16/12/2015

cinema sadhana




poderíamos imaginar filmes em que falasse uma verdadeira violência: que fariam com que naquela tela branca, ao fundo de um túnel negro, habitualmente propícia aos adormecimentos, às complacências, aos disfarces, à despesa dos pequenos trocos do desejo, o cinema voltasse a surpreender, ou seja, voltasse a ser necessário

poderíamos imaginar filmes em que falasse um verdadeiro desejo

francis ponge, em "le carnet du boit des pins" escreveu que, durante a guerra, viveu no sul de frança e sentia a falta dos seus livros, então, começou a escrever aquilo que tinha o desejo de ler: fazer da escrita uma compensação de um desejo simples, mas exigente

deveríamos pensar que não existe outro tipo de escrita, nem outros tipos de pinturas, ou de música, ou de filmes

seja como for, a maioria dos filmes é previsível: se eles são, de facto, como qualquer produto social, respostas mais ou menos diversificadas a uma procura específica, esta procura está pervertida

nos países capitalistas, o cinema está indissoluvelmente ligado ao capital e à ideologia

o cinema vende sonhos, o real fantasiado; a fantasia, a satisfação imaginária; a nostalgia, a regressão; às vezes vende utopia, sempre o além, outro lugar

poderíamos imaginar um cinema que não vendesse nada, do mesmo modo que stravinsky dizia que a música não exprime nada.

um tipo de cinema que não considerasse o espectador como um cliente

não lhe lançasse iscos, não o seduzisse, não o desprezasse, não o violentasse, não o adormecesse

um cinema que fosse o oposto da publicidade

em 1974, podia-se ver nas ruas de paris uma surpreendente série de cartazes: um homem com um vago sorriso dirigia-se ao transeunte, um cliente potencial, em nome de um banco muito conhecido, e dizia a verdade: "estou interessado no seu dinheiro"

poderíamos imaginar, sim, já que ainda é possível imaginar, um cinema que não vendesse nada

mas que nem por isso se mantivesse à distância; pelo contrário, que militasse

(que não imitasse; não exibisse; não comercializasse; não recalcasse)

o espectador estaria, enfim, à distância certa: nem enredado em proximidades cúmplices, nem esmagado pelo exercício de uma arte que se auto-proclama inacessível

isto seria um sonho, é claro: qual é o espectador livre, disponível, lúcido, aqui e agora (na alemanha, em itália, nos estados unidos, em frança?)

certamente não o espectador burguês: a burguesia, incapaz de assumir a sua própria cultura - o que esta cultura pode ter tido de revolucionário; o que ainda é revolucionário nela. mais ainda: incapaz de assumir (ou, mesmo, de pensar, a não ser com medo) a cultura que se anuncia. ou seja: a sua própria tumba.

sim, que espectador? o homem do povo, o trabalhador, o proletário, o camponês? mas estes estão excluídos da cultura, pela burguesia, pelo seu estado pelas suas instituições sendo no entanto a eles que pertence a cultura passada por terem sido eles a fazê-la: eles criaram riquezas. é a eles que pertencerá a cultura de amanhã

então, o cinema poderia dirigir-se, hoje, ao homem de amanhã (a aquilo que, hoje, já anuncia ou já existe do homem de amanhã)

isto é um sonho, mas um sonho necessário: de reapropriação

e "quando se quer falar do povo, é preciso fazer-se compreender por ele. mas não é uma questão de forma. o povo não compreende apenas as formas antigas. para desvendar a causalidade social marx, engels, lenine nunca deixaram de utilizar formas novas. lenine não apenas não dizia a mesma coisa que bismarck, mas dizia-o de outro modo. na verdade, ele não pretendia falar com formas antigas ou novas: falava da forma apropriada" brecht

poderíamos imaginar, assim, que a beleza (a violência, o desejo) fosse de novo oferecida, nova, intacta, para ser redescoberta

beleza (violência, desejo) do trabalho (do que transforma) das músicas ou dos textos

por exemplo: a música de bach ou o teatro de pierre corneille (territórios reservados: para especialistas, professores, maníacos)

e oferecida de tal modo que insultasse (os especialistas, os maus professores, os maníacos)

de tal modo que esta música mostre que (ainda) não foi ouvida; estes textos que (ainda) não foram lidos

o que seriam música e textos já ouvidos, senão pó, pó cultural, peças de museu?

que músicas e textos seriam aqueles que não resistissem, que se deixassem domesticar?

e os filmes?

eis o que estaria em jogo: dirigir-se aos que não ouviram nem leram - e não aos que o fazem por dever, por rotina ou por cansaço, e dizer-lhes: pronto, isto também vos pertence e vale a pena ser lido e ouvido (e visto); esta violência é vossa e este desejo também

porque deveria este cinema novo preocupar-se com o passado?

de que modo as revoluções (culturais) deveriam ser guardiãs das heranças?

"guardar a herança não significa, em absoluto, limitar-se à herança" (lenine)

na utilização de formas do passado (bach, corneille ou brecht, schöenberg) a única saudade é a saudade - violenta - de um futuro ao qual estas formas ainda nos chamam

deste cinema diferente, tudo leva a crer que o seu pudor passará por arrogância, a sua pureza por obsessão, a sua nudez por pobreza, a sua riqueza por insolência

cinema considerado desviado, perverso, orgulhoso (talvez um pouco judeu) - e, como tal, destinado aos ghettos

será feito o que for preciso para que seja elogiado ou criticado - sempre em excesso, posto num pedestal ou num corredor… - em todo o caso, não recebido

aliás, nem será preciso fazer-lhe um processo: toda a massa do cinema dominante. pelo simples facto de existir, condena-o (ignora-o, encobre-o, exila-o)

mas e se fosse o contrário?

se este cinema um tanto pobre, marginal, exilado, questionasse, pela sua própria existência, tão perigosamente conquistada, toda a massa do cinema dominante?

se este projecto pudesse ser formulado, não seria então o fruto de uma ambição um tanto ou quanto cómica e excessiva, talvez, até, mística e messiânica?

no entanto, este cinema talvez não tivesse um autor (ou seja, uma pessoa presa à fantasia de ser um demiurgo, referindo-se a uma furiosa necessidade de se expressar que é, unicamente, pessoal)

quem falaria, então?

bach e pierre corneille, unicamente, ou bach ou schöenberg?

poderíamos imaginar então que a palavra não seria nem a de um autor, nem a dos seus personangens, nem a do autor principal, bach ou brecht

não apenas a do autor, dos seus personagens, etc

a palavra do filme, talvez: aquilo que circula no filme, entre estas palavras

no filme: mas o filme não é um receptáculo, nem um filtro

aquilo que circula transforma-se, gera-se entre estas palavras, a sua resistência e a resistência do material - materiais concretos: câmaras e microfones e (menos maleáveis) rostos, corpos, modos de falar. e mais: luz, vento, sombras…

e tudo isto seria inscrito; ou como um marceneiro diria de uma madeira e freud de um sonho, tudo isto trabalharia

o que falaria, então, seria uma luta, materialmente inscrita na superfície branca, ao fim do túnel negro: um conflito de formas, sentidos e materiais

o filme seria um documentário sobre esta luta

este conflito não seria um espectáculo

é preciso tomar partido, juntar-se à luta; a menos que se contente em ser o que há de pior, ser um espectador num filme: uma sombra entre sombras

então: estes filmes não seriam filmes nem estes espectadores seriam espectadores?

alguém quer quebrar as velhas máquinas ou proibir a viagem?

como disse pierre boulez a propósito de stravinsky: "ele simplesmente agiu"

por exemplo, veríamos um homem lutando com um texto, a sua natureza material: metro, escansão, som e sentido

a braços com uma língua que não é a sua nem a do seu tempo, mas que é fortemente actualizada por estas distâncias, o seu efeito de estranheza, a princípio perturbadora e depois curiosamente familiar

lentamente queimado pelo sol - não por projectores - com os lábios a rachar, a pele a avermelhar

a sua voz, o seu ritmo, o modo como se move, todos eles submetidos à rivalidade do vento

este discurso seria captado numa malha cerrada de outros discursos, que vencem outras resistências: o cansaço, o sol ou de novo o vento, ou o burburinho que sobe da cidade, as suas multidões ou o seu tráfico: ou ainda pelo fluxo regular de uma fonte

e estes discursos, estas resistências, as suas fusões e os seus choques, a sua malha, o seu tecido, a sua textura, estariam inscritas nas lutas pelo poder, em paixões, interesses, desejos

aqui poderiam ser lidas outras forças, outras lutas, outras resistências; a queda de um império ou um amor impossível. em todo o caso, a história, ou seja, a política

mais uma vez, e por muito tempo, brecht: "o aspecto dramático (a violência dos confrontos) as paixões (o grau de calor) a superfície coberta por uma personagem, nada disso pode ser visto ou transmitido separadamente do funcionamento da sociedade"

um homem poderia ser visto, por exemplo, às voltas com a música ou o dinheiro

às voltas com a música e o dinheiro (a realidade e o desejo)

em todo o caso, com a história, que é, uma vez mais, a política

este cinema mostraria os homens às voltas com aquilo com o que ele próprio está às voltas (o desejo, o dinheiro, o trabalho, a política)

não mostraria como um espelho o facto: o que já existe

mas mostraria um processo: algo que existe, a marca do combate

não apenas a lucidez mas o seu espectro

estes seres às voltas com o trabalho, com o sol, o vento, o texto, o desejo, o dinheiro, as paixões, o cansaço, com a história, já não seriam actores

porém homens, amadores ou oficiais, trabalhadores ou ociosos, carne e desejo, confrontando textos, materiais, resistências e a sua própria história

lutando também, e nus, ao sol e à chuva

também neste aspecto o filme seria um documentário

não se contariam histórias neste cinema, senão a história: paixão de todas as paixões, narrativa de todas as narrativas

poderíamos imaginar, enfim, que a firmeza do traço final - inscrito num enquadramento, numa teia de sons - apagaria (daria a ilusão de apagar: mas sem deixar de mostrá-lo) o trabalho. como por um pudor extremo. o esforço absorvido pelo seu objectivo, as marcas inscritas e imediatamente ultrapassadas numa realização sempre adiada

haveria então a história (e não histórias) homens e mulheres

e blocos (e não cenas)

cada filme seria um jogo entre blocos - de duração desigual - espaçados: em que o espaçamento também contaria, em que o espaçamento - o afastamento, o branco, a elipse: a supressão das articulações narrativas através das quais, habitualmente, o cinema denuncia a sua própria enfermidade - o intervalo (como teria dito vertov) seria, enfim, uma figura

em que tudo seria signo: o vazio e o pleno, a palavra e o silêncio, a imobilidade e o movimento

em que o filme diria que deve ser lido. como o real deve ser lido (para ser transformado)

e que, diante dele, não estivéssemos tão desarmados - ou tão armados - como diante do real

em que já não seriam dadas a ler (perceber, transformar) significações - fixadas, paradas, mortas - e sim relações (de matérias, de sentidos - de produção)

mas nem por isso o filme seria uma pura metáfora (o modelo reduzido ou o deslocamento estético) das relações sociais: isto seria demasiado fácil

nem seria um modelo, tendo particular repugnância em dar-se como tal (nada de "dar lições")

mas no seu lugar, com os seus meios, a sua visão, seria o lugar de uma transformação. não dando nenhuma mensagem, mas sendo um indício - ao seu modo - de que o sismo pode começar, já começa e será, aqui ou por outros, levado a termo

quando muito, a indicação deste sismo, o índice da fissura, a euforia de uma destruição (pourquoi pas détruire, dit-elle?) que sabe ser de algum modo (onde) uma primeira pedra

como se vê, isto já é muito

cinema sem filiação - sem origem - teríamos a tentação de dizer mas, mal fosse formulada, esta revelação revelar-se-ía ilusória (mentirosa)

aqui também, trata-se do contrário: as obras de ruptura devem reinventar os seus precursores

alguém já viu os filmes de dreyer: a sua violência, o seu desejo - a sua forma aleatória e peremptória?

a exigência deste cinema é a mais simples e a mais exorbitante (hoje - e por isto é, poderia ser, recebido como algo que fere - mas por quem?)

estes filmes (estes actos) existem, frágeis, insistentes, são blocos de amour fou: MACHORKA-MUFF; NICHT VERSÖHNT ODER ES HILFT NUR GEWALT, WO GEWALT HERRSCHT; CHRONIK DER ANNA MAGDALENA BACH; DER BRÄUTIGAM, DIE KOMÖDIANTIN UND DER ZUHÄLTER; LES YEUX NE VEULENT PAS EN TOUT TEMPS SE FERMER OU PEUT-ÊTRE QU'UN JOUR ROME SE PERMETTRA DE CHOISIR À SON TOUR; GESCHICHTSUNTERRICHT; EINLEINTUNG ZU "ARNOLD SCHÖENBERGS BEGLEITMUSIK ZU EINER LICHTPIELSCENE; MOSES UND ARON

são assinados por jean-marie straub e danièle huillet

jean-andré fieschi

(tradução de antónio rodrigues)




04/10/2015

intensité



depositar o corpo na linha

depositar a vida na linha

ne plus rien faire, laissez-faire


15/09/2015

hoje




le monde commence aujourd'hui

jacques lusseyran

on commitment






until one is committed, there is hesitancy, the chance to draw back, always ineffectiveness

concerning all acts of initiative (and creation), there is one elementary truth the ignorance of which kills countless ideas and splendid plans: that the moment one definitely commits oneself, then providence moves too

all sorts of things occur to help one that would never otherwise have occurred

a whole stream of events issues from the decision, raising in one's favor all manner of unforeseen incidents and meetings and material assistance, which no man could have dreamed would have come his way

whatever you can do, or dream you can do, begin it

boldness has genius, power, and magic in it

begin it now


william hutchinson murray

02/09/2015

agora, ainda





sim, é isso mesmo, caro lucilius, reivindica a posse de ti próprio

até agora, tomavam, escondiam, disfarçavam o teu tempo e ele escapava-se

recupera-o e cuida-o!

é verdade, acredita: umas partes do nosso tempo são-nos retiradas, outras desviadas e o que resta dele escorre-nos entre os dedos

mas mais deplorável ainda é perder o tempo por negligência

e, se olharmos com atenção, o essencial da vida desenrola-se a agir de forma errada, uma boa parte a não fazer nada, a vida toda, em suma, a fazer outras coisas que não aquelas que importa fazer

consegues citar-me o nome de um homem que reconheça o preço do tempo, que conheça o valor de um dia, que compreenda que morre, precisamente, a cada dia?

o nosso erro está em vermos a morte mais à frente

no essencial, ela já passou - a parte da nossa vida que deixámos para trás pertence à morte

faz portanto, meu caro lucilius, aquilo que me dizes na tua carta: agarra cada hora

serás menos dependente do amanhã se te apropriares do hoje

remetemos a vida para mais tarde - entretanto ela passa

séneca

("apprendre à vivre - lettres à lucilius")

31/08/2015

agora





talvez o que me tenha acontecido seja uma compreensão - e que, para eu ser verdadeira, tenho que continuar a não estar à altura dela, tenho que continuar a não entendê-la

toda compreensão súbita se parece muito com uma aguda incompreensão

não. toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão

(…)

mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma actualidade permanente

e isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje

porque o deus não promete

ele é muito maior que isso: ele é e nunca pára de ser

somos nós que não aguentamos esta luz sempre actual e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já

o presente é a face hoje do deus

o horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos deus

é com os olhos abertos mesmo que vemos deus

e se adio a face da realidade para depois da minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-lo e assim penso que não o verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo

sei que o que estou sentindo é grave e pode me destruir

porque - porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é

e eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só aguento a sua promessa

a notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco

mas é só por medo. é medo

pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida

e este é o maior susto que eu posso ter

antes eu esperava

mas deus é hoje: seu reino já começou

e seu reino, meu amor, também é deste mundo

eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa, e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é adulto e continua a se prometer maturidade

e eis que eu estava sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se cumpriu

anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante

eu preferia continuar pedindo, sem ter coragem de já ter

e eu tenho

eu sempre terei

é só precisar, que eu tenho

precisar não acaba nunca pois precisar é a inerência de meu neutro

aquilo que eu fizer do pedido e da carência - esta será a vida que eu terei feito da minha vida

não se colocar em face da esperança não é a destruição do pedido! e não é abster-se da carência

ah, é aumentá-la, é aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência

não é para nós que o leite da vaca brota mas nós o bebemos

a flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro e nós a olhamos e cheiramos

a via láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos

e nós sabemos deus

e o que precisamos d'ele extraímos (não sei o que chamo de deus mas assim pode ser chamado)

se só sabemos muito pouco de deus, é porque precisamos pouco: só temos d'ele o que fatalmente nos basta, só temos de deus o que cabe em nós

(a nostalgia não é do deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante: sentimos falta de nossa grandeza impossível - minha actualidade inalcançável é o meu paraíso perdido)

sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior

o leite, a gente só o bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa

quanto mais precisarmos, mais deus existe

quanto mais pudermos, mais deus teremos

ele deixa

(ele não nasceu para nós nem nós nascemos para ele, nós e ele somos ao mesmo tempo)

ele está ininterruptamente ocupado em ser, assim como todas as coisas estão sendo mas ele não impede que a gente se junte a ele e, com ele, fique ocupado em ser, numa intertroca tão fluida e constante - como a de viver

ele, por exemplo, ele nos usa totalmente porque não há nada em cada um de nós que ele, cuja necessidade é absolutamente infinita, não precise

ele nos usa, e não impede que a gente faça uso d'ele

o minério que está na terra não é responsável por não ser usado

nós somos muito atrasados, e não temos ideia de como aproveitar deus numa intertroca - como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe

daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que deus sempre esteve!

quem esteve pouco fui eu - assim como diríamos do petróleo de que a gente finalmente precisou a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim como um dia lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está

certamente ainda não precisamos não morrer de câncer

tudo está

(talvez seres de outro planeta já saibam das coisas e vivam numa intertroca para eles natural; para nós, por enquanto, a intertroca seria "santidade" e perturbaria completamente a nossa vida)

o leite da vaca nós o bebemos

e se a vaca não deixa, usamos de violência

(na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida-e-morte)

com deus a gente também pode abrir caminho pela violência

ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós, ele nos escolhe e nos violenta

só que minha violência para com deus tem que ser comigo mesma

tenho que me violentar para precisar mais

para que eu me torne tão desesperadamente maior que eu fique vazia e necessitada

assim, terei tocado na raiz do precisar

o grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade

tenho que me violentar até não ter nada e precisar de tudo; quando eu precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida

também se pode violentar deus directamente, através de um amor cheio de raiva

e ele compreenderá que essa nossa avidez colérica e assassina é na verdade a nossa cólera sagrada e vital, a nossa tentativa de violentação de nós mesmos, a tentativa de comer mais do que podemos para aumentarmos artificialmente a nossa fome - na exigência da vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e o artificial é, às vezes, o grande sacrifício que se faz para se ter o essencial

mas, já que somos pouco e portanto só precisamos de pouco, porque, então, não nos basta o pouco?

é que adivinhamos o prazer. como cegos que tacteiam, nós pressentimos o intenso prazer de viver

e, se pressentimos, é também porque nós nos sentimos inquietantemente usados por deus, sentimos inquietantemente que estamos sendo usados com um prazer intenso e ininterrupto - aliás, a nossa salvação por enquanto tem sido a de pelo menos sermos usados, não somo inúteis, somos intensamente aproveitados por deus; corpo e alma e vida são para isso: para a intertroca e o êxtase de alguém

inquietos, sentimos que estamos sendo usados a cada instante - mas isso acorda em nós o inquietante desejo de também usar

e ele não só deixa, como necessita ser usado, ser usado é um modo de ser compreendido (em todas as religiões deus exige ser amado)

para termos, falta-nos apenas precisar

precisar é sempre o momento supremo

assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver

a revelação do amor é uma revelação de carência - bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida

se abandono a esperança, estou celebrando a minha carência, e esta é a maior gravidade do viver

e, porque assumi a minha falta, então a vida está à mão

muitos foram os que abandonaram tudo o que tinham e foram em busca da fome maior

ah, perdi a timidez: deus já é

nós já fomos anunciados e foi a minha própria vida errada quem me anunciou para a certa

a beatitude é o prazer contínuo da coisa, o processo da coisa é feito de prazer e de contacto com aquilo de que se precisa gradualmente mais

toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade

pois ser real é assumir a própria promessa: assumir a própria inocência e retomar o gosto do qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo


clarice lispector

(a paixão segundo g.h.)

17/08/2015

variações de neptuno




sei que quanto mais amo menos devo conhecer

não sei explicá-lo

sei que a luz, ao aproximar-se do meio-dia, se faz tarde e anoitece

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na amizade, muitas vezes,  a distância é o lugar mais próximo e de maior proximidade, isto é, onde a presença do outro, de tão inteira, já não pode ser medida

sendo um lugar cheio de saudade, esse é também um lugar feliz porque aí, sem cessar, se regressa e se avista

é como o movimento de quem caminha num espaço alto e estreito: é preciso separar os braços e desunir as mãos, para que possa alcançar-se o equilíbrio

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na impossibilidade de a amizade ter um fim, continuar a amar é dizer adeus


daniel faria

(o livro do joaquim)