11/12/2012
véspera de natal
eu me lembro muito bem
era véspera de natal
cheguei em casa
encontrei minha nega zangada,
a criançada chorando,
mesa vazia, não tinha nada
saí, fui comprar bala mistura,
comprei também um pãozinho de mel
e cumprindo a minha jura,
me fantasiei de papai noel
falei com minha nega de lado
eu vou subir no telhado
vou descer na chaminé
enquanto isso você
pega a criançada e ensaia o dingo-bel
ai meu deus que sacrifício
o orifício da chaminé era pequeno
pra me tirar de lá
foi preciso chamar, os bombeiros
adoniran barbosa
24/11/2012
também nós
… também nós temos rios e barcos, areias movediças e árvores de giestas, olhos de ver por dentro e de esquecer, também nós somos gestos, som, pedra, lamento, ais, e rios e cantigas, memória da memória e sexo, cores, cheiros, hálitos, também nós somos vermes nervos sóis e luas vendavais, também nós somos restos tão excrementos, também nós somos outros, outros, outros…
in: raíz e utopia
foto - detalhe de: no man's land / christian boltanski
23/11/2012
from the heart
olá r !
voltei a ver o "of the heart" e tocou-me muito, surpreendentemente até!
é talvez por isso que sinto este gosto pelo revisitar das obras (musicais, cinematográficas, literárias, plásticas...) não tanto quanto eu gostaria porque o tempo não permite "honrar" todas elas mas na medida do possível...
também aqui há um tempo: para a obra se nos desvelar - diria melhor até, para o nosso olhar se desproteger dela, aprender a recebê-la e a amá-la , sem querer soar excessivo
há formas de intensidade que nos podem tocar tão intimamente que de forma inconsciente nos defendemos delas, tornando-nos como que analfabetos ou psiquicamente dormentes ao contacto com elas
outras, ou porque nos encontram desprevenidos ou porque conseguimos, nós próprios, apanhar-nos a tempo de não recuar, deixam-nos imediatamente extasiados
por momentos quase prefiro as primeiras, as que se defrontam com a nossa relutância, como se por outro lado revelassem mais aquilo que em nós não está tão à superfície, acessível ao tal primeiro encontro
enfim, dou-me conta de que tudo o que acabei de escrever, desde o primeiro parágrafo, é igualmente aplicável ao contacto com outro ser humano, é o mesmo mistério e a mesma dança: como neste video
obrigado
nc
20/11/2012
absolute zero
there comes a time when an individual becomes irresistible and his action becomes all-pervasive in its effects. this comes when he reduces himself to zero
gandhi
01/11/2012
pranava
- ó rumor que passa, faz em mim eco. em face muda te recebo, farás aqui a tua morada.
- ó copista, tu que firmas as palavras, escrita que não cessa. lápide da minha boca.
- ó antigo rumor, afirma em mim, e eu serei o teu escriba.
pedro ferreira
(foto: die große stille)
atlas de geografia histórica - f. schrader, 1911
atlas de geografia histórica - f. schrader, 1911
"...ao mesmo tempo que actuam todas estas causas de desequilíbrios, o planeta deteriora-se, empobrece. o homem julga valorizá-lo destruindo a lenta acumulação de riqueza vegetal que a colaboração mil vezes secular da atmosfera e do globo terrestre produziu. a grande floresta do hemisfério norte - este revestimento que protegia o solo, equilibrava os climas, ponderava os ventos e as chuvas - vai rareando de dia para dia perante uma exploração louca, sem poder ser substituída por um valor equivalente. com excessiva frequência, instala-se em seu lugar ou a grande cultura, essa grande cultura que, arrancando o homem da terra, preludia invariavelmente a barbárie. desta vez, julga-se proceder de maneira científica porque se utilizam máquinas, mas não são só as zonas temperadas que estão em perigo: a zona tropical vai ser valorizada por sua vez, este grande laboratório dos climas, esta cintura vegetal, donde se exalavam espirais ritmadas de ondas atmosféricas será explorada respeitando-se o homem e a natureza, tendo-se em conta as relações do solo e da atmosfera, ou ceder-se-á à tentação de violentar a terra, de se atacar com vias rápidas a floresta tropical? nestes casos, é a própria humanidade que será posta em perigo, pelo desequilíbrio da atmosfera e pela introdução da instabilidade nos climas do mundo inteiro.
o quadro é sombrio. possa a realidade não ser ainda mais sombria. uma lei actualmente incontestável estabelece que a duração dos organismos vai no sentido inverso da sua complexidade. se esta complexidade for exagerada à força de artifícios e de conflitos, a sobrevivência é impossível. as leis, diz montesquieu, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas. o exame do mundo actual leva-nos inelutavelmente a pensar que essas relações necessárias não são aquelas a que obedece o nosso mundo, ébrio dos seus novos poderes e ocupado em destruir-se a si próprio
(citado por m. yourcenar - "les yeux ouverts, entretiens avec matthieu galey", trad. mª eduarda correia)
"...ao mesmo tempo que actuam todas estas causas de desequilíbrios, o planeta deteriora-se, empobrece. o homem julga valorizá-lo destruindo a lenta acumulação de riqueza vegetal que a colaboração mil vezes secular da atmosfera e do globo terrestre produziu. a grande floresta do hemisfério norte - este revestimento que protegia o solo, equilibrava os climas, ponderava os ventos e as chuvas - vai rareando de dia para dia perante uma exploração louca, sem poder ser substituída por um valor equivalente. com excessiva frequência, instala-se em seu lugar ou a grande cultura, essa grande cultura que, arrancando o homem da terra, preludia invariavelmente a barbárie. desta vez, julga-se proceder de maneira científica porque se utilizam máquinas, mas não são só as zonas temperadas que estão em perigo: a zona tropical vai ser valorizada por sua vez, este grande laboratório dos climas, esta cintura vegetal, donde se exalavam espirais ritmadas de ondas atmosféricas será explorada respeitando-se o homem e a natureza, tendo-se em conta as relações do solo e da atmosfera, ou ceder-se-á à tentação de violentar a terra, de se atacar com vias rápidas a floresta tropical? nestes casos, é a própria humanidade que será posta em perigo, pelo desequilíbrio da atmosfera e pela introdução da instabilidade nos climas do mundo inteiro.
o quadro é sombrio. possa a realidade não ser ainda mais sombria. uma lei actualmente incontestável estabelece que a duração dos organismos vai no sentido inverso da sua complexidade. se esta complexidade for exagerada à força de artifícios e de conflitos, a sobrevivência é impossível. as leis, diz montesquieu, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas. o exame do mundo actual leva-nos inelutavelmente a pensar que essas relações necessárias não são aquelas a que obedece o nosso mundo, ébrio dos seus novos poderes e ocupado em destruir-se a si próprio
(citado por m. yourcenar - "les yeux ouverts, entretiens avec matthieu galey", trad. mª eduarda correia)
através do teu coração passou um barco
que não pára de seguir, sem ti, o seu caminho
______________________________________
nunca mais
caminharás nos caminhos naturais
nunca mais te poderás sentir
invulnerável, real e denso -
para sempre está perdido
o que mais do que tudo procuraste
a plenitude de cada presença
e será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência
sophia de mello breyner
sentado no caminho aberto
frágil, oco, outro,
em plenitude vazia,
presente à ausência de ti próprio
(a partir de) hogen (daido) yamahata / eric baret
(foto: tiago cunha)
07/10/2012
marguerite yourcenar - "sadhana" - 1
fragmentos de marguerite yourcenar (ou outros, por ela citados) sobre a "prática" (sadhana) nas múltiplas variantes do termo, a que se dedicou
(leitura, escrita, investigação, yoga, meditação, oração, jardinagem...)
________________________________________
essa força que passa através de mim
tudo se obtém pela disciplina
nada se obtém pela disciplina
criar, à força de disciplina, momentos em que ela deixa de nos ser necessária
aceitar ser mais que si próprio. depois, integrar este acréscimo na etapa seguinte
estar pronto, a cada minuto, para a completa entrega
para lá da dor e da alegria, a dignidade de ser
(sources II)
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devemos manter-nos calmos perante a passagem do tempo, seguros de que no momento em que as condições adequadas tiverem sido criadas, a realização sobrevirá - por uma outra via, talvez.
quando? - passar-se-ão possivelmente, várias vidas... há que permanecer totalmente indiferente ao facto.
os "deuses" da via mágica e iniciática não se dão àqueles que a eles se dirigem, mas aos que permanecem imóveis a aguardá-los, inacessíveis a qualquer impaciência ou esperança que seja, como se não quisessem saber deles.
"não devo dirigir-me aos deuses são eles que devem vir a mim" (plotino)
julius evola - "le yoga de la puissance"
"e, ao mesmo tempo, o que evola se esquece de dizer, todo o ardor e todo o trabalho incessante, como se cada momento contasse!"
comentário de marguerite yourcenar (sources II)
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dou uma enorme importância a essa base não mental - o que não significa desligada do espírito - que não depende das nossas fórmulas intelectuais, que é o nosso corpo, a nossa fisiologia, o nosso comportamento em geral, tudo aquilo que tendemos a esquecer demasiado pela inteligência
(entrevista com carl gustav bjurstrom, suécia, 1968)
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a única satisfação emocional que nos traz o passado, como, aliás, o presente, é o facto de nos demonstrar, geração após geração, a coragem e a boa vontade humanas no esforço por reparar - ou, pelo menos, melhorar um pouco - o estado das coisas
nunca triunfantes mas também nunca completamente vencidas ou desencorajadas
enquanto satisfação emocional ou imaginativa, é escasso. mas não é pela obtenção de satisfações emocionais ou imaginativas que estudamos história, ou, de resto, o que quer que seja
... mas não amamos a vida por aquilo que ela nos traz, amamo-la porque a amamos...
(entrevista de rádio com patrick rosbo, janeiro 1971)
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“ouk mathein alla pathein” – não instruir-se mas sofrer, suportar…” - é uma divisa alquímica muito bela, "anima ignea", uma alma de fogo, o fogo alquímico, o fogo que não queima, o fogo subtil...
(entrevista com francesca sanvitale, RAI, 1987)
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quanto mais vou envelhecendo eu própria, mais constato que a infância e a velhice não só se reunem como são os dois estádios mais profundos em que nos é dado viver (...) e todo o intervalo entre eles parece um tumulto vão, uma agitação vazia, um caos inútil, pelo qual nos perguntamos porque tivemos que passar
("arquivos do norte")
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quanto às traduções, enfim, que alguém tenha escrito versos belíssimos, comoventes, sobre a vida, a morte, o amor, a política, ou que tenha sido eu a escrevê-los, francamente não vejo grande diferença, apenas exprimimos qualquer coisa que devia ser expressa, é tudo
(entrevista com bernard pivot, "apostrophes", mount desert island, 1979)
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acredito bastante no valor dessa espécie de humildade perante o que é expresso e penso que o estilo, quando é bom, provém daí. o "autor" apaga-se totalmente e ao apagar-se reencontra-se, ou seja, reencontra aquilo que realmente queria dizer
(entrevista com dominique willems e hilde smekens, televisão flamenga, 1971)
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escrever: tem qualquer coisa de pousar as mãos sobre as coisas, tacteando
("les yeux ouverts - entrevistas com matthieu galey)
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fui-me apercebendo progressivamente de que a forma mais profunda de acesso a um ser continua ainda a ser o escutar da sua voz, compreender o próprio canto de que ele é feito (...) procurar ouvir, fazer silêncio em si próprio, para escutar o que adriano poderia ter dito, ou o que zenão poderia ter dito, nesta ou naquela circunstância, sem lhe introduzir nada de seu, pelo menos conscientemente, ao nutrir os seres da sua própria substância - como os nutriríamos da nossa carne, que não é de todo o mesmo que alimentá-los da nossa pequena personalidade, dos tiques que nos fazem "nós"
("les yeux ouverts" - entrevistas com matthieu galey)
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trata-se, em suma, de nos aproximarmos o mais possível da expressão verídica de uma experiência. a maneira mais simples de dizer as coisas parece-me sempre a melhor e é raramente a primeira
para mim, "a obra ao negro" é escaldante, de um calor insuportável, mas quando relatamos coisas que nos perturbam exprimimo-las discretamente
a busca de um "outro" que possa sustentar a imagem que fazemos de nós próprios para lograr a criação de um casal modelo está de tal forma impregnada de vaidade e intuito de posse que me parece frágil como ideal humano. uma atenção ardente por outro ser humano, porém, parece-me constituir uma atitude essencial
(entrevista com jean-claude texier, "la croix", 1971)
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yeats dizia: corrijo a mim próprio, ao corrigir os meus livros
(entretien avec jean-louis ferrier, christiane collange, matthieu galey, l'express, 1968)
- poderíamos dizer o mesmo sobre "asana" / posturas de yoga -
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tenho uma grande admiração pela vida contemplativa mas, enfim, nenhuma necessidade de me retirar para algum lugar, podemos contemplar num autocarro
(entrevista com jacques chancel, mount desert island, 1979)
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já se sentiu tentada pela religião budista?
frequentemente, sim, mas acabei por finalmente concluir que ela não precisava de ainda mais uma seguidora. temia também o risco de exotismo tão comum nestas adesões oficiais. tal como acontece com tantos cristãos, inscritos nos registos do cristianismo, que não brilhavam em virtudes cristãs, há também muitos budistas que poderíamos dispensar... as verdadeiras adesões provêm do coração e não se excluem sequer umas às outras
(entrevista com jacques chancel, mount desert island,1979)
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a falta de ardor - fico impressionada com o facto e creio que, frequentemente, a própria violência lhe corresponde em proporção
porque há poucas pessoas com vontade de fazer apaixonadamente qualquer coisa - a violência torna-se um derivativo
("les yeux ouverts" - entrevistas com matthieu galey)
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a palavra "felicidade" não tem em mim um peso significativo. não penso nela. suponho que para a maior parte das pessoas ela signifique "fazer o que queremos". ela traduz uma certa facilidade, por exemplo, a famosa "doce vida" que tayllerand situava no século XVIII, ou o período que as pessoas que viveram a primeira grande guerra identificavam com a época imeditamente anterior a ela... mas há muito de miragem na palavra "felicidade". o hipotético valor da felicidade é um sub-produto. ela consiste simplesmente em fazer mais ou menos o que estávamos destinados a fazer
(entrevista com jacques chancel, mount desert island,1979)
28/09/2012
prana
não te direi a palavra, não farei o sinal, guardarei o gesto, a chave, o entendimento, haverá um espaço em branco, um som contínuo, em que nada habitará (quem habita as pontes?)
júlio pomar
(foto:tiago cunha)
01/09/2012
uranus & grace
sky circles
the way of love is not
a subtle argument
the door there
is devastation
birds make great sky-circles
of their freedom
how do they learn that?
they fall, and falling,
they're given winds
jalal al-din rumi
____________________________________
falling in grace
let me fall
let me fall
let me climb
there’s a moment when fear
and dream must collide
someone I am
is waiting for courage
the one I want
the one I will become
will catch me
so let me fall
if I must fall
i won’t heed your warnings
i won’t hear them
all I ask
all I need
let me open whichever
door I might open
let me fall
if I fall
though the phoenix may
or may not rise
i will dance so freely
holding on to no one
you can hold me only
if you too will fall
away from all these
useless fears and chains
someone I am
is waiting for my courage
the one I want
the one I will become
will catch me
so let me fall
if I must fall
i won’t heed your warnings
i won’t hear
let me fall
if I fall
there’s no reason
to miss this one chance
this perfect moment
just let me fall
j.corcoran/b.jutras
19/08/2012
namaste!
vivemos numa época tremendamente mecanicista, habituados a encontrar explicações para tudo
às vezes chega a ficar a impressão de que o grande fulcro da vida humana é compreender como o mundo funciona
por momentos desejaria que os naturalistas e os seus dedicados fotógrafos deixassem em paz os animais das florestas tropicais ou do ártico, preservando a sua privacidade
vem-me à memória a chamada de atenção de ralph waldo emerson para o facto de se tornar nocivo tornarmo-nos demasiado "entendidos" sobre o funcionamento interno do corpo
a ânsia da ciência na exploração do céu retirou-lhe parte considerável da magia e fantasia que outrora nos era possivel encontrar nele
neste contexto racionalista e mecanicista a oração parece deslocada
hildegard von bingen, meister eckhart, s. joão da cruz, sta. teresa d'ávila devotaram-se à vida interior, a essa zona da experiência religiosa em que o mistério é abordado cuidadosamente, vagarosamente e, por vezes, dolorosamente
propunham a receptividade mais do que a actividade e reconheciam a importante ligação entre o modo de vida quotidiano e a preparação para a contemplação
o místico pode parecer absorvido em si próprio mas não é forçoso que assim seja: a vida interior, tal como a vida mundana, pode abrir para um universo de mistério onde o ego dificilmente tem lugar
a vida interior não significa necessariamente a vida pessoal
já não somos nós que partimos em busca do silêncio, a quietude apodera-se de nós e conduz-nos - a questão não é progredir e refinar o controlo mas rendermo-nos ao silêncio subjacente em nós
em linguagem psicológica, poderíamos chamar a isto um elemento de "não-ego" na contemplação
o nosso mundo está repleto de "ego", isto é, de estratégias de análise, entendimento e manipulação de si próprio e da realidade
o campo da psicologia - pela ênfase na compreensão racional e utilitária da vida - constitui-se, frequentemente, como um grande empreendimento da autoria do ego, dirigido ao ego e pleno de ego
a religião, igualmente, foi profundamente afectada pelas filosofias da nossa época, maioritariamente dirigidas pelo ego, mesmo quando os elementos "egóicos" ficam subtilmente escondidos ou implícitos
william blake dizia que o corpo era a alma apreendida pelos sentidos
o corpo não precisa da mente para se justificar
não é separado dela e, como tal, não lhe é subordinado
não é desprovido de vida e significado, não carece de explicações
neste sentido quando adoptamos gestos, oramos
nada mais tem que ser acrescentado nem entendido nem justificado
thomas moore
prefácio de "sadhana - a way to god" de anthony de mello
(trad. e adapt. nc)
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"o corpo é o meu templo, asana é a minha oração"
b.k.s. iyengar
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parafraseando eric baret:
a maior parte de nós não sente o corpo, apenas pensa o corpo
o corpo, tal como é vulgarmente designado, é um conceito, uma abstracção
o corpo não é o corpo - a certa altura sobrevém uma maturidade que nos leva a pressenti-lo
há que estar livre do corpo para começar a trabalhar o corpo: em vacuidade plena, sem desejo, inutilmente
como saborear: só na ausência de sede se aprecia verdadeiramente um vinho
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jung dizia que o homem criou a religião para se proteger de deus
no discurso de eric baret, a distinção entre prazer e alegria sugere que o psiquismo humano se serve do primeiro para se defender da segunda: o prazer como forma subtil de contracção (vizinha polar da dor) impede e vela a alegria
o prazer localiza, a alegria irradia em todas as direcções, sem centro
o prazer é periférico, projecta-se num objecto e só nele encontra sentido, a alegria é íntima e impessoal, recebe todos os objectos
no mesmo sentido, muitas escolas sistematizaram o yoga para se defenderem da sensibilidade. codificaram o corpo como estratégia de fuga à evidência - mentalmente aterradora - de que ele não existe, para lá do plano conceptual que constantemente o recria segundo o mesmo esquema
num sentido último, as escrituras são uma defesa que ruidosamente nos distancia do silêncio da tradição eterna, inscrita no éter
mas todos - religião, prazer, sistema de yoga ou de pensamento - só o são, enquanto tais, no instante em que os actualizamos mentalmente, pretendendo conferir-lhes uma forma que obscurece a sensibilidade profunda
sentir o perfume de silêncio que permeia a palavra sagrada, a alegria que o prazer mascara, a vacuidade onde corpo e asana ocorrem
nc 2011
09/08/2012
cântico espiritual
... por haberse, pues, estas canciones compuesto en amor de abundante inteligencia mística, no se podrán declarar al justo, ni mi intento será tal, sino sólo dar alguna luz general, pues vuestra reverencia así lo ha querido
y esto tengo por mejor, porque los dichos de amor es mejor dejarlos en su anchura para que cada uno de ellos se aproveche según su modo y caudal de espíritu, que abreviarlos a un sentido a que no se acomode todo el paladar
y así, aunque en alguna manera se declaran, no hay para qué atarse a la declaración; porque la sabiduría mística - la cual es por amor, de que las presentes canciones tratan - no ha menester distintamente entenderse para hacer efecto de amor y afición en el alma, porque es a modo de la fe, en la cual amamos a dios sin entenderle
san juan de la cruz
(do prólogo ao "cântico espiritual")
01/08/2012
de lá
a imagem é o silêncio da linguagem
deixa que a imagem se faça em ti como se não pudesses falar: como se sentisses a impotência de dizer seja o que for
que eu te ame - que sobre mim caia um voto de silêncio - que tu passes a ser uma imagem...
talvez o que procuremos no amor seja tocar no vazio de um corpo (quanto cuidado, porém, quanta discrição, para rodear esse vazio)
o vazio que um corpo amado liberta: como se fosse aureolado por uma luz dos abismos. a imagem em que esse corpo se tornou mostra-nos que a intimidade vazia é intocável, melhor: que esse é o lugar onde o toque desfalece
cada amante procura agarrar a alma do outro. mas um vazio não se agarra nem se toca: é o lugar onde o toque desfalece. daí a sensação de o corpo do outro se escapar por entre o nosso corpo, daí o peso dos corpos só ressurgir depois do desfalecimento de ambos
os amantes dão-se. a forma reflexiva do verbo indica que eles não trocam entre si objectos nem sobretudo o seu próprio corpo como objecto (parcial ou total). amar significa dar-se que significa dar-vazio. que não quer dizer nada - mas mostra o seu esvaziamento
ser invadido pelo vazio de um corpo até deixar de sentir o seu próprio corpo: isto define o amor como plenitude vazia
o mesmo é dizer que cada corpo amante/amado liberto é uma alma, e que ele morre nessa dádiva (porque a alma só existe na medida em que há o sentir-se a si mesmo morto, o deixar-de-se-sentir graças ao outro). e que ambos ressurgem após a dádiva: a ressurreição dos corpos é o amor - a única ressurreição
com os olhos fechados e o toque a desfalecer: assim se pressente a forma de uma alma
assim se reconhece a potência de uma imagem: esta é forte se o desconhecido que ela dá a ver se mantém irredutível a qualquer operação cognitiva
a imagem é propriamente inesquecível quando resiste à vontade de reduzi-la a um objecto de conhecimento (ou de autoconhecimento, por quem a fez ou por quem a vê)
nós nunca nos esqueceremos do que nos faz lembrar o desconhecido inato - como um assombro vitalício
quanto mais imaginamos assim, mais nos desconhecemos porque mais reconhecemos, graças à imagem, esse desconhecido (que nos precede e sucede: que se nos atravessa); o que será, de resto, um ser amado - é a minha conclusão provisória - senão uma encarnação do daimon?
conheço-te desde sempre, sei-o, e, com o mesmo saber, posso afirmar que não nos conhecíamos. a "relação amorosa" (expressão a revisitar) está para aquém do conhecer e - depois - quando se trava conhecimento (como se diz) quando se dá, por assim dizer, corpo ao desconhecido, aquela "relação" projecta-se para além desse eventual conhecer. daí que se possa amar alguém sem dele ser conhecido, reconhecendo, todavia, a sua imagem (ou, talvez primeiro, a sua voz)
a imagem mostra o que há de inominável em tudo o que vemos e quanto mais pura se mostra mais essa imagem tende a gerar, à sua volta, tanto um silêncio como um discurso interminável porquanto ela não cessa de desafiar a impotência de nomeação
deste modo, a imagem procura apenas fazer jus á realização da vida - à vida sem acréscimos de significados. volto a lispector: "quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto?" e a resposta é: não é só isto, é exactamente isto.
"só que ainda preciso tomar cuidado para não fazer disto mais do que isto, pois senão já não será mais isto. a essência é de uma insipidez pungente. será preciso purificar-me muito mais para inclusive não querer o acréscimo dos acontecimentos. antigamente, purificar-me significaria uma crueldade contra o que eu chamava de beleza e contra o que eu chamava de "eu", sem saber que "eu" era um acréscimo de mim" (lispector)
"nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair - só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz. minhas civilizações eram necessárias para que eu subisse a ponto de ter de onde descer. é exactamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. só então minha natureza é aceite, aceite com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. e é aceite a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. e já que vivê-la é a nossa paixão. a condição humana é a paixão de cristo" (lispector)
excertos retirados de:
assombra - ensaio sobre a origem da imagem
tomás maia
assombramento
porque é que fazemos imagens?
estranhamente, para que deixemos de ver e passemos a ser vistos por um olhar que nunca veremos - e que nos assombra
tomás maia
10/07/2012
silêncio
a callarse
agora contemos até doze
e fiquemos quietos
por uma vez sobre a terra
não falemos nenhum idioma
detenhamo-nos por um segundo
não movamos tanto os braços
num minuto fragrante,
sem pressa, sem motores,
todos juntos
numa estranheza íntima
instantânea
todos nós, na terra, parados
sem confundir o que sugiro
com a completa inactividade
a vida é o que é e continua
visto que não nos encontramos
neste esforço constante
por manter a nossa vida em movimento
talvez por uma vez sem fazer nada
talvez num grande silêncio
possamos interromper esta tristeza
este nunca nos entendermos
e ameaçarmo-nos com a morte
talvez a terra nos ensine:
como quando tudo parece morto no inverno
e logo renasce
agora contarei até doze:
fiquem calados e eu parto
pablo neruda
(trad e adapt / nc)
____________________________________________
pido silencio
agora deixem-me tranquilo
agora habituem-se a mim
vou fechar os olhos
e quero apenas cinco coisas
o amor sem fim,
o outono e as suas folhas,
o inverno grave,
carícia do fogo no frio silvestre,
o verão, redondo de melancia
e os teus olhos - que tu sejas a primavera!
não quero ser sem que me olhes
amigos, é só isto que quero
é quase nada e quase tudo
e agora, sim, peço que se vão
vivi tanto que um dia terão,
forçosamente, que esquecer-me
apagar-me, porque o meu coração
foi interminável
mas porque peço silêncio
não pensem que vou morrer
pelo contrário:
acontece que vou viver-me
acontece que sou e prossigo
passa-se apenas que dentro de mim
crescerão cereais - começando pelos grãos,
que rompem a terra para verem a luz
mas a mãe terra é escura
e dentro de mim sou escuro
sou como um poço em cujas águas
a noite deixa as suas estrelas
enquanto segue sozinha pelo campo
acontece que vivi tanto
que quero viver outro tanto
nunca me senti tão sonoro
nunca tive tantos beijos
agora, como sempre, é cedo
a luz voa com as suas abelhas
deixem-me só com o dia
peço permissão para nascer
pablo neruda
(trad e adapt / nc)
agora contemos até doze
e fiquemos quietos
por uma vez sobre a terra
não falemos nenhum idioma
detenhamo-nos por um segundo
não movamos tanto os braços
num minuto fragrante,
sem pressa, sem motores,
todos juntos
numa estranheza íntima
instantânea
todos nós, na terra, parados
sem confundir o que sugiro
com a completa inactividade
a vida é o que é e continua
visto que não nos encontramos
neste esforço constante
por manter a nossa vida em movimento
talvez por uma vez sem fazer nada
talvez num grande silêncio
possamos interromper esta tristeza
este nunca nos entendermos
e ameaçarmo-nos com a morte
talvez a terra nos ensine:
como quando tudo parece morto no inverno
e logo renasce
agora contarei até doze:
fiquem calados e eu parto
pablo neruda
(trad e adapt / nc)
____________________________________________
pido silencio
agora deixem-me tranquilo
agora habituem-se a mim
vou fechar os olhos
e quero apenas cinco coisas
o amor sem fim,
o outono e as suas folhas,
o inverno grave,
carícia do fogo no frio silvestre,
o verão, redondo de melancia
e os teus olhos - que tu sejas a primavera!
não quero ser sem que me olhes
amigos, é só isto que quero
é quase nada e quase tudo
e agora, sim, peço que se vão
vivi tanto que um dia terão,
forçosamente, que esquecer-me
apagar-me, porque o meu coração
foi interminável
mas porque peço silêncio
não pensem que vou morrer
pelo contrário:
acontece que vou viver-me
acontece que sou e prossigo
passa-se apenas que dentro de mim
crescerão cereais - começando pelos grãos,
que rompem a terra para verem a luz
mas a mãe terra é escura
e dentro de mim sou escuro
sou como um poço em cujas águas
a noite deixa as suas estrelas
enquanto segue sozinha pelo campo
acontece que vivi tanto
que quero viver outro tanto
nunca me senti tão sonoro
nunca tive tantos beijos
agora, como sempre, é cedo
a luz voa com as suas abelhas
deixem-me só com o dia
peço permissão para nascer
pablo neruda
(trad e adapt / nc)
devoção
mistérios
você chegou feito um silêncio
pra seduzir minha canção
feito uma folha na correnteza
feito um vento varrendo o chão
você chegou feito um mistério
pra confundir minha visão
feito um presente da natureza
quem mandou, coração?
um fogo queimou dentro de mim
que não tem mais jeito de se apagar
nem mesmo com toda a água do mar
preciso aprender os mistérios do fogo
pra te incendiar
um rio passou dentro de mim
que eu não tive jeito de atravessar
preciso um navio pra me levar
preciso aprender os mistérios do rio
pra te navegar
vida breve
natureza
quem mandou, coração?
um vento bateu dentro de mim
que eu não tive jeito de segurar
a vida passou pra me carregar
preciso aprender os mistérios do mundo
pra te ensinar
joyce / maurício maestro
verdade
o que será (à flor da pele)
o que será que me dá
que me bole por dentro, será que me dá
que brota à flor da pele, será que me dá
e que me sobe às faces e me faz corar
e que me salta aos olhos a me atraiçoar
e que me aperta o peito e me faz confessar
o que não tem mais jeito de dissimular
e que nem é direito ninguém recusar
e que me faz mendigo, me faz suplicar
o que não tem medida, nem nunca terá
o que não tem remédio, nem nunca terá
o que não tem receita
o que será que será
que dá dentro da gente e não devia
que desacata a gente, que é revelia
que é feito uma aguardente que não sacia
que é feito estar doente de uma folia
que nem dez mandamentos vão conciliar
nem todos os unguentos vão aliviar
nem todos os quebrantos, toda alquimia
que nem todos os santos, será que será
o que não tem descanso nem nunca terá
o que não tem cansaço, nem nunca terá
o que não tem limite
o que será que me dá
que me queima por dentro, será que me dá
que me perturba o sono, será que me dá
que todos os tremores me vêm agitar
que todos os ardores me vêm atiçar
que todos os suores me vêm encharcar
que todos os meus nervos estão a rogar
que todos os meus órgãos estão a clamar
e uma aflição medonha me faz implorar
o que não tem vergonha nem nunca terá
o que não tem governo nem nunca terá
o que não tem juízo
chico buarque
29/06/2012
23/06/2012
no começo do alto, alto vôo
triste sorte
ando na vida à procura
de uma noite menos escura
que traga luar do céu
de uma noite menos fria
em que não sinta a agonia
de um dia a mais que morreu
vou cantando amargurado
vou de um fado a outro fado
que fale de um fado meu
meu destino assim cantado
jamais pode ser mudado
porque do fado sou eu
ser fadista é triste sorte
que nos faz pensar na morte
e em tudo o que em nós morreu
é andar na vida à procura
de uma noite menos escura
que traga luar do céu
joão ferreira rosa
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a partir daí começa o alto, alto vôo
obdulia g.c.
oração
elis regina no teatro villaret (1978)
romaria
é de sonho e de pó
o destino de um só
feito eu, perdido em pensamentos
sobre o meu cavalo
é de laço e de nó
de gibeira o giló
dessa vida, cumprida
a sol
sou caipira pirapora nossa
senhora de aparecida
ilumina a mina escura e funda
o trem da minha vida
o meu pai foi peão
minha mãe solidão
meus irmãos perderam-se na vida
a custa de aventuras
descasei, joguei
investi, desisti
se há sorte, eu não sei
nunca vi
sou caipira pirapora nossa
senhora de aparecida
ilumina a mina escura e funda
o trem da minha vida
me disseram, porém
que eu viesse aqui
pra pedir de romaria e prece
paz nos desaventos
como eu não sei rezar
só queria mostrar
meu olhar, meu olhar
meu olhar
sou caipira pirapora nossa
senhora de aparecida
ilumina a mina escura e funda
o trem da minha vida
renato teixeira
invocação
evoquemos o espaço vazio no nosso próprio corpo, em todas as direcções, simultaneamente
aí, para a mente livre da dualidade, tudo se torna espaço vazio: assente no espaço intermédio da respiração situada entre os caminhos da expiração e da inspiração ela funde-se com a sua fonte original
a posição estável que nesse ponto se revela é a verdadeira postura, no momento em que entregamos em oferenda ao fogo sacrificial esse receptáculo do grande vazio, o nosso próprio corpo: elementos, órgãos, objectos, a própria mente comprendida entre eles, eis a verdadeira oblação, na qual a consciência desempenha o papel de taça sacrificial
vijnana bhairava tantra
exortação
ítaca
quando partires de regresso a ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
ciclopes, lestrogónios, e mais monstros,
um poseidon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
ciclopes, lestrogónios, e outros monstros,
poseidon em fúria - nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.
deves orar por uma viagem longa.
que sejam muitas as manhãs de verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
e vai ver as cidades do egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
mas não te apresses nunca na viagem.
é melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que ítaca te dê riquezas.
ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
sem ítaca, não terias partido.
mas ítaca não tem mais nada para dar-te.
por pobre que a descubras, ítaca não te traiu.
sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de ítaca.
constantin cavafy
(trad. jorge de sena)
______________________________
estamos todos a regressar
corão
quando partires de regresso a ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
ciclopes, lestrogónios, e mais monstros,
um poseidon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
ciclopes, lestrogónios, e outros monstros,
poseidon em fúria - nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.
deves orar por uma viagem longa.
que sejam muitas as manhãs de verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
e vai ver as cidades do egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
mas não te apresses nunca na viagem.
é melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que ítaca te dê riquezas.
ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
sem ítaca, não terias partido.
mas ítaca não tem mais nada para dar-te.
por pobre que a descubras, ítaca não te traiu.
sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de ítaca.
constantin cavafy
(trad. jorge de sena)
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estamos todos a regressar
corão
sugestão
entrega sempre a tua beleza
sem cálculos, sem palavras,
calas-te.
e ela diz por ti: eu sou
e, com mil sentidos, chega,
chega finalmente a cada um
r.m.rilke
sem cálculos, sem palavras,
calas-te.
e ela diz por ti: eu sou
e, com mil sentidos, chega,
chega finalmente a cada um
r.m.rilke
asserção
a via do amor não é
a das palavras rebuscadas
a porta para ele
é a devastação
os pássaros descrevem no céu
grandes círculos que celebram
a sua liberdade
como é que eles a aprendem?
caindo! - e, ao cairem,
ganham asas
jalal al-din rumi
a das palavras rebuscadas
a porta para ele
é a devastação
os pássaros descrevem no céu
grandes círculos que celebram
a sua liberdade
como é que eles a aprendem?
caindo! - e, ao cairem,
ganham asas
jalal al-din rumi
prece
o eu profundo
senhor, que és o céu e a terra
que és a vida e a morte
o sol és tu e a lua és tu e o vento és tu
tu és os nossos corpos e as nossas almas
e o nosso amor és tu também
onde nada está tu habitas
e onde tudo está – (o teu templo) – eis o teu corpo
dá-me alma para te servir e alma para te amar
dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra
ouvidos para te ouvir no vento e no mar
e mãos para trabalhar em teu nome
torna-me puro como a água e alto como o céu
que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos
nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos
faz com que eu saiba amar os outros como irmãos
e servir-te como a um pai
minha vida seja digna da tua presença
meu corpo seja digno da terra, tua cama
minha alma possa aparecer diante de ti
como um filho que volta ao lar
torna-me grande como o sol, para que eu te possa adorar em mim
e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim
e torna-me claro como o dia, para que eu te possa ver sempre em mim
e rezar-te e adorar-te
senhor, protege-me e ampara-me
dá-me que eu me sinta teu
senhor, livra-me de mim
fernando pessoa
voto
vaza-me os olhos: continuarei a ver-te
tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te
mesmo sem pés chegarei a ti
mesmo sem boca poderei invocar-te.
decepa-me os braços: poderei abraçar-te
com o coração como se fosse a mão.
arranca-me o coração: palpitarás no meu cérebro
e se me incendiares o cérebro
levar-te-ei ainda no meu sangue
r. m. rilke
15/06/2012
perdão
pedimos a deus que nos perdoe todos os passos em falso bem como as audácias por onde se possa ter aventurado a nossa pluma
que nos perdoe se as nossas palavras não são conformes aos nossos actos
perdão pelos pensamentos que nos terão impulsionado a buscar a afectação e o estilo rebuscado no que escrevemos, numas quantas frases que compusemos, na ciência que nos atrevemos a ensinar
pedimos-lhe que nos conceda, a nós e a vós, comunidade de irmãos, a graça de agirmos em conformidade com a nossa visão e de aspirar pela obtenção do seu contentamento
ibn-al-arif
("les beautés des sessions")
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só a mão que apaga pode escrever o que é verdadeiro
meister eckhart
trad. nc
14/06/2012
15/05/2012
08/05/2012
buñuel
"esta ânsia obsessiva de tudo compreender e, em consequência, reduzir e mediocrizar...
toda a minha vida fui perseguido por perguntas imbecis - porquê isto, porquê aquilo...
esta obsessão é um dos grandes males da natureza humana
foramos nós capazes de deixar o nosso destino ao acaso e de aceitar, sem vacilação, o mistério que é a nossa vida, talvez nos aproximássemos mais duma qualquer forma de felicidade, muito semelhante à inocência"
luís buñuel
04/03/2012
03/03/2012
éden - o filme desta terra
éden - o filme desta terra
tomás maia / andré maranha
é um grande recurso da alma que trabalha em segredo, que, no momento da mais elevada consciência, ela se esquive à consciência, e que, antes de o deus presente dela se apossar efectivamente, ela lhe faça frente com uma palavra audaz e muitas vezes mesmo blasfema, preservando assim a possibilidade sagrada, viva do espírito.
no auge da consciência, ela compara-se sempre então a objectos que não têm consciência, mas que assumem no seu destino a forma da consciência. um objecto assim é uma terra tornada deserta, que na sua exuberante fecundidade originária fortalece em excesso os efeitos da luz do sol, e por isso se torna árida
f. holderlin notas sobre antígona (II)
no interior, a partir do que é distinto, forma-se um espírito solene. tão simples são porém as imagens, tão sagradas, que muitas vezes realmente se teme descrevê-las. os celestiais, porém, sempre clementes, tudo de uma só vez, como ricos, possuem-nas, virtude e alegria. tudo isto pode o homem imitar. pode um homem, quando a vida é puro esforço, olhar para o alto e dizer: assim quero eu ser também? sim. enquanto perdurar ainda no coração a amabilidade, a pura, não será infortunadamente que o homem se mede com a divindade. será deus desconhecido? será manifesto como o céu? - antes o creio. é do homem a medida. pleno de mérito, mas poeticamente, assim habita o homem nesta terra. mais pura porém não é a sombra da noite com as estrelas, se me é permitido dizê-lo, do que o homem, de quem se diz que é uma imagem da divindade. existirá na terra uma medida? nenhuma existe.
a vida é morte, e a morte é também uma vida.
f. holderlin - num ameno azul...
(tradução bruno c. duarte)
o homem que está apaixonado
o homem que está apaixonado encontra um búzio na margem. quando o leva ao ouvido, não ouve o mar, nem o vento, nem os anjos, mas só a sua própria voz cantando: amo-te. nunca ouvira nada tão belo.
na outra margem, todos os homens dormem. alguém caminha lentamente ao longo da praia, leva-os um a um ao ouvido, escuta. nalguns desses búzios humanos ouve cães a ladrar, noutros tigres rugir na imensidão ou então martelos a ressoar, e noutros ainda crescer o crescer das máquinas. mas num deles ouve ecoar o grito de um peixe. é o som que faz o homem que está apaixonado quando alguém o leva ao ouvido.
se os planetas pudessem amar, deixariam a sua órbita e provocariam o caos. a salvação do mundo deve-se ao facto de o amor ser impossível. o homem que está apaixonado adivinha, também ele sabe, que o amor é gémeo da morte. mas isso não o impede, a ele que é prisioneiro do seu destino, de entrar de rompante na cela do seu vizinho gritando de alegria: sou livre!
stig dagerman
(publicação póstuma 1955)
o que é do mar se os rios se recusam?
estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. de igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. a minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anónima chamada população mundial, sou também uma unidade autónoma.
só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. porque me hei-de eu lembrar dela? a vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. as suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. mas porque me hei-de eu pôr a contar? no fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.
na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. o encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. tudo se passa como se não houvesse tempo. que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? a felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.
assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. o salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? e o que é perfeito não desempenha tarefas. o que é perfeito labora em estado de repouso. é absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. que outra tarefa a do homem senão viver? faz máquinas? escreve livros? faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. não é isso que importa. importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. importa é saber-se um fim autónomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.
(…)
a humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine.
é impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. a vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.
stig dagerman - “a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”
(versão de paula castro e josé daniel ribeiro - adaptação: nc)
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