prosseguimento da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa - ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)
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31.
o sadhana é um retorno e uma continuidade através das rupturas
estas, por vezes, são tão dolorosas e prolongadas que o sadhaka sente o seu futuro atraiçoado
nesses momentos é o desespero que, paradoxalmente, sustenta o seu ânimo
a revolta torna-se nutritiva e estimulante porque agita o fundo das cinzas e aviva o lume quase apagado
as palavras irrompem-lhe da boca com veios vermelhos e cintilações negras
esta tempestade expulsa as escórias e lava as vísceras enrugadas
no côncavo da vaga que se levanta a água é lisa, de uma tranquilidade pura
é então que o sadhaka se recorda de uma grande luz branca da sua infância
uma pequena luz que palpita, como um pulso, guia-o através da nocturna espessura que o rodeia
mas o corpo pesa-lhe como um destroço ou um fardo solto e desatado
só o sadhana poderia reconstituir a integridade corporal que o faria sentir-se em uníssono com o mundo
ele procura então apreender as coordenadas imanentes que o orientam sem que delas tenha consciência
mas estas são, por natureza, abertas ao mundo e é por elas que o mundo nos é dado na sua imediatez, elas escapam à observação e à possibilidade de serem objecto de experiência
o seu movimento em direcção ao mundo é irreversível e só através dele poderemos sentir a vibração silenciosa da sua construção do mundo
num momento propício o sadhaka recomeça o trabalho mas o que o domina é a sensação de vazio, um vazio fresco em que tudo se afigura nu e despojado, como à espera de uma nova relação primeira
o tremor das mãos e a vivacidade dos olhos revelam que o espírito da obra é a liberdade do ser voltado para o futuro iminente e para o presente do seu próprio movimento inaugural
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32.
às vezes é um vislumbre, uma pequena sombra, um muro cintilante ou um subtil murmúrio que desencadeia a energia construtiva que parecia ter abandonado o sadhaka
quando se lança à obra não é movido por nenhum fundo, por nenhum eixo, por nenhuma razão, por nenhum nome, por nenhuma semente
só o seu alento se eleva das cinzas e do vazio para além de todos os limites erigindo o sadhana com todos os seus enigmas e segredos, na liberdade de um movimento que só de si arranca o sentido e as formas nuas que vão surgindo
o ímpeto construtivo abre então perspectivas imprevistas, espaços de silêncios, corredores em que o olvido cintila sossegado, clareiras em que a brisa marinha restaura as enrugadas frontes
amadurecendo à sombra da sua carne, readquire a adolescência fértil e volúvel e o gosto pelos salubres enigmas de um espaço unânime e fulgurante em que o mundo se oferece como um grande navio aéreo e ondulado
uma corrente de vida nova e de impetuosa graça converte os elementos do corpo em caprichosas ondas que restauram a vivacidade primeira do desejo e a fúria fresca em que foram abolidas as máscaras quotidianas e os atavios arbitrários das construções negativas
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33.
a continuidade do tempo é a sucessão de presenças e ausências, de elevações e quedas, de desaparecimentos no seio do aparecer, de enxames de sombras nos círculos luminosos
o conhecimento desta dualidade leva o sadhaka a ter em conta o vazio e a sombra como condições da densidade e leveza do seu sadhana
assim, na materialidade maciça do ser, é preciso abrir concavidades e vazios para que o fluir do tempo se actualize na matéria com a musicalidade do ser
a graça e o encanto das formas resulta desse jogo de luzes e sombras, de plenos e vazios, de formas côncavas e convexas, de planos e curvas, de tonalidades suaves e de cores intensas
o espaço do sadhana será como uma concha adormecida com largas e baixas janelas abertas para o mar e os campos monótonos de sobreiros e olivais, e de um terraço liso e vermelho avistar-se-á também o mar e o horizonte e, à noite, o silencioso e cintilante harmónio das estrelas como um vasto leque imóvel e rutilante, soberanamente aberto
esta abertura do espaço cósmico fomentará a unidade que o construtor procura através da dualidade do tempo
o asana terá por isso a flexibilidade vegetal de uma planta e a transparência de um animal aéreo suspenso num voo largo e repousado, interminavelmente aberto à tranquilidade de um puro espaço
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34.
o sadhaka sabe que não é possível determinar nem descobrir o que nos sustenta, o que nos ilumina, o que nos orienta
mas tudo o que ele pratica é o fruto dessa ignorância primeira que o projecta para a frente, para um vazio fértil em que as formas flexíveis e mutáveis serão as metáforas de um espaço puro e inicial em consonância com as coordenadas dos sentidos e as latentes orientações do ser
assim, o sadhaka trabalha na matéria implicita do corpo, sem o conhecer, e ergue à sua frente as formas que ele inventa para ir ao encontro do que o constitui e lhe é sempre anterior no seu silêncio de estrela vegetal
o sadhana é como que um anel que reúne o princípio e o fim, a origem e o alvo, o gérmen e o espaço vivo da circulação nupcial
e por isso o asana será surpreendentemente vivo e de um fascinante equilíbrio entre vertentes contrárias, entre o deserto e o oásis, entre uma caverna calcinada e a jubilação copiosa de uma torrente interminável
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35.
o principal efeito estético do sadhana é a sensação do indefinível para além de qualquer interrogação ou dúvida
ao mesmo tempo leve e plena, densa e suave, o espaço da prática não será apenas um abrigo ou uma fortaleza
ele será uma pulsação do mundo e a modulação de um paraíso vegetal
o vasto chão, as pequenas rugosidades, as paredes, as esquinas, as janelas, corresponderão a outras tantas formas de estar e de participar na unânime respiração da terra
eloendros, hibiscos, pinheiros, eucaliptos, araucárias e ciprestes envolverão profusamente o asana com algumas abertas para que o mar se aviste na sua extensa tranquilidade azul
o sossego das tardes será vagarosamente luminoso como se o instante se eternizasse até à opulência estática do ocaso
será a hora das grandes leituras com o acompanhamento dos leves sussurros de folhagem e de alguns gorjeios de aves
a luz será o meio soberano, quer na sua plenitude solar, quer nas tonalidades ténues em que se combina com as sombras
os sadhaka sentirão os rumores, os perfumes e o silêncio como um concerto indefinível a que não é necessário prestar atenção para sentir a sua maravilhosa conivência com o modo de estar e sentir a plenitude tranquila da tarde
ao crepúsculo os rumores tornam-se ténues e a luz de seda envolve-se em pregas de sombra vagarosa, enquanto o sol, atrás de um pinheiro, filtra os seus raios de laranja por entre o verde da folhagem
é a hora em que as lâmpadas se acendem na vasta placidez do silêncio planetário e tudo ressuma uma misteriosa tranquilidade, as árvores e as casas, os montes e o mar
é a hora da consagração do dia em que os sentidos musicais se harmonizam como se correspondessem ao subterrâneo coração da terra na tranquila nostalgia de quem recebe as silenciosas essências do crepúsculo
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36.
às vezes, a contemplação da falésia suscita uma pátria árida de vastos campos ressequidos, de agidas plantas selvagens
o desejo e a morte combinam-se numa vibração nostálgica ou na pureza imputrescível de uma alta pedra
as pálpebras aderem à inteira dimensão do espaço e respiram o seu pulmão roxo sobre as ilhas lilases
é a origem, como uma vagina verde plenamente aberta entre as altas ervas e os montes azulados de um perene crepúsculo
apesar da aridez e da vastdão deserta dos seus campos, o ser encontra aí o seu espaço inicial e a sua liberdade originária
é a partir deste contacto primeiro que a ferida do ser poderá ser reparada na prática futura que terá sempre em conta essa solicitação inicial em que a unidade era um campo aberto e um estremecimento de âmbito universal
todos os germes oprimidos eclodirão com a sua fúria germinante infundindo ao sadhana as imprevisíveis flexões das forças que outrora conheceram a unidade originária
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37.
é já noite alta
o sadhaka sente o vazio absoluto do universo e de si próprio
é apenas um ponto da solidão infinita e apenas esse ponto o separa da morte e do caos
nada se pode erigir sobre esse ponto de redução extrema e de negação total
a abolição das formas e dos seres é completa e a consciência é apenas a consciência da sombra vã e transitória do ser
o ponto oscila entre as sombras insondáveis e a memória não é mais do que o ténue reflexo dos astros que giravam numa adolescência remotíssima
nenhuma evocação, porém, pode restituir a presença solar do que outrora foi um instante fulgurante e inicial
o ponto é o lugar interior da ausência universal e o irredutível não da consciência reduzida ao núcleo vazio da sua reflexividade
esta situação é vivida plenamente como uma impossibilidade e, por isso, ele nada faz, esperando apenas pelo fio de água da meia-noite e pelo sono que ele induz no silêncio da sua navegação imóvel e plácida através da noite
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38.
da fronte da floresta exala-se a frescura verde de uma força unânime
o sadhaka, sem uma palavra, sem um gesto, recebe esse poderoso incentivo vegetal e, por enquanto, limita-se a uma receptividade pura, como se a génese do sadhana dependesse dessa suspensão absoluta de qualquer interferência no processo da recepção daquelas ondas regeneradoras e vivificantes do bosque que ascende por uma das colinas circundantes
um deus elemental consubstancia-se nesse bafo azul e acre, tranquilamente fértil, voluptuosamente virgem
interromper essa emanação seria um atentado ao sadhana, uma precipitação perigosa
por isso o sadhaka entrega-se, com todos os seus sentidos, à felicidade pura daquele momento em que o corpo se une à vivacidade agreste do ar e à lisa e ampla pulsação da grande energia verde que inunda a atmosfera da floresta e da construção
em certo momento, porém, levanta-se e em passos leves e silenciosos, dirige-se para a obra e inicia o seu trabalho com uma sensação de leveza fértil e de flexibilidade luminosa
o desejo flui nas suas mãos cuja delicadeza subtil sentia como nunca
as pedras não pesavam e ganhavam contornos suaves e felinos, de uma sinuosa voluptuosidade, de uma ardência solar
ao fim da manhã o sono apossou-se dele e a densidade azul da floresta condensou-se nele como se fosse o próprio deus elemental que adormecesse no seio da vegetação paradisíaca
o sono fio profundo e reparador, cheio de silêncio e murmúrios vegetais, de um constante fluir de águas subtis, de leves figuras femininas de uma transparência cintilante, de vozes que se confundiam com as sombras e os sussurros da vasta e tranquila floresta
quando acordou era meio-dia e o sol inundava o corpo, revelando, com uma certa violência, as formas que o desejo modelara e que, agora, evidenciavam a sua virulência ardente e uma certa sumptuosidade monumental
a falta da sombra tornava-as um pouco brutais e excessivas, de uma desenvoltura desequilibrada
era necessário esperar pelo crepúsculo para que a harmonia se estabelecesse entre a suavidade da luz e as ténues tonalidades da sombra
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39.
o sadhaka está reunido com alguns amigos à volta de uma mesa de pedra, no terraço
um deles abana um velho fogareiro de barro onde vai pondo a assar sardinhas prateadas e um pouco gordas que logo se tornam loiras sobre a grelha por entre a qual se elevam as pequenas e faiscantes chamas do carvão
o ambiente é extremamente agradável porque dali se vê a larga faixa azul de um rio e entre os pinheiros e os eucaliptos e porque o ar é suave e a folhagem oscila levemente dispensando uma sombra fresca e tranquila
este instante do encontro é um privilégio único em que a alegria reina e a palavra é fácil, transparente, plena da energia que difundem as árvores verdejantes de largas copas, a terra de um jardim um pouco selvagem, os fermentos vivos da aragem, o espaço solar, a pureza ácida dos frutos e das sementes
o instante é vivido na plenitude dos elementos que, imperceptivelmente, se combinam e constituem a integridade viva da presença do ser
a consciência não se apercebe da intrincada e odorífera trama subtil de tudo quanto a estimula e a projecta no círculo vivo do instante sempre inicial
pouco se fala do sadhana, mas esta animada e revificante pausa é ainda um sadhana, o leve e incandescente sadhana da amizade na abertura do encontro e da participação mútua na esfera do ser
a separação individual deixa de reger o comportamento dos que participam no encontro e a palavra opera a metamorfose do eu que, assim, se torna o centro aberto dos impulsos afectivos e eufóricos que se reflectem no círculo luminoso e ardente do encontro
é por esta razão que o sadhaka sente que a obra está em movimento na palavra viva dos que estão sentados em torno da redonda mesa de pedra bebendo um pouco de vinho e comendo as doiradas sardinhas que um deles lhe vai passando de sobre a grelha colocada sobre as brasas de que se elevam pequenas chamas faiscantes, no velho fogareiro de barro, que esse amigo aviva com um pequeno abano de palhas entrançadas
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40.
em certos momentos, algo estremece e fulgura tanto no corpo do sadhaka como no espaço
e é o mundo que começa mais real que nunca mas também mais fugidio do que nunca na sua instantânea novidade
a emoção do sadhaka é a vibração da inocência do ser que se abre ao espaço do mundo onde desejaria consumar-se nupcialmente na leveza do encontro entre a viva fragilidade do desejo e a fulgurante densidade de um astro
um dia em que estava a conversar com um amigo no campo, uma nuvem sobre uma montanha atraiu-o magneticamente e ficou suspenso por alguns segundos da maravilha inesperada, inteiramente inexplicável, embora aparentemente banal e comum
em certos momentos, uma comoção muito viva e muito fina e uma espécie de tremor luminoso abre-nos um espaço primaveril em que as coisas aparecem com a vivacidade inicial do mundo originário
a instantaneidade desses momentos está para além da possibilidade de retenção ou da apropriação que desejaríamos para preservá-los na continuidade da existência quotidiana
mas são eles que, quer na nebulosa da memória, quer no frémito da eminência, são os astros imputrescíveis do instante
a ambição do sadhaka é ser fiel a esta comoção originária em que, instantaneamente, o espaço revela a infinidade da origem e a relação total entre o corpo e o espaço
ele não se esquece de que o corpo é orientado por coordenadas imperceptíveis inteiramente ligadas ao espaço como condição primeira e absoluta de todos os gestos, movimentos e posições que ele realize
o espaço não é só uma condição permanente da existência mas também a integridade pura e livre que o ser deseja atingir para se completar no seio do uno
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31.
o sadhana é um retorno e uma continuidade através das rupturas
estas, por vezes, são tão dolorosas e prolongadas que o sadhaka sente o seu futuro atraiçoado
nesses momentos é o desespero que, paradoxalmente, sustenta o seu ânimo
a revolta torna-se nutritiva e estimulante porque agita o fundo das cinzas e aviva o lume quase apagado
as palavras irrompem-lhe da boca com veios vermelhos e cintilações negras
esta tempestade expulsa as escórias e lava as vísceras enrugadas
no côncavo da vaga que se levanta a água é lisa, de uma tranquilidade pura
é então que o sadhaka se recorda de uma grande luz branca da sua infância
uma pequena luz que palpita, como um pulso, guia-o através da nocturna espessura que o rodeia
mas o corpo pesa-lhe como um destroço ou um fardo solto e desatado
só o sadhana poderia reconstituir a integridade corporal que o faria sentir-se em uníssono com o mundo
ele procura então apreender as coordenadas imanentes que o orientam sem que delas tenha consciência
mas estas são, por natureza, abertas ao mundo e é por elas que o mundo nos é dado na sua imediatez, elas escapam à observação e à possibilidade de serem objecto de experiência
o seu movimento em direcção ao mundo é irreversível e só através dele poderemos sentir a vibração silenciosa da sua construção do mundo
num momento propício o sadhaka recomeça o trabalho mas o que o domina é a sensação de vazio, um vazio fresco em que tudo se afigura nu e despojado, como à espera de uma nova relação primeira
o tremor das mãos e a vivacidade dos olhos revelam que o espírito da obra é a liberdade do ser voltado para o futuro iminente e para o presente do seu próprio movimento inaugural
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às vezes é um vislumbre, uma pequena sombra, um muro cintilante ou um subtil murmúrio que desencadeia a energia construtiva que parecia ter abandonado o sadhaka
quando se lança à obra não é movido por nenhum fundo, por nenhum eixo, por nenhuma razão, por nenhum nome, por nenhuma semente
só o seu alento se eleva das cinzas e do vazio para além de todos os limites erigindo o sadhana com todos os seus enigmas e segredos, na liberdade de um movimento que só de si arranca o sentido e as formas nuas que vão surgindo
o ímpeto construtivo abre então perspectivas imprevistas, espaços de silêncios, corredores em que o olvido cintila sossegado, clareiras em que a brisa marinha restaura as enrugadas frontes
amadurecendo à sombra da sua carne, readquire a adolescência fértil e volúvel e o gosto pelos salubres enigmas de um espaço unânime e fulgurante em que o mundo se oferece como um grande navio aéreo e ondulado
uma corrente de vida nova e de impetuosa graça converte os elementos do corpo em caprichosas ondas que restauram a vivacidade primeira do desejo e a fúria fresca em que foram abolidas as máscaras quotidianas e os atavios arbitrários das construções negativas
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33.
a continuidade do tempo é a sucessão de presenças e ausências, de elevações e quedas, de desaparecimentos no seio do aparecer, de enxames de sombras nos círculos luminosos
o conhecimento desta dualidade leva o sadhaka a ter em conta o vazio e a sombra como condições da densidade e leveza do seu sadhana
assim, na materialidade maciça do ser, é preciso abrir concavidades e vazios para que o fluir do tempo se actualize na matéria com a musicalidade do ser
a graça e o encanto das formas resulta desse jogo de luzes e sombras, de plenos e vazios, de formas côncavas e convexas, de planos e curvas, de tonalidades suaves e de cores intensas
o espaço do sadhana será como uma concha adormecida com largas e baixas janelas abertas para o mar e os campos monótonos de sobreiros e olivais, e de um terraço liso e vermelho avistar-se-á também o mar e o horizonte e, à noite, o silencioso e cintilante harmónio das estrelas como um vasto leque imóvel e rutilante, soberanamente aberto
esta abertura do espaço cósmico fomentará a unidade que o construtor procura através da dualidade do tempo
o asana terá por isso a flexibilidade vegetal de uma planta e a transparência de um animal aéreo suspenso num voo largo e repousado, interminavelmente aberto à tranquilidade de um puro espaço
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34.
o sadhaka sabe que não é possível determinar nem descobrir o que nos sustenta, o que nos ilumina, o que nos orienta
mas tudo o que ele pratica é o fruto dessa ignorância primeira que o projecta para a frente, para um vazio fértil em que as formas flexíveis e mutáveis serão as metáforas de um espaço puro e inicial em consonância com as coordenadas dos sentidos e as latentes orientações do ser
assim, o sadhaka trabalha na matéria implicita do corpo, sem o conhecer, e ergue à sua frente as formas que ele inventa para ir ao encontro do que o constitui e lhe é sempre anterior no seu silêncio de estrela vegetal
o sadhana é como que um anel que reúne o princípio e o fim, a origem e o alvo, o gérmen e o espaço vivo da circulação nupcial
e por isso o asana será surpreendentemente vivo e de um fascinante equilíbrio entre vertentes contrárias, entre o deserto e o oásis, entre uma caverna calcinada e a jubilação copiosa de uma torrente interminável
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35.
o principal efeito estético do sadhana é a sensação do indefinível para além de qualquer interrogação ou dúvida
ao mesmo tempo leve e plena, densa e suave, o espaço da prática não será apenas um abrigo ou uma fortaleza
ele será uma pulsação do mundo e a modulação de um paraíso vegetal
o vasto chão, as pequenas rugosidades, as paredes, as esquinas, as janelas, corresponderão a outras tantas formas de estar e de participar na unânime respiração da terra
eloendros, hibiscos, pinheiros, eucaliptos, araucárias e ciprestes envolverão profusamente o asana com algumas abertas para que o mar se aviste na sua extensa tranquilidade azul
o sossego das tardes será vagarosamente luminoso como se o instante se eternizasse até à opulência estática do ocaso
será a hora das grandes leituras com o acompanhamento dos leves sussurros de folhagem e de alguns gorjeios de aves
a luz será o meio soberano, quer na sua plenitude solar, quer nas tonalidades ténues em que se combina com as sombras
os sadhaka sentirão os rumores, os perfumes e o silêncio como um concerto indefinível a que não é necessário prestar atenção para sentir a sua maravilhosa conivência com o modo de estar e sentir a plenitude tranquila da tarde
ao crepúsculo os rumores tornam-se ténues e a luz de seda envolve-se em pregas de sombra vagarosa, enquanto o sol, atrás de um pinheiro, filtra os seus raios de laranja por entre o verde da folhagem
é a hora em que as lâmpadas se acendem na vasta placidez do silêncio planetário e tudo ressuma uma misteriosa tranquilidade, as árvores e as casas, os montes e o mar
é a hora da consagração do dia em que os sentidos musicais se harmonizam como se correspondessem ao subterrâneo coração da terra na tranquila nostalgia de quem recebe as silenciosas essências do crepúsculo
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36.
às vezes, a contemplação da falésia suscita uma pátria árida de vastos campos ressequidos, de agidas plantas selvagens
o desejo e a morte combinam-se numa vibração nostálgica ou na pureza imputrescível de uma alta pedra
as pálpebras aderem à inteira dimensão do espaço e respiram o seu pulmão roxo sobre as ilhas lilases
é a origem, como uma vagina verde plenamente aberta entre as altas ervas e os montes azulados de um perene crepúsculo
apesar da aridez e da vastdão deserta dos seus campos, o ser encontra aí o seu espaço inicial e a sua liberdade originária
é a partir deste contacto primeiro que a ferida do ser poderá ser reparada na prática futura que terá sempre em conta essa solicitação inicial em que a unidade era um campo aberto e um estremecimento de âmbito universal
todos os germes oprimidos eclodirão com a sua fúria germinante infundindo ao sadhana as imprevisíveis flexões das forças que outrora conheceram a unidade originária
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37.
é já noite alta
o sadhaka sente o vazio absoluto do universo e de si próprio
é apenas um ponto da solidão infinita e apenas esse ponto o separa da morte e do caos
nada se pode erigir sobre esse ponto de redução extrema e de negação total
a abolição das formas e dos seres é completa e a consciência é apenas a consciência da sombra vã e transitória do ser
o ponto oscila entre as sombras insondáveis e a memória não é mais do que o ténue reflexo dos astros que giravam numa adolescência remotíssima
nenhuma evocação, porém, pode restituir a presença solar do que outrora foi um instante fulgurante e inicial
o ponto é o lugar interior da ausência universal e o irredutível não da consciência reduzida ao núcleo vazio da sua reflexividade
esta situação é vivida plenamente como uma impossibilidade e, por isso, ele nada faz, esperando apenas pelo fio de água da meia-noite e pelo sono que ele induz no silêncio da sua navegação imóvel e plácida através da noite
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da fronte da floresta exala-se a frescura verde de uma força unânime
o sadhaka, sem uma palavra, sem um gesto, recebe esse poderoso incentivo vegetal e, por enquanto, limita-se a uma receptividade pura, como se a génese do sadhana dependesse dessa suspensão absoluta de qualquer interferência no processo da recepção daquelas ondas regeneradoras e vivificantes do bosque que ascende por uma das colinas circundantes
um deus elemental consubstancia-se nesse bafo azul e acre, tranquilamente fértil, voluptuosamente virgem
interromper essa emanação seria um atentado ao sadhana, uma precipitação perigosa
por isso o sadhaka entrega-se, com todos os seus sentidos, à felicidade pura daquele momento em que o corpo se une à vivacidade agreste do ar e à lisa e ampla pulsação da grande energia verde que inunda a atmosfera da floresta e da construção
em certo momento, porém, levanta-se e em passos leves e silenciosos, dirige-se para a obra e inicia o seu trabalho com uma sensação de leveza fértil e de flexibilidade luminosa
o desejo flui nas suas mãos cuja delicadeza subtil sentia como nunca
as pedras não pesavam e ganhavam contornos suaves e felinos, de uma sinuosa voluptuosidade, de uma ardência solar
ao fim da manhã o sono apossou-se dele e a densidade azul da floresta condensou-se nele como se fosse o próprio deus elemental que adormecesse no seio da vegetação paradisíaca
o sono fio profundo e reparador, cheio de silêncio e murmúrios vegetais, de um constante fluir de águas subtis, de leves figuras femininas de uma transparência cintilante, de vozes que se confundiam com as sombras e os sussurros da vasta e tranquila floresta
quando acordou era meio-dia e o sol inundava o corpo, revelando, com uma certa violência, as formas que o desejo modelara e que, agora, evidenciavam a sua virulência ardente e uma certa sumptuosidade monumental
a falta da sombra tornava-as um pouco brutais e excessivas, de uma desenvoltura desequilibrada
era necessário esperar pelo crepúsculo para que a harmonia se estabelecesse entre a suavidade da luz e as ténues tonalidades da sombra
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o sadhaka está reunido com alguns amigos à volta de uma mesa de pedra, no terraço
um deles abana um velho fogareiro de barro onde vai pondo a assar sardinhas prateadas e um pouco gordas que logo se tornam loiras sobre a grelha por entre a qual se elevam as pequenas e faiscantes chamas do carvão
o ambiente é extremamente agradável porque dali se vê a larga faixa azul de um rio e entre os pinheiros e os eucaliptos e porque o ar é suave e a folhagem oscila levemente dispensando uma sombra fresca e tranquila
este instante do encontro é um privilégio único em que a alegria reina e a palavra é fácil, transparente, plena da energia que difundem as árvores verdejantes de largas copas, a terra de um jardim um pouco selvagem, os fermentos vivos da aragem, o espaço solar, a pureza ácida dos frutos e das sementes
o instante é vivido na plenitude dos elementos que, imperceptivelmente, se combinam e constituem a integridade viva da presença do ser
a consciência não se apercebe da intrincada e odorífera trama subtil de tudo quanto a estimula e a projecta no círculo vivo do instante sempre inicial
pouco se fala do sadhana, mas esta animada e revificante pausa é ainda um sadhana, o leve e incandescente sadhana da amizade na abertura do encontro e da participação mútua na esfera do ser
a separação individual deixa de reger o comportamento dos que participam no encontro e a palavra opera a metamorfose do eu que, assim, se torna o centro aberto dos impulsos afectivos e eufóricos que se reflectem no círculo luminoso e ardente do encontro
é por esta razão que o sadhaka sente que a obra está em movimento na palavra viva dos que estão sentados em torno da redonda mesa de pedra bebendo um pouco de vinho e comendo as doiradas sardinhas que um deles lhe vai passando de sobre a grelha colocada sobre as brasas de que se elevam pequenas chamas faiscantes, no velho fogareiro de barro, que esse amigo aviva com um pequeno abano de palhas entrançadas
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40.
em certos momentos, algo estremece e fulgura tanto no corpo do sadhaka como no espaço
e é o mundo que começa mais real que nunca mas também mais fugidio do que nunca na sua instantânea novidade
a emoção do sadhaka é a vibração da inocência do ser que se abre ao espaço do mundo onde desejaria consumar-se nupcialmente na leveza do encontro entre a viva fragilidade do desejo e a fulgurante densidade de um astro
um dia em que estava a conversar com um amigo no campo, uma nuvem sobre uma montanha atraiu-o magneticamente e ficou suspenso por alguns segundos da maravilha inesperada, inteiramente inexplicável, embora aparentemente banal e comum
em certos momentos, uma comoção muito viva e muito fina e uma espécie de tremor luminoso abre-nos um espaço primaveril em que as coisas aparecem com a vivacidade inicial do mundo originário
a instantaneidade desses momentos está para além da possibilidade de retenção ou da apropriação que desejaríamos para preservá-los na continuidade da existência quotidiana
mas são eles que, quer na nebulosa da memória, quer no frémito da eminência, são os astros imputrescíveis do instante
a ambição do sadhaka é ser fiel a esta comoção originária em que, instantaneamente, o espaço revela a infinidade da origem e a relação total entre o corpo e o espaço
ele não se esquece de que o corpo é orientado por coordenadas imperceptíveis inteiramente ligadas ao espaço como condição primeira e absoluta de todos os gestos, movimentos e posições que ele realize
o espaço não é só uma condição permanente da existência mas também a integridade pura e livre que o ser deseja atingir para se completar no seio do uno