conclusão da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa - ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)
51.
a finalidade do sadhana não é a obra acabada para ser habitada finalmente na tranquilidade de um repouso merecido
o movimento corporal é um fim em si mesmo, porque é um modo de abrir e habitar o espaço da prática
a obra nunca será uma propriedade mas sim a actividade incessante de um operário que se constrói a si mesmo em cada gesto construtivo
a matéria obscura e a matéria diurna reúnem-se num gesto inovador que se repercute no sadhaka amante
a realidade aparece agora à luz desse gesto amoroso e ingénuo que é como um feixe de centelhas que se curva, se eleva e se abate sobre a pedra e a modela tornando-a um astro do instante criativo
graças a esta acção construtiva, a opacidade da existência é integrada no movimento instaurador do sadhana e, sem ser suprimida, torna-se uma componente estética da prática em construção
esta transformação da relação com o real não encerra o ciclo das interrogações, das dúvidas e angústias do sadhaka
estas são revividas à luz da génese da prática e consagradas como momentos do mistério vivo do real
todavia, isto não quer dizer que toda a negatividade da existência humana seja reabsorvida e integrada pelo sadhana
o núcleo deste é sempre um ponto negro e as suas margens confinam com o silêncio do impronunciável
o gesto construtivo não suprime ou elide o negativo, mas o seu ímpeto inadiável e a sua verticalidade erigem-se sobre o fundo negro da existência e criam o horizonte das possibilidades iniciais do sadhana humano
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52.
tudo se passa como se uma verdade oculta a cada momento ameaçasse a soberania da verdade aparente dos nosso hábitos, dos nossos gestos, das nossas crenças
essa verdade, que é a verdade do corpo e dos sentidos, foi suprimida pela visão que a integrou em si, apagando-a completamente na sua visibilidade imediata e na sua presença total
mas entre a visão e os sentidos a diferença oculta subsiste sempre e essa diferença manifesta-se na iminência de algo desconhecido ou num mal estar ou ansiedade inexplicável
é esta parte secreta do ser que se subleva violentamente quando o sadhaka se entrega ao fluxo criativo
o sadhana tende, portanto, ao desocultamento de uma verdade outra e, por isso, a uma sublevação da verdade estabelecida mediante a irrupção do desejo que nasce dos sentidos submersos e aponta à totalidade corporal do ser
a relação que o sadhana instaura é uma nova ordenação do mundo ou o mundo no seu começo para além das determinações estabelecidas do real
o corpo é, assim, a grande fonte energética que gera o movimento do sadhana e lhe abre o horizonte da totalidade originária
esta totalidade engloba as zonas mais obscuras e violentas do ser e liberta-as da asfixia e da tirania da mente e da visão
a verdade outra que ameaçava a verdade aparente das coisas torna-se, mediante o gesto do sadhaka, a verdade do ser na liberdade das energias insurrectas
esta metamorfose unifica e equilibra as diversas e contrárias vertentes do ser e integra-as na temporidade duma prática em que o instante é permanentemente renovado pela atenção criativa e pela sua fruição estética como instância da plenitude corporal
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53.
a construção do sadhana é sempre uma reconstrução do corpo
a perda inicial transforma-se nela em coordenadas construtivas e é a partir dela que o sadhaka ergue a sua construção corporal
a memória de uma integridade primordial alia-se à ferida originada pela ruptura do ser e ambas se integram no movimento do sadhana em que a imaginação reconstitui a plenitude do corpo antes da sua separação originária
mas a ferida não é suprimida por este movimento, uma vez que ela própria o suscita e o promove sem nunca perder a sua nudez obscura e inviolável
por isso, as sombras do sadhana são-lhe tão necessárias quanto as luzes fulgurantes e as cores solares
mas a participação da ferida não é apenas nas sombras mas também na cor vermelha e vibrante dos flancos do sadhana sobranceiros ao abismo
o ritmo do sadhana determina o espaço temporal da habitação em que a paisagem participa como um elemento interior que, profusamente, o areja e modela
é esta receptividade à natureza que equilibra o espaço do sadhana entre as luzes e as sombras e torna possível a respiração ao nível da ferida inicial
o ritmo é um elemento essencial do sadhana porque é ele que o unifica e lhe proporciona a habitabilidade de um espaço novo
o corpo, então, sente-se contemporâneo e cúmplice do grande círculo do ser em que os montes, o mar, as estrelas e os animais são presenças vivas dele próprio reencontrado no espaço solar da unidade natural
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54.
a contingência da existência humana começa na sua génese inteiramente aleatória
o encontro entre os elementos genéticos que a originam é fortuito porque poderia não efectuar-se e, assim, outro encontro entre outros elementos genéricos teria dado origem a outro ser humano
durante o decurso da vida humana a contingência determina a instabilidade e a incerteza da condição do homem, cujo fundamento não é um dado mas um alvo móvel e constante no processo da existência
o sadhaka conhece esta indeterminação da origem e, sem a negar, procura erguer o seu sadhana sobre as pedras vivas da sua identidade
esta é, ao mesmo tempo, um dado e um alvo e é no processo circular do sadhana que o fundamento se encontra sempre como um centro móvel que se dirige para o porvir
a identidade é, por isso, condição da génese do sadhana mas é, por outro lado, a finalidade do processo criativo que a transforma e lhe assegura a sua integridade na relação dinâmica com os outros
este círculo do sadhana está em permanente mudança e, num incessante dinamismo, renova e reactualiza a identidade primeira do ser
esta identidade, porém, nunca é compacta nem um fundamento absoluto, porque a cada momento a contingência do ser abala as coordenadas do sadhana
estes sismos revelam que o fundamento é sempre precário e susceptível de se desagregar
o sadhaka, porém, é oreintado, constantemente, para o espaço solar da verticalidade humana e desenvolve a sua integridade no movimento dinâmico do seu sadhana
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55.
a ingenuidade não pode ser cultivada mas ela é um elemento essencial do sadhana
para vencer a inércia que se interpõe entre o desejo de praticar e a própria prática é preciso correr o risco de iniciar o movimento imediatamente antes de qualquer projecto ou antevisão
a elaboração de uma ideia preparatória pode absorver a energia do sadhaka ou levá-la a um impasse
o estado mais propício ao sadhana é o vazio mental, porque é nele que as impulsões ingénuas podem surgir espontaneamente
as várias idades e estações do sadhaka irrompem da nebulosa interior e resolvem-se em imagens, linhas e volumes que não obedecem aos dados da memória mas a subvertem e integram no movimento da prática
para além da memória, a imaginação liberta as regiões interditas e perspectiva-as no seu espaço instaurador
a ingenuidade é o próprio espírito original da criação que participa em todo o acto que visa o horizonte do ser
ela situa-se aquém da visão lúcida e vigilante, no interior da pupila enublada e semifechada pelo sono
a sua distracção é uma atenção segunda, imersa no limbo em que se equacionam as relações primeiras com o mundo
qualquer partícula da realidade exterior pode interromper o fluxo desta região íntima e sempre misteriosamente velada
o carácter inicial e inovador do sadhana resulta deste contacto fundador que estimula a imaginação e fermenta a sensibilidade
o círculo do presente renova-se e transforma-se na possibilidade de uma presença plena e inaugural
se o sadhana é uma forma de vida é porque a ingenuidade liga os seus materiais com a sua seiva fértil
ela é o génio da unificação e da integridade virgem do ser
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56.
o sadhaka aspira a uma comunidade fraterna e solidária
por isso, vive longe da sociedade, convivendo apenas com alguns amigos e, quer solitário, quer em companhia, o seu sadhana é a constante renovação da sua vida
se a existência é uma incessante mudança, o móvel equilíbrio do ser implica uma abertura aos outros sem preconceitos nem fantasias deformadoras
o deus do real não está no interior do sujeito, no círculo fechado da confusa intimidade mas no rosto dos outros e é através desses rostos que se perspectiva a construção humana de uma comunidade viva e essencialmente aberta
nas pulsações da convivência, o ser emerge dos seus obscuros labirintos e encontra o pólo do outro que o clarifica e assegura a sua móvel e aberta identidade
a verdadeira origem solar reside neste encontro com o outro que, deste modo, ilumina o sujeito e o erige em face da alteridade essencial
o deus da origem e do recomeço da vida revela, assim, a sua integridade viva como ser da transformação e da mudança fértil do real
o outro é uma condição inicial do sadhana e está sempre implícito nele mesmo quando irrompe do círculo solitário do ser
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57.
o corpo e o espaço constituem os dois dados essenciais da correlação do ser no mundo
cada um deles é a condição do outro e é por isso que o sadhana é um corpo do espaço e é o espaço do corpo, unindo, assim, a interioridade obscura do sangue à fulguração solar da terra
esta unidade é, ao mesmo tempo, um dado originário, dissimulado pelos afazeres da vida quotidiana, e o ritmo do movimento da prática sempre em uníssono com a integridade viva do ser
o espaço do corpo é o espaço da insurreição e da vitória unificadora de eros sobre as tendências negativas do ser
quando o sadhaka projecta este espaço, sente a vivacidade feliz da energia liberta e a sua ondulação unânime e unificadora
os deuses da antiguidade preencheram este espaço virgem e inicial em que o mundo aparece no seu começo e nas suas fascinantes configurações
agora é ainda a divindade imemorial que estremece na projecção desse espaço cuja nudez é a presença do corpo total aberto como um harmonioso leque em que pulsam as energias irradiantes
as bandeiras do poder e da glória não podem ser hasteadas neste espaço virgem em que o corpo atingiu a sua plenitude nua e o seu poder originário
mas a comunidade pode encontrar aí a sua vitalidade pura e reactualizar a festa do encontro no círculo da regeneração humana
não há qualquer redução do espaço puramente corporal do sadhana: o que era divino ou o que era a origem do divino é a presença mesma da totalidade reencontrada no círculo inicial do ser
assim, o espaço do corpo é a simbiose do sol e do mar numa festa essencialmente originária e, por isso, origem de todas as festas do encontro
a unidade indivisível do ser torna-se o domínio da visibilidade pura do corpo em que as energias do desejo se configuram como presenças da realidade vivida na unidade essencial com o espaço