25/04/2014

o sadhaka secreto 1






com esta publicação inicio a transcrição integral de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa, pelo que nesta obra encontrei de sintético, afim e intimamente ligado à prática do yoga

cada texto (que transcrevo isoladamente, seguindo a própria divisão do autor) surge-me como verdadeiro sutra, simultaneamente invocador e exortador do sadhana (prática) perene, anterior ao corpo, anterior ao sadhaka (praticante) tangente poética ao que pressinto como essencial na prática do yoga enquanto arte de viver (ou arte de morrer, segundo baret)

no intuito de sugerir de forma mais explícita esta afinidade, optei, de forma sistemática, por substituir (em itálico) os termos construtor / construção, recorrentes na obra, por praticante / prática (ou pelos seus vagos sinónimos em sânscrito, sadhaka / sadhana) bem como obra / gesto construtivo por postura - asana - / movimento / corporalidade, ainda assim conservando por vezes, rigorosamente, as mesmas expressões do autor, de tal forma elas se estabelecem em continuidade e harmonia com o paralelo aqui visado

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1.

não é a altura de afirmar nada

tudo deve permanecer oculto na sua pura inanidade (e unanimidade) inabordável

este respeito absoluto é a condição de uma possível germinação futura e a única mediação de um enigma que se confunde com a própria respiração do sadhaka

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2.

a textura mais secreta é o silêncio e é ele o principal fundamento da prática invisível

o ser que constrói o seu abrigo torna invulnerável a sua fragilidade essencial

o subterrâneo conduzirá ao diamante nocturno do sossego

o seu percurso é uma fuga porque a fuga é uma força e o desconhecido, na sua viva virgindade, será o supremo elemento de defesa

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3.

tudo será praticado no silêncio, pela força do silêncio, mas o pilar mais forte da prática será uma palavra

tão viva e densa como o silêncio e que, nascida do silêncio, ao silêncio conduzirá

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4.

os corredores da paciência não serão o local duma virtude consagrada

a fragilidade do ser não será suprimida pelo recurso a uma instância suprema, sempre ausente e puramente ideal

a serenidade na procura será vivida como uma prática desportiva do espírito e uma vertente da inquietação irredutível e da obscuridade insondável do real

o silencio e a difusa luminosidade dos corredores propiciará a temporalidade tranquila da meditação que será uma aceitação da finitude banhada pela suavidade do instante

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5.

o espaço, que ninguém pode desenhar, porque é imperceptível como meio e origem dos nossos gestos e da nossa permanente habitação, é o fundamento absoluto do nosso ser temporal e da nossa continuidade sempre recomeçada

se essa coordenada da nossa existência vacila, perde-se o equilíbrio essencial e a nossa relação viva com o mundo torna-se impossível e insustentável

por isso, a prática será uma construção do espaço com todas as aberturas necessárias para que a orientação vital se assegure nas grandes linhas das paisagens e nas passagens que serão as órbitas suaves e frementes de imprevisíveis astros

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6.

no seio da pura identidade do instante, anterior a toda a reflexividade, abre-se uma falha vertiginosa que é o momento em que a consciência se torna a estranheza de uma semelhança perante a efervescência do instante e ao mesmo tempo o reafirma como identidade reflectida em si mesma e como diferença da identidade irreflexiva

celebrar o instante e consagrar a unidade na diferença e a sua virgindade inicial como a possibilidade da contínua renovação do ser

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7.

o sadhaka terá sempre em conta a flexibilidade da brisa e o peso maciço do ser

a sua prática será contemplativa, abismada entre as falésias de mármore e o rio tranquilo que o envolve

atento ao frémito de ser, à sua redondez corpórea e ao ritmo das suas configurações, construirá a sua branca morada no flanco abrupto do inexpugnável

todas as paisagens serão unificadas segundo o princípio de individuação do ser e da sua integridade solar

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8.

a intensidade de uma dor suscita não a paciência nem a aceitação mas a negação e o ressentimento

perante a agressão anónima do corpo o espírito perde a temporalidade e é incapaz de se sobrepor à violência que o nega e o confunde

a esta negação natural o espírito opõe a violência de uma negação gratuita e inoperante

o ser não pode construir nenhum abrigo, uma vez que a dor é a ruptura insuperável de qualquer  construção e a imposição e exposição do insuportável para a qual não existe nenhum subterfúgio nem estratégia de abafamento ou de redução

para esses momentos o sadhaka não tem nenhum plano, apenas uma sala vazia que não sabe como preencher e que provavelmente ficará vazia

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9.

há momentos em que a consideração da morte se impõe como a consumação prévia da finitude, uma espécie de coroação interna num vácuo de aspirações e de projectos

inverte-se assim o movimento natural do ser para a vida e a sua tensão para o futuro, mas, na extrema negatividade, é ainda uma plenitude que se procura, a plenitude negativa, a plenitude do vazio na cratera negra da negação aceite e assumida como possibilidade última mas também primeira porque a partir da redução ao zero

o ser constrói-se ou tenta construir-se no reduto que lhe resta após tantos assaltos e agressões internas e exteriores

a imaginação da morte é incapaz de figurar a inimaginável destruição mas a sua ponderação pode fortificar uma afirmação negativa do ser como único na sua projecção circular e incessante em torno do núcleo que é ele próprio a flecha e o alvo da imóvel viagem da existência

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10.

às vezes o sadhaka detém-se

a prática afigura-se-lhe um montão de ruínas e, exausto, nem sequer consegue levantar uma perna

recorda então o fulgor de uma manhã inicial, a ligeireza dos movimentos ascensionais, a ingenuidade de uma visão aberta e consonante, as perspectivas puras que se projectavam sobre um mar fascinante na sua lenta e azul tranquilidade

algo de subtil e precioso germinará ainda sob a massa confusa das sensações em que o ser se asfixia e imobiliza?

a vivacidade de uma festa no deserto poderá ainda actualizar a festa de outrora, a festa do princípio de todos os princípios?

o sadhaka é neste momento o ignorante supremo na sua nuvem obscura, trabalhado pelas ondas negativas da desolação

mas este momento, por negativo que seja, é já o despertar para a necessidade de praticar a partir da resistência dos materiais opacos do corpo e do seu peso maciço, em que está petrificada a energia do ser