09/04/2023

just another word for tao

 




A palavra “Ifá” é um signo que comporta diferentes noções e uma confluência de vozes. Na cultura Iorubá e nos cursos da sua dispersão pelo mundo, principalmente nas Américas e no Caribe, a palavra designa a divindade de Orunmilá, o sistema poético que guarda as narrativas explicativas do mundo e o meio/fazer oracular que versa sobre as existências, interações e alterações. Assim, podemos pensar o “Ifá” como um princípio/potência múltiplo, que opera em diferentes tempos/espaços sendo pluriversal, plurilinguista e polirracional. É comum nas narrativas enunciadas pelos praticantes do culto a Orunmilá nomear a força motriz desse princípio/potência a partir da ideia de caminho.


Neste sentido, “caminho” está implicado à noção de possibilidade, imprevisibilidade e inacabamento. É rigorosamente o inverso de “estrada”, que pressupōe a rota previamente traçada, com ponto de partida e de chegada, sem atalhos.

Os odus, comumente referenciados como os caminhos de Ifá, são signos que guardam as narrativas que registam experiências vividas ou testemunhadas por Orunmilá no tempo mítico. Esses signos, mais do que narrar as possibilidades do vir a ser de tudo que existe, também falam sobre as condutas que potencializam a condição do ser/estar. Assim, as existências são consideradas como dinâmicas, um exercício do ser, uma espécie de ser/sendo: a capacidade de agir de forma responsável com toda e qualquer existência.

Ifá emerge como um inventário de memórias, força, vitalidades ancestrais e como elemento dinamizador que aponta caminhos inacabados, invenções e referenciais ético-estéticos que perspectivam outros modos de existir e outros mundos possíveis. Nesse sentido, atrelar a potência de Ifá ao sentido de destino como comumente reivindicado no imaginário popular, como um curso pré-estabelecido, fixo e imutável, é um equívoco. A sua força opera na dimensão da complexidade e dinamismo. A sabedoria de Orunmilá é como uma flecha que atravessa o tempo e nos lança na condição de possibilidade. O caminho enquanto fazer ético, a maneira como conduzimos a vida como um ato responsável para com os outros, é um ato responsável para conosco.

Orunmilá ensina através de narrativas contidas em sua poética que, independente dos acontecimentos e circunstâncias vividas, o bem viver está na capacidade dos seres desenvolverem as potencialidades benéficas para sua existência e, consequentemente, para o mundo. O desenvolvimento dessa existência plena (iwápele) pode ser aproximado da noção de caminho da suavidade, ou seja, não há uma única forma de ser, o caminho potente para cada um é aquele que faz com que a vida seja um estado de imanência e fazer responsável com as outras existências e caminhos.

Dessa forma, a sabedoria de Ifá coloca a perspectiva de que toda existência emana, para buscar e atingir sua plenitude, viver e se desenvolver conforme o seu caminho, tendo como possibilidade alterar os rumos vividos e alçar novas rotas. Assim, potencializar ou despotencializar a condição de ser é parte do jogo que faz com que a vida seja lida como uma tessitura inacabada, uma vibração a ser regida sobre determinada frequência e ecoada no mundo.

Tempos, Flechas e Caminhos

Luís António Simas e Luís Rufino (Flecha no Tempo)

06/04/2023

all the beauty and bloodshed



droll thing life is: that mysterious arrangement of merciless logic for a futile purpose

the most you can hope for is some knowledge of yourself that comes too late - a crop of inextinguishable regrets

coisa  curiosa, esta vida: esse arranjo misterioso feito duma lógica implacável aplicada a um
propósito fútil

o máximo que podemos esperar é algum conhecimento de nós próprios, que chega demasiado tarde - uma série de arrependimentos inextinguíveis

joseph konrad - heart of darkness

12/02/2023

torrões de zimbro


 


na comovente impermanência deste torrão de terra,

cuja forma em terra tem a impredicável função de ser forma,

reconheço a proveniência das árvores, das folhas secas, das raízes, de mim,

do cabo da enxada, do ferro, do centro da terra, da obscuridade,

da luz do sol, do céu,

da atmosfera, da montanha, dos amigos,

vizinhos, do que desconheço e conheço,

do impensável, de tudo, de si mesmo,

reconheço a origem sem começo e sem fim da perpétua ligação

da influência mútua,

que tudo tem com tudo


manuel zimbro - torrões de terra


30/12/2022

2023 - Volver (a los 17)




 

Que vuelvan / (re)vivan tod@s l@s Allendes en el mundo

(Santiago de Chile, 11 Septiembre 1973)

Poema 48 / La Ciudad de Gonzalo Millán en la película "La Batalla de Chile" de Patrício Guzmán





Violeta Parra - Volver a los 17





26/10/2022

livro anónimo II

de que serve a literatura na era da bestialidade?

este livro nasceu para a fogueira

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advertência


esta obra é totalmente impessoal, in-concebida, onde, mais redigido que autor, infiro o conhecimento generalizado

não pude, no entanto, impedir-me de a concretizar, antes por motivos ético-bióticos que por vaidade, visando destruir ilusões coloridas pela imaginação e recusando, de todas as formas, assumir qualquer modelo identificativo, elemento publicitário ou símbolo, dado que a minha existência, se comparada com os contemporâneos com quem tenho razões de sobra para estar solidário, não se apresenta mais digna de ser admirada ou invejada, evitando colocar-me na condição mercantilizada em que o charlatão vende o nome como marca

seria demasiado fácil, e até obscena, a embriaguez que pretendesse afirmar manifestação de talento, em vez de necessidade vital, na recolecção destas palavras

assim como todos os vivos morrerão, seremos esquecidos e anónimos; questão de tempo


“não será bom que todos leiam as páginas que se seguem; só alguns saborearão este fruto amargo sem perigo

consequentemente, alma tímida, antes de penetrares mais fundo nestas laudes inexploradas, dirige os teus passos para trás e não avances”

(Lautréamont)


“para elevar a leitura à dignidade de “arte” é mister, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida (por isso há-de passar muito tempo antes de os meus escritos serem “legíveis”) que exige qualidades bovinas; falo da qualidade de ruminar!”

(F. Nietzche)


todo o conhecimento e sabedoria são, enquanto “herança arcaica” (Freud) - e não existem sem ela - património colectivo da humanidade, mesmo se surgentes em um só indivíduo, resultando do labor conjunto ancestral que lavrou os meios disponíveis ao seu despontar, constatação e revelação

fulanizar o saber é vã vaidade exacerbada e expropriação de territórios de pertença à, e provenientes da, comunidade vivente

se os movimentos falassem, pretender-se-ía um livro praticamente dançado, de coreografia improvisada, irrepetível e, por cada indivíduo, diferentemente experienciada no corpo todo; livro-vida

“livro anónimo II”