31/08/2015
agora
talvez o que me tenha acontecido seja uma compreensão - e que, para eu ser verdadeira, tenho que continuar a não estar à altura dela, tenho que continuar a não entendê-la
toda compreensão súbita se parece muito com uma aguda incompreensão
não. toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão
(…)
mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma actualidade permanente
e isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje
porque o deus não promete
ele é muito maior que isso: ele é e nunca pára de ser
somos nós que não aguentamos esta luz sempre actual e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já
o presente é a face hoje do deus
o horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos deus
é com os olhos abertos mesmo que vemos deus
e se adio a face da realidade para depois da minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-lo e assim penso que não o verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo
sei que o que estou sentindo é grave e pode me destruir
porque - porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é
e eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só aguento a sua promessa
a notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco
mas é só por medo. é medo
pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida
e este é o maior susto que eu posso ter
antes eu esperava
mas deus é hoje: seu reino já começou
e seu reino, meu amor, também é deste mundo
eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa, e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é adulto e continua a se prometer maturidade
e eis que eu estava sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se cumpriu
anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante
eu preferia continuar pedindo, sem ter coragem de já ter
e eu tenho
eu sempre terei
é só precisar, que eu tenho
precisar não acaba nunca pois precisar é a inerência de meu neutro
aquilo que eu fizer do pedido e da carência - esta será a vida que eu terei feito da minha vida
não se colocar em face da esperança não é a destruição do pedido! e não é abster-se da carência
ah, é aumentá-la, é aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência
não é para nós que o leite da vaca brota mas nós o bebemos
a flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro e nós a olhamos e cheiramos
a via láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos
e nós sabemos deus
e o que precisamos d'ele extraímos (não sei o que chamo de deus mas assim pode ser chamado)
se só sabemos muito pouco de deus, é porque precisamos pouco: só temos d'ele o que fatalmente nos basta, só temos de deus o que cabe em nós
(a nostalgia não é do deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante: sentimos falta de nossa grandeza impossível - minha actualidade inalcançável é o meu paraíso perdido)
sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior
o leite, a gente só o bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa
quanto mais precisarmos, mais deus existe
quanto mais pudermos, mais deus teremos
ele deixa
(ele não nasceu para nós nem nós nascemos para ele, nós e ele somos ao mesmo tempo)
ele está ininterruptamente ocupado em ser, assim como todas as coisas estão sendo mas ele não impede que a gente se junte a ele e, com ele, fique ocupado em ser, numa intertroca tão fluida e constante - como a de viver
ele, por exemplo, ele nos usa totalmente porque não há nada em cada um de nós que ele, cuja necessidade é absolutamente infinita, não precise
ele nos usa, e não impede que a gente faça uso d'ele
o minério que está na terra não é responsável por não ser usado
nós somos muito atrasados, e não temos ideia de como aproveitar deus numa intertroca - como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe
daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que deus sempre esteve!
quem esteve pouco fui eu - assim como diríamos do petróleo de que a gente finalmente precisou a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim como um dia lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está
certamente ainda não precisamos não morrer de câncer
tudo está
(talvez seres de outro planeta já saibam das coisas e vivam numa intertroca para eles natural; para nós, por enquanto, a intertroca seria "santidade" e perturbaria completamente a nossa vida)
o leite da vaca nós o bebemos
e se a vaca não deixa, usamos de violência
(na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida-e-morte)
com deus a gente também pode abrir caminho pela violência
ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós, ele nos escolhe e nos violenta
só que minha violência para com deus tem que ser comigo mesma
tenho que me violentar para precisar mais
para que eu me torne tão desesperadamente maior que eu fique vazia e necessitada
assim, terei tocado na raiz do precisar
o grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade
tenho que me violentar até não ter nada e precisar de tudo; quando eu precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida
também se pode violentar deus directamente, através de um amor cheio de raiva
e ele compreenderá que essa nossa avidez colérica e assassina é na verdade a nossa cólera sagrada e vital, a nossa tentativa de violentação de nós mesmos, a tentativa de comer mais do que podemos para aumentarmos artificialmente a nossa fome - na exigência da vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e o artificial é, às vezes, o grande sacrifício que se faz para se ter o essencial
mas, já que somos pouco e portanto só precisamos de pouco, porque, então, não nos basta o pouco?
é que adivinhamos o prazer. como cegos que tacteiam, nós pressentimos o intenso prazer de viver
e, se pressentimos, é também porque nós nos sentimos inquietantemente usados por deus, sentimos inquietantemente que estamos sendo usados com um prazer intenso e ininterrupto - aliás, a nossa salvação por enquanto tem sido a de pelo menos sermos usados, não somo inúteis, somos intensamente aproveitados por deus; corpo e alma e vida são para isso: para a intertroca e o êxtase de alguém
inquietos, sentimos que estamos sendo usados a cada instante - mas isso acorda em nós o inquietante desejo de também usar
e ele não só deixa, como necessita ser usado, ser usado é um modo de ser compreendido (em todas as religiões deus exige ser amado)
para termos, falta-nos apenas precisar
precisar é sempre o momento supremo
assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver
a revelação do amor é uma revelação de carência - bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida
se abandono a esperança, estou celebrando a minha carência, e esta é a maior gravidade do viver
e, porque assumi a minha falta, então a vida está à mão
muitos foram os que abandonaram tudo o que tinham e foram em busca da fome maior
ah, perdi a timidez: deus já é
nós já fomos anunciados e foi a minha própria vida errada quem me anunciou para a certa
a beatitude é o prazer contínuo da coisa, o processo da coisa é feito de prazer e de contacto com aquilo de que se precisa gradualmente mais
toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade
pois ser real é assumir a própria promessa: assumir a própria inocência e retomar o gosto do qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo
clarice lispector
(a paixão segundo g.h.)
17/08/2015
variações de neptuno
sei que quanto mais amo menos devo conhecer
não sei explicá-lo
sei que a luz, ao aproximar-se do meio-dia, se faz tarde e anoitece
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na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de maior proximidade, isto é, onde a presença do outro, de tão inteira, já não pode ser medida
sendo um lugar cheio de saudade, esse é também um lugar feliz porque aí, sem cessar, se regressa e se avista
é como o movimento de quem caminha num espaço alto e estreito: é preciso separar os braços e desunir as mãos, para que possa alcançar-se o equilíbrio
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na impossibilidade de a amizade ter um fim, continuar a amar é dizer adeus
daniel faria
(o livro do joaquim)
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