(tradução, adaptação e acréscimos - nc - 2011)
sentir-se vitimizado é um conceito; é, ainda, uma pretensão
há pessoas que se comprazem nesse papel, considerando-se vítimas da sociedade, dos seus pais, do seu corpo, da sua educação, da sua má pronúncia... trata-se de uma reivindicação como qualquer outra. sentir-se orgulhoso vai dar ao mesmo. uns são orgulhosos do seu passado, outros sentem-se vítimas dele: cada um com os seus fantasmas
não temos passado senão aquele que inventamos no instante, como exibição do nosso cartão de visita. o passado não existe. inventamo-lo sempre que ficamos sob a pressão do medo
não existe vítima. numa sala de boxe, as pessoas não se sentem vítimas cada vez que recebem um golpe, não dizem "sou vítima, sou vítima, sou vítima" - porquê? - aquelas pessoas são alvo de golpes que não agridem psicologicamente
há quem se sinta vítima da sociedade por não poder partir para férias, outros por não terem meios para comprarem uma sobremesa para os filhos, um carro ou uma pequena casa. cada um com a sua fantasia. basta fazermos uma viagem ao nepal ou à índia para nos sentirmos consideravelmente ricos, mesmo se não pudermos proporcionar a tal sobremesa aos filhos - podemos sempre dar-lhes arroz
este sentimento de vitimização justifica-se no mundo imaginário em que vivemos mas, profundamente, ele é grotesco - através dele, torno-me o joguete do meu próprio condicionamento
no mesmo sentido, a espiritualidade é um conceito
aquilo que cada um projecta na pretensa espiritualidade, aos seis anos projectava no grupo de escuteiros, aos dez anos na equipa de futebol, aos vinte na política, aos trinta no casamento... esta carência que tentávamos compensar por uma boneca, um combóio eléctrico, uma boa nota na escola, uma carreira, um filho, projectamos depois na espiritualidade. é o "pot-pourri" dos nossos medos! cada um, segundo a forma das suas ansiedades, vai sentir-se atraído por um certo tipo de espiritualidade. quando o fenómeno se apresenta, há que respeitá-lo: mas com a noção de que não se trata de nada mais que medo
a verdadeira espiritualidade é gratidão
meister eckhart diferenciava a verdadeira oração, prece do coração, celebração do acto divino, da oração proveniente da carência, que implora por uma rectificação. esta não é uma prece mas uma forma de abcesso
a verdadeira prece é agradecimento. a verdadeira espiritualidade é um dinamismo que se incarna numa disponibilidade a cada instante - quando o cancro, a doença, o nascimento, a violência, a emoção, vêm, estar disponível: aí encontramos a profundidade
quando nos confrontam com propostas que não correspondem à nossa visão do mundo, ficamos escandalizados
mas o verdadeiramente intolerável é a pretensão de saber - o intolerável, como reacção, demonstra que qualquer coisa perturba o nosso sistema de pretensão e põe em questão o mundo que criámos para nos defendermos, para existirmos. o que irrita é o que questiona a nossa pretensão de saber. há que viver a realidade, só a aceitação suplanta o sentimento do intolerável
andamos durante anos a considerar um violador ou um assassino horrendos e, um dia, observamos e compreendemos o funcionamento interior daquele que tem necessidade de violar, matar, de criar sofrimento para alcançar alguns instantes de bem estar. tal como nós fazemos outras tantas coisas - igualmente questionáveis - e pelos mesmo motivos. quando nos apercebemos da dimensão do desespero, tristeza, infelicidade que norteiam aqueles actos (como, tantas vezes, os nossos) eles surgem-nos como menos intoleráveis. compreendemos, simplesmente, onde se situa a acção justa
o intolerável é a defesa do nosso próprio mundo. é a origem de todos os fascismos (comunismos, outro ismos...)
tentar interditar o que nos é intolerável, auto-erigidos à qualidade de napoleões é a nossa atitude mais frequente
o que é profundamente sentido torna-se a porta para o essencial. se eu tiver a maturidade de sentir o medo, a raiva, na sua forma instantânea e não na sua história, este pressentimento transporta em si o germe da sua própria reabsorção na disponibilidade
a situação que me incomoda é uma dádiva que me faço para me reencontrar na emoção profunda. não há nada no exterior. acabamos por compreendê-lo mais cedo ou mais tarde
pensar é o medo de sentir, é uma compensação, em que me conto uma história, feliz ou infeliz. a ideia de ser livre traduz uma falta de clareza. o sentimento de disponibilidade é uma experiência profunda. a ideia "sou livre", tal como a ideia "estou tranquilo" é uma forma de agitação
referenciar-se a um não saber toca no sagrado. em contrapartida, a espiritualidade que aprendemos, que estudamos, não tem qualquer carácter sagrado - é uma "mise-en-scène" miserável destinada a pessoas que têm medo de viver. a espiritualidade que deriva do sagrado é não pensada, não organizada, não elaborada, não utilizável. essa espiritualidade é o próprio sagrado
a espiritualidade não é um refúgio, um meio, uma muleta. ela não existe para compensar o fracasso de uma vida. é um dinamismo, é o pressentimento de que os acontecimentos da vida têm um sentido para lá do pensamento. a espiritualidade é este pressentimento da humildade, dum total não-saber.
quando desperto para esta não compreensão da vida, quando paro de pretender explicar o que me acontece, de ter necessidade disto ou de pensar que aquilo não devia ocorrer, há humildade. finda a pretensão de saber o que é correcto para mim ou para o mundo, ocorre uma escuta. e essa escuta é, ela própria, o sagrado, a espiritualidade
todo o saber espiritual é uma miserável caricatura. todos os ensinamentos e codificações espirituais são actos de cegos a conduzirem outros cegos. o saber vem do pensamento, da memória, o que é que pode aí haver de sagrado?!
a espiritualidade que proporciona segurança não tem qualquer valor, excepto, talvez, no plano psiquiátrico. a espiritualidade que sabe o que se deve fazer, não fazer, o que é justo ou injusto, moral ou não, participa do universo policial posto em marcha pela sociedade. tal poderá ter algum significado ao nível jurídico mas não comporta nada de sagrado. é, simplesmente, uma ideologia que, como todas, provém do medo. sem medo, não tenho necessidade de ser o que quer que seja, de me identificar com isto ou com aquilo. é o medo que me inventa: crer-se francês, branco, negro, judeu, rico, pobre, budista, hindu, cristão, ateu: vem tudo do medo. num movimento de não-medo, não reivindico o que quer que seja e essa não reivindicação abre-me à disponibilidade. tudo o que me aparece se me torna próximo, fácil, profundamente eu próprio. não encontro nada senão eu próprio. não há nada de estranho ou exterior
quando estou com os meus filhos, não estou constantemente a pensar "amo o meu filho, amo o meu filho, amo o meu filho". quando estou com a minha mulher, não digo a todo o momento "amo a minha mulher, amo a minha mulher, amo a minha mulher"; quando estou com o meu cão, não estou sempre a afirmar "amo o meu cão, amo o meu cão, amo o meu cão" - não há necessidade de articular o inevitável
eu amo o meu cão, naturalmente: não há nada que eu não possa amar. amo aquilo que se me apresenta. eu amo o meu filho, mas quando tomo nos braços o filho da vizinha, amo-o menos?... deixamos de necessitar de uma localização. amamos aquilo que está ali, frente a nós, porque não há mais nada!
a certa altura perdemos o hábito de nos fazermos uma narrativa da nossa vida - quando comemos espargos saborosos, deixamos de ter que pensar - "que espargos tão bons que eu estou a comer" - o sabor dos espargos é suficientemente preenchedor e pleno para nem deixar surgir o comentário
isto não significa que não possamos continuar a formular as coisas. os cães, por exemplo, adoram ouvir palavras ternurentas. quando estamos com o nosso cão podemos dizer-lhe, uma e outra vez, o quanto ele nos é querido, essa expressão funciona como uma carícia de uma mão
podemos encontrar alguém e confessar-lhe o nosso amor - mas trata-se de "uma maneira de dizer" - podemos fazer o mesmo para com a nossa mão, um escritório, um carro, uma pedra no jardim, a lua... é belo proclamar o nosso amor à lua, podemos fazê-lo em voz alta sem que isso se torne perturbante. mas, a certa altura, quando olhamos para a lua, produz-se uma tal emoção que só um esboço de uma lágrima nos nossos olhos exprime esse sentir, deixa de haver o dinamismo de o declarar demasiado alto, é um amor sem cobrança, deixamos a lua livre. há, apenas, admiração
em certas circunstâncias, pela alegria da pantomima, podemos até perguntar à nossa amante se ela nos ama. podemos lançar essa interrogação ao nosso cão ou ao nosso filho de cinco anos, mas pela pura alegria da expressão, em que a palavra se torna ligeira, gratuitamente - pelo facto de a palavra ser nada, podemos brincar com ela, não há nada de profundo ali, só a emoção onde o diálogo acontece é profunda
não podemos amar enquanto pessoas, o amor é contemplação e essa emoção não se torna viva senão na ausência de um "eu". quando pretendemos amar, rebaixamos o outro ao nosso imaginário e ao nosso fantasma, é uma forma de agressão - utilizamos o outro, a imagem que temos do outro, para satisfazermos a nossa vaidade, a nossa fantasia do instante e, quando o outro já não é o mais conveniente, trocamo-lo.
aquilo que fazemos aqui faz ressonância a pouca gente. a maior parte das pessoas tem necessidade de um ensinamento, de um guru, duma tradição que possa seguir. aqui, não encontramos nada disso. não há guru, ensinamento, nada vos é pedido. regressarão a casa isentos de qualquer acréscimo ou competência. pouca gente tem a capacidade, maturidade ou o grau de loucura para gastar tanto tempo para nada
porém, esse nada, num dado momento, permanecerá convosco para sempre. todos os ensinamentos que podemos aprender, iremos esquecê-los. todas as técnicas que desenvolvemos, um dia deixaremos de poder praticá-las. deixaremos de poder referenciar-nos a tudo o que foi elaborado pelo pensamento e que nos pareceu tão importante, porque o nosso cérebro, o nosso corpo, deixarão de o permitir
esta emoção, contudo, vai ficar - acompanhar-nos-à no nosso leito de morte, quando todos os outros sentidos pararem de funcionar. ela é o coração das coisas. tudo o resto é distracção, superficialidade
é indispensável que desperte em nós essa total incapacidade de ser preenchido por o que quer que seja. enquanto um sorriso, um olhar, um amor, uma carícia, uma situação me podem contentar, permaneço indigno da questão profunda, da escuta profunda - porquê? -
porque não é verdade! nada pode satisfazer o coração do ser humano, que não seja o seu próprio desmoronamento. a certa altura, chega-nos a graça de não poder continuar a ser satisfeito por um objecto. essa não satisfação é o reservatório de energia que permite essa interrogação constante, em que contemplo, a cada instante, a minha pretensão, a minha arrogância, o meu sofrimento. contemplo-as numa total abdicação de qualquer intenção de as mudar
na exacta medida em que transportamos ainda em nós a capacidade de nos satisfazermos e tranquilizarmos através de um automóvel, uma mulher, um cão, uma profissão, um futuro, um passado, um saber, uma espiritualidade, um ensinamento, ainda não há esse ardor indispensável à explosão daquilo que deve rebentar. essa total loucura de insatisfação é a energia necessária à explosão daquilo que em nós é superficial
entretanto, há momentos em que pressentimos profundamente que aquilo que procuramos não é isto nem aquilo; depois, "isto ou aquilo" enfeitiça-nos e eu digo que viver é maravilhoso e, aí, traio em mim a busca profunda. não se trata de uma traição moral mas de uma traição energética, porque a energia deixa de ficar disponível para essa loucura constante e é da intensidade dessa loucura que depende aquilo de que falamos aqui
essa energia não fica disponível senão na insatisfação permanente mas que deixa de ser insatisfação, porque chega uma altura em que o dinamismo de nos encontrarmos numa situação desaparece
podemos dar graças às situações, porque a vida é maravilhosa; a cada instante encontramos o novo, colocamos a mão por cima e acontece como o açúcar na água, deixamos de poder apropriar-nos de o que quer que seja. é um momento muito delicado, um pouco como o fio da navalha... tenho apenas direito a contemplar
na sua maior parte, os que me rodeiam continuarão, provavelmente, a sentir necessidade de garantirem a sua própria segurança, inventando-me desta ou daquela forma... mas, a certa altura, deixamos de poder concretizar-nos nas situações, o que não nos impede de irmos fazendo aquilo que temos a fazer: se temos filhos alimentamos os filhos, se temos amigos convivemos com os amigos, se temos uma cama fazemos a cama...sem qualquer dinamismo no sentido de nos encontrarmos nessas actividades
isto poderá parecer um pouco frio, num certo nível, mas, pelo contrário, é tremendamente caloroso, é uma loucura discreta, da qual só os mais íntimos se apercebem. porque deixamos de poder pertencer ao que quer que seja, a própria expressão "pertença" esvazia-se de sentido
a necessidade de ser qualquer coisa vem da pertença
aqui, não há segurança. a certeza vem de um saber mas aqui falamos de um não-saber, profundamente desconfortável para a pessoa, enquanto personalidade e para os que a rodeiam - quando lhes dizemos: "não posso fazer nada por ti, absolutamente nada" para muitos, trata-se de um grande choque. a pessoa deixa de poder representar um papel, o que pode acarretar, em seu torno, quer um amadurecimento, quer o desencadear de crises psicológicas
não podemos conservar uma segurança visando a não segurança: sinto-me pronto a largar todas as minhas referências? a deixar a minha raça, o meu nome, o meu país, a minha família, os meus filhos, o meu carro, a minha casa, o meu corpo, tudo o que eu possa chamar "meu"? estou disposto a não me apropriar de mais nada, nem do meu passado, nem do meu futuro, nem das minhas emoções? estou disponível para contemplar sem expectativa?... está tudo disponível no instante. não há necessidade de "sadhana", de busca espiritual. não há necessidade de nada. apenas, no instante imediato, sacrificar as nossas pretensões a ser o que quer que seja.
quem está livre para não ter nada?
aquilo que numa dada época nos fazia felizes, mais tarde deixa-nos indiferentes. mas não se trata de algo que possa ser provocado. enquanto continuamos satisfeitos por termos um automóvel vermelho, uma mulher loira, um corpo equilibrado, um futuro, um passado, uma raça, um país, há que vivê-lo. um dia, todas essas coisas deixarão de significar o que quer que seja para nós
mas, sobretudo, evitar
tentar não ser nada, senão transformamos uma pura constatação num conceito como qualquer outro. evitemos tornar-nos um desses famosos "iluminados" da califórnia ou outros, afins, cujo obscurecimento é de tal ordem que crêem viver na claridade
não ser nada não é uma qualidade mas uma constatação. portanto, "não posso pretender ser alguém" - a pretensão está em ser o que quer que seja. não se trata, portanto, de decidir não ser nada. um belo dia, deixamos de pretender ser napoleão, não teremos mais necessidade de nos sentirmos a existir como "coisa", para viver. isto "vem", naturalmente, pelo que, não se trata de substituir uma ideia pela outra: "sou nada! sou ninguém"! - temos outra fantasia!
nada querer obter, não ambicionar iniciação, transmissão, ensinamento: tudo isto me embaraça, me tolhe, me encerra. não, não desejo nada - aí, referencio-me ao espaço, à ressonância
dar sem haver pessoa que dá. quando dou, descondiciono-me. dar, traz liberdade. a vida não é senão dádiva, não há separação
enquanto quero alcançar, receber, seguir um ensinamento, não posso senão recusar esse ensinamento que tenho a pretensão de desejar. como alguém que solicita uma iniciação, que reclama um presente. uma oferta não se exige, fica-se, simplesmente, disponível a ela. a iniciação, o ensinamento, o presente, acontecem na nossa disponibilidade. não há nada a ambicionar. na não cobrança, recebe-se tudo. quando ambiciono digo não
o mesmo para a compreensão: não há nada que possamos compreender. a clareza apresenta-se apenas na ausência da pessoa. logo que afirmo "compreendi", "caio na sopa". é como dizer: "sou iluminado" - é um emprego rentável, mas não mais que isso
a compreensão não traz nada. nada pode ser compreendido. nada precisa de análise. interpretar é uma fantasia. na verdade, basta deixar de projectar constantemente a não-compreensão
o professor é uma caixa de ressonância. quando ele nos encontra, ou é tocado pelo nosso perfume, pressente um certo número de ritmos, de movimentos, de sensibilidades. essa ressonância, essa vibração, sugere-lhe que faça a transmissão de atitudes que participam dessa mesma família vibratória
quando concretizamos as técnicas que nos foram transmitidas, o facto de ele ter colocado a tónica sobre a nossa sensibilidade mais que na aquisição de o que quer que seja, faz com que essa ressonância técnica se traduza de forma diferente na prática de cada dia
se o aluno tenta, pelo pensamento, lembrar-se da técnica que foi transmitida, vai dissociar-se dessa ressonância e não fará mais que reproduzir um esquema por memória. aquilo que proporciona uma segurança psicológica acarreta um adiamento da verdadeira clareza, procurar o que quer que seja numa actividade não pode senão remeter-nos ao nosso marasmo
inversamente, aquele que, livre de intenção, deixa ressoar em si a atmosfera, mais que a técnica que lhe foi transmitida, cada vez que se disponibiliza tem um contacto profundo com a corrente de vida onde professor e aluno se encontram eternamente unidos, onde a técnica não é mais que um suporte para permitir essa descoberta. suporte, também, ao entendimento de que a técnica é a expressão directa dessa ressonância
apercebemo-nos de que não há nada de pessoal na vida. por isso, em tempos idos, as obras não eram assinadas - ninguém se tomava a si próprio como criador. só deus, ou a vida, eram reconhecidos como criadores. e esses criavam, através das mãos, do pensamento ou da palavra. sem apropriação
podemos senti-lo, claramente, nos sermões de meister eckhart: ele nunca afirmou conhecer a verdade, dizia apenas que a verdade, que o atravessava, vinha directamente do coração de deus. sem se pretender alguém ou alguma coisa em particular, ele foi o instrumento perfeito. oriundo directamente da perfeição, o seu discurso pode ser considerado como revelação. porque ele se perdeu a si próprio completamente, deus pôde falar através dele
a prática do yoga, os múltiplos exercícios que existem, servem-nos para fazer a transposição desta mesma constatação para um plano sensorial. este pressentimento, esta abertura face à vida, vai-nos tornando mais disponíveis. nessa disponibilidade, pode acontecer o encontro com uma corrente de investigação, o próprio yoga poderá revelar-se
mas aquilo de que necessitamos está sempre presente, junto a nós. as técnicas que participam desta investigação fazem ressonância apenas àqueles que vivem essa intimidade com o momento presente
para poder receber estes suportes o aluno deve estar livre de expectativa, de cobrança. aquele que quer ser ensinado não tem capacidade de receber. a cobrança vai-se apagando, pouco a pouco, substituída por uma escuta não orientada, sustentada pelo professor. uma relação única, impessoal mas mais íntima que qualquer outra, vai-se instalando. o aluno está presente, sem exigência. essa espera sem expectativa é o espaço no qual a transmissão se concretiza. nada de objectivo é transmitido mas há transmissão, "entrada na via". estes momentos de intimidade, amiúde surgidos no silêncio, são o fermento da revelação
encontrar um grande guru não serve para nada. é sabido o quanto imensas pessoas cortejaram jean klein ou nisargadatta maharaj e continuaram miseráveis
a atitude de escuta perante a vida permitirá igualmente a escuta nestes encontros. numa não expectativa, eles podem florescer, a vida expandir-se. mas se procuro, não escuto. posso acumular encontros maravilhosos, continuarão a ser uma mera colecção
a busca espiritual é uma fuga
vamos descobrindo também que não há sabedoria. há que respeitar quem tem "experiências espirituais" mas isso não nos diz respeito. o que pode ser "experimentado" deixa-nos indiferentes. o que nos assiste é a luz por trás das experiências. chega uma altura em que chegamos a desenvolver uma espécie de repulsa face ao que pode ser experimentado
todas as experiências são mentais e aquilo que está para lá do mental não se experimenta. a escuta não se pode objectivar. o dinamismo abandona-nos
num outro plano, podemos constatar que há patamares de defesa que vão caindo. damo-nos conta de que hoje alguém nos insultou, ou nos criticou desta ou daquela forma e que nos apercebemos do quanto essa pessoa não podia fazer outra coisa, o quanto, segundo o seu ponto de vista, ela tinha razão. apercebemo-nos de que há dez anos a teríamos estrangulado pelo facto, há cinco teríamos ficado deprimidos e que hoje simplesmente escutámos...
a este nível, sim, podemos constatar uma forma de progressão - uma progressão da nossa ausência de imaginário. não nos sentimos atacados, postos em causa, agredidos pelo acontecimento. a ocorrência tornou-se neutra para nós, enquanto que antes poderia ter provocado um drama
podemos constatar este tipo de mudança - antes, quando ouvíamos falar de um sábio, não podíamos impedir-nos de ir vê-lo. hoje em dia, falam-nos de um sábio e nós ficamos tranquilamente com a nossa cana de pesca. deixamos de ser movidos pelo dinamismo de ir ouvir quem quer que seja. compreendemos que tudo o que temos a escutar é a nós próprios. não há mais nada
quando ouço falar de um mestre espiritual, posso sentir uma forma de alegria - porque é maravilhoso que haja pessoas que param de se queixar. mas deixa de haver o mínimo dinamismo no sentido de ir ao encontro de qualquer coisa ou qualquer pessoa. fazê-lo para quê? quem é que me pode dar o meu silêncio? quem é que me pode dar a visão? nada. ninguém
esta transformação que vou constatando em mim não é uma progressão: é uma perda de imaginação. ficamos com cada vez menos imaginação. ansiamos menos e menos. ficamos mais e mais presentes, sem intenção. mas não se trata de uma progressão por acumulação. numa dada época, quando uma mulher passava diante de nós instantaneamente surgia o pensamento de que esta poderia ser a mulher da nossa vida. presentemente, uma mulher passa diante de nós: é uma mulher a passar diante de nós, sem mais imaginário. não criamos nada com o acontecimento. o acontecimento é o que é
porém, quando o deixamos livre, o acontecimento é mágico - porque não há nada que não seja extraordinário. e não há nada que seja mais particularmente mágico porque tudo é mágico. a riqueza, a essência de todas as coisas encontra-se nas situações, nos objectos, nos gestos mais banais ou tidos como tais. mas pela sua mesquinhez, carácter repetitivo, complicado, vulgar, a minha imaginação impede-me de ver a beleza. repito constantemente os mesmos esquemas. estou sempre a cobrir as mulheres com as mesmas referências, as mesmas expectativas, as mesmas necessidades. cubro os automóveis e os mestres espirituais da minha exigência infantil: encontrar-me neles
a imaginação é miserável. quando ela se reduz, descobrimos que a mais pequena coisa contém o essencial, que ela é extraordinária, como uma flor. ao invés, a imaginação disseca a flor e rouba-lhe o perfume, como se a embalsamasse
de qualquer forma, a máscara revela sempre o que está por trás da máscara, portanto, o imaginário não é gratuito. não existe imaginário. está tudo certo. é apenas por razões pedagógicas, da mesma forma como nos dirigimos a uma criança, que falamos de coisas pessoais ou impessoais, de actos espontâneos ou intencionais, de imaginário ou de realidade
não me interessa se o conflito é imaginário ou não, ele é, antes de mais, vivido e sentido. deus não cometeu erros que me caiba vir reparar. tenho necessidade de todos os meus conflitos. reivindico as cicatrizes que transporto comigo. ninguém tem o direito de mas retirar. elas partirão quando tiverem que partir... este respeito permite uma profunda transformação. pretender rectificar os problemas com os meus pais, a minha mulher, o meu corpo, o meu passado, etc, é interminável...
não é o que eu escuto mas o próprio escutar em si que me tranquiliza
o ser humano deve olhar, é o estádio último
"all the human being can do is wonder and marvel"meister eckhartquando paro de pretender compreender, sobrevém uma compreensão não conceptual. vemos como os animais, a natureza, os objectos, estão para lá de um "sentido". estão de tal forma para lá de um sentido, que eles são uma ressonância, são eflúvios da verdade. a contemplação do nascer do sol, do movimento da lua ou de uma nuvem, do deslizar de um pato num lago, aniquila qualquer ideação. o mundo inteiro revela-se perante nós. toda a beleza, violência e tranquilidade do mundo são expressas ali
nessa paz, o segredo das coisas apresenta-se. não é um segredo conceptual. a alegria está inscrita em todas as coisas.
nesse momento, toda a minha juventude, a minha educação, as minhas loucuras, ganham um sentido. compreendo, duma maneira não mental, porque bebi tantas cervejas, li tantos romances ou tive, tantas vezes, a pretensão de ter sido abandonado. porque tive tanta necessidade disto ou daquilo, de amor e compreensão. todos os meus mecanismos vêm à superfície e eu reivindico-os, não quereria, por um instante sequer, ser um milímetro diferente do que fui, porque tal não seria a realidade
essa total aceitação das minhas características é uma constatação que se situa além de quaisquer características. a luz que as ilumina revela-se através delas. quando olho verdadeiramente, tudo faz sentido. um sentido informulável, para lá de qualquer sentido. o verdadeiro sentido é morrer. não há outro
"the meaning of life is that it stops"f. kafkasobre o suicídio:
há que aceitá-lo, se uma pessoa já não consegue defrontar-se com a vida, não tem escolha. há quem não tenha essa capacidade. não podemos manter uma pessoa viva a qualquer preço, torna-se uma obstinação terapêutica. se o suicida estiver ao alcance da nossa ajuda, trar-lhe-emos suporte, evidentemente. mas o suicídio não é um fracasso médico. fazemos o que podemos. há seres que precisam de passar por vivências de uma certa complexidade
a semana contra o suicídio é um símbolo típico da hipocrisia da nossa sociedade moderna, tal como o dia das mulheres, das mães, das crianças, dos cães, dos deficientes ou contra a violência. estes acontecimentos mediáticos apresentados como filosofia democrática de bom tom não servem senão para proporcionar boa consciência a uma sociedade que, por arrivismo económico, recusa trazer à luz do dia os seus mecanismos internos
ser feliz por viver não é mais escolha que renunciar à vida. aquele que consegue levantar cento e vinte quilos não é superior àquele que não o consegue fazer. aquele que não consegue estar à altura de vivenciar a investigação que é estar vivo, não se demite, apenas vive, claramente, o seu limite
sobre os limites:
vou a um museu, examino a porcelana chinesa ou coreana duma determinada época e, de repente, apercebo-me de que não consigo realmente ver nada, dou-me conta de que há todo um mundo de referências naqueles objectos que outras pessoas, mais habilitadas, poderiam apreciar, mas que não me é acessível. reconheço a minha incompetência artística, intelectual, sensitiva
na prática do yoga ou da dança, constatamos, igualmente, que certos movimentos não nos são convenientes. é assim! - não temos que nos sentir diminuídos pelo facto. não tenho que ficar contrariado pelos limites do meu corpo, ou da minha inteligência. não tenho que ser receptivo à porcelana chinesa ou ficar condicionado pela ideia de que o meu corpo deveria fazer isto ou aquilo... aceito as minhas incapacidades e, ao respeitá-las, elas tornam-se bastante elásticas
se eu tiver oportunidade de ir contemplar a porcelana chinesa com um apaixonado por essa arte, poderei, ao meu nível, começar a apreciar igualmente as suas qualidades extraordinárias. só o amor tem poder de transmissão, ele traz vida ao olhar daquele que admira e ao que o rodeia. aí, então, conforme as minhas capacidades, vai acontecendo em mim uma ressonância e a descoberta começa. mas se eu for observar junto de alguém que apenas aprendeu coisas, um intelectual, a minha percepção permanecerá superficial. há que apreender uma arte com um amante dessa arte, apreciamos melhor a música na companhia de um músico...
o que é que há de mais intenso que a sensação do instante? - constatar a que ponto a tento denegrir, pensando que qualquer coisa lhe é superior... a qualificação da incontornável intensidade do instante como "não intensa" protege-me dele, como se dissesse "não sinto a minha mão" - é apenas a codificação verbal que utilizo para descrever a sensação que efectivamente até tenho... da mão
não podemos ver a claridade, apenas podemos ver a obscuridade e, quando a vemos, ela desaparece: quando iluminamos a escuridão ela deixa de existir
não podemos ver a luz, daí que, no islão, não exista a representação do "último" e a abordagem directa seja definida como a "via pela negativa" - ver em mim o limite é o não-limite. quando me apercebo da arrogância que me habita, essa visão é humildade. a pretensão de humildade não é senão arrogância. não posso ver senão a minha arrogância. essa visão absorve o que é visto. a arrogância torna-se, então, a porta para essa humildade em que não existe a pessoa humilde
não podemos apropriar-nos de nada, tornar-nos qualquer coisa, ser qualquer coisa
seria necessário ser poeta para poder expressá-lo melhor...
não somos proprietários dessa palavra. é o poema que inventa os poetas e não os poetas que inventam os poemaso poema sonha os poetas...
sobre a morte:
esqueçamos a morte e dêmo-nos claramente à vida. quando se proporciona sentir o medo da morte, agradecê-lo. se o experimentarmos agora, não teremos que o sofrer mais tarde, no nosso leito de morte. deixemo-la falar-nos sensorialmente. na verdade, não temos medo, sentimos o medo, que se vai, pouco a pouco, esvaziando. quando nos acontece ter medo, se tentamos minimizá-lo, por esta ou por aquela técnica, fugimos dele cada vez um pouco mais e ele virá ter connosco no momento da morte
viver disponível. a morte torna-se um não acontecimento e deixamos de pensar nela. não é necessário qualquer tipo de conhecimento
evitar ler o livro tibetano dos mortos. não adiemos a vida preparando-nos para a morte. não são necessários padres nem conhecimentos esotéricos. é inútil entrar em fantasmagorias religiosas ou culturais. se vos parecer indispensável, façam-no, mas com a noção clara de se tratar de uma fantasia
morrer para as nossas expectativas, angústias, inquietudes: é essa morte que é importante. se essa morte se corporizar em nós, dar-nos-emos conta de que a reflexão sobre a morte do corpo deixa de surgir
quanto mais informação tivermos sobre a morte, mais inquietos nos tornaremos. a nossa cultura é localizada na nossa memória e é bastante provável, conforme a idade com que morrermos, que a nossa memória seja afectada pelos anos. face à degenerescência do cérebro, todas as aquisições que foram sendo acumuladas, o que fomos lendo, as técnicas e experiências românticas às quais nos fomos prestando, deixarão de estar acessíveis e, portanto, quaisquer preparações são inúteis
não há nada a saber. a disponibilidade para o presente acompanha-nos, naquilo que é importante
todas as reflexões que podemos desenvolver sobre o assunto não passam de uma memória, um amontoado de referências captadas através da televisão ou no acompanhamento de pessoas próximas que foram morrendo. e é com base neste somatório de noções distorcidas que vamos basear a nossa própria ideia da morte
esqueçamos o grande mestre, o lama, todos os que nos poderiam assistir. solitário, numa sarjeta ou numa cama de hospital, morrer tranquilamente. nem padre, nem assistência nem família em pranto: sem qualquer necessidade de estar acompanhado. morrer, simplesmente, como vivemos. livremente
se aqueles que vos rodeiam, consternados, estiverem lá, há que aceitá-lo, igualmente. se, em virtude do seu "mau karma", um lama tibetano é levado a querer vir ajudar-vos, ou um padre católico bendizer-vos deixá-los fazê-lo, visto necessitarem dessa acção para a sua própria sobrevivência psicológica. a sua agitação ritualizada permite-lhes adiar o seu próprio medo. estas acções psicopatas não vos assistem, em nada
nada vos pode ajudar, porque nada é necessário - e é maravilhoso!
como pela noite: o corpo morre no sono, o pensamento desaparece, a percepção elimina-se... as pessoas contentes por nos verem partir podem descansar. e as que ficam tristes deviam ser proibidas de estar presentes à cabeceira do moribundo. ficar aflito é uma falta de respeito, uma falta de amor. os vossos verdadeiros amigos regozijar-se-ão quando souberem da vossa morte... mais uma vez, ressalvo que aquilo que é dito aqui não é apropriado para qualquer pessoa...
o yoga é a arte de morrer. ao trabalhar corporalmente, aprendemos a morrer. e não me refiro ao facto apenas do ponto de vista simbólico, mas de forma efectiva. aprendemos a morrer, aprendemos a viver, é a mesma coisa
portanto, esquecer tudo isto: saír deste encontro como um cão que viu um osso e a quem o retiramos antes de ele conseguir cravar-lhe os dentes. é esse sentimento que se situa imediatamente antes da frustração que importa guardar. a sensação da boca vazia é uma não conclusão, um espaço onde ressoa a nossa liberdade