente previsional na astrologia na análise dos ciclos astrológicos importa incidir em aspectos de carácter qualitativo e não descritivo simples

é muito mais importante alertar a pessoa para o sentido profundo, para a possível intenção oculta por trás de cada situação de vida que ela se encontre a atravessar, do que propriamente informá-la sobre a natureza real, objectiva, dos acontecimentos com que se poderá deparar

para além do facto de esta última abordagem ser forçosamente muito falível, por muito experiente e intuitivo que seja o astrólogo, ela é condicionante e empobrecedora, porque se torna limitativa da margem de responsabilidade da pessoa sobre o desenrolar do seu processo de vida reduzindo-a à condição de espectadora de um destino predeterminado.

por outro lado, arriscar este tipo de previsão simples é pressupôr que os factos reais surtem o mesmo tipo de ressonância interior em pessoas diferentes, o que é manifestamente falso: um mesmo acontecimento tem efeitos e significações muito díspares para indivíduos diferentes e inclusivamente para o mesmo indivíduo, em momentos diferentes de vida

poderia acrescentar-se ainda aqui o fenómeno da indução dos acontecimentos: um pouco como na polémica sobre as previsões eleitorais, ao confrontarem-me com a eminência de uma situação, torna-se difícil avaliar se, posteriormente, a sua ocorrência efectiva se ficou a dever a um qualquer destino predeterminado, ou se teria sido o próprio facto de eu ter sido posto de sobreaviso em relação a ela que me fez, mesmo que inconscientemente, provocá-la

por tudo isto, astrologicamente importa sobretudo situar a pessoa em termos do momento presente do seu processo de vida individual e do desenrolar das suas etapas, numa perspectiva de compreensão profunda do ensinamento contido em cada experiência de vida, independentemente do facto real que lhe der corpo


O TAO QUE SE PODE NOMEAR NÃO É O TAO ETERNO

o mapa não é o território , expressão oriunda da neurolinguística, tornou-se, já, um lugar comum em astrologia

todas as linguagens e formas de conhecimento, por muito subtis que sejam, são sempre e apenas aproximações à verdade, visto que esta, em termos últimos, é intraduzível pela mente humana

neste sentido, e recorrendo às palavras de nisargadatta maharaj - um conceito só serve para nos ajudar a desalojar outro, depois devemos prescindir de ambos

da mesma forma, se a astrologia nos permitir um melhor entendimento de nós próprios e do que nos rodeia, ela cumprirá a sua função, como mapa, mas não poderá jamais substituir o território: a vida

por isso, depois de ouvir, esqueça! - deixe que este conhecimento actue em si sem palavras, sem símbolos, sem planetas, sem nada a não ser… ser



CINCO PALAVRAS DO VOCABULÁRIO BÁSICO DA ASTROLOGIA


ELEMENTOS

os quatro elementos, fogo, terra, ar e água, representam vibrações essenciais presentes na natureza e em cada ser humano

são como que a nossa química de base, os alicerces sobre os quais assenta a interpretação de um mapa, e que se encontram em diferentes proporções em cada um de nós, de acordo com a nossa configuração natal


SIGNOS

os doze signos zodiacais são como que a aura psíquica/energética da terra, um imenso depósito de memória e experiência colectivas

cada signo representa uma nuance da mesma energia universal solar que nos anima, associando-se a um elemento específico e, tal como este, tem uma representação variável no mapa de cada ser humano – definindo a forma particular como cada um se sintoniza com essa espécie de reservatório energético universal

todos contemos a totalidade do zodíaco no nosso mapa, em proporções variáveis para cada signo – não há franja da experiência humana que nos possa ser totalmente estranha


PLANETAS

chamamos planetas, por comodidade de expressão, aos corpos celestes mais significativos do nosso sistema solar (incluindo o sol e a lua) que se encontram situados no nosso tema natal de acordo com a sua longitude zodiacal (em um dos trezentos e sessenta graus do zodíaco, num determinado signo)

assim, é fundamental ter em conta, para lá da posição do sol – o nosso signo, na linguagem comum – a de todos os outros astros, que compõem esta espécie de drama celeste

cada planeta representa uma personagem, uma função psicológica, uma vertente da personalidade: pode ser a função mental, intelectual e da comunicação (mercúrio) dos limites e da estrutura (saturno), da expansão e dos valores (júpiter), etc.


CASAS

como o próprio nome indica, as casas astrológicas representam as áreas, os campos de experiência, como que os palcos onde esta tal peça, ou drama, vai acontecer

na astrologia hindu, as casas astrológicas eram vistas como as áreas do encarceramento da alma, sugerindo o quanto nos podemos perder no samsara das formas sentindo-nos distanciados da fonte primordial que, gráfica e simbolicamente se associa ao fundo branco sobre o qual o mapa é traçado

elas são doze, tal como os signos, e estão simbolicamente associadas a cada um deles, representando todo o espectro de experiência humana possível sobre a terra, e, à escala individual, as áreas para as quais cada um pode ser mais solicitado ao longo da sua vida

ASPECTOS

quadraturas, sextis, trígonos, oposições, conjunções, genericamente designados aspectos, são ângulos significativos de longitude zodiacal, entre os planetas e pontos simbólicos do tema, que estabelecem a sua dinâmica intrínseca, estrutural

podem ser, basicamente, consonantes ou dissonantes, assim determinando, pelo menos numa primeira fase de vida, a forma mais ou menos harmoniosa como cada um vai fluir com as diversas componentes do seu ser, no confronto com as circunstâncias de vida, e o próprio tipo de situações que tenderá a atraír

nuno cabral