11/08/2013

transversal do tempo




naquilo que vulgarmente designamos busca, ou caminho espiritual, é inevitável que nos confrontemos com o desafio de observar intimamente os mecanismos que nos comandam: receptivos, abertos ao desconhecido, acolhendo tudo o que se nos apresenta

coloca-se-nos então o problema da nossa autonomia: estaremos livres de um eu e daquilo que o rodeia?

a nossa natureza essencial não se pensa a si própria, não se representa, não se liga a nenhuma característica, não é uma sensação, não tem centro nem periferia

pela compreensão de que não podemos encontrar aquilo que é, intrinsecamente, essa natureza de fundo, procuramos ficar atentos não aos objectos mas à presença na qual eles são apercebidos, permanecendo igualmente libertos da percepção destes, ainda que esta continue, espontaneamente, a ocorrer

nessa independência, deixamos de sentir qualquer possibilidade de controlo, numa assustadora ausência de suportes ou referências

há que ficar aqui, não recuar: sentir o instante em que esta liberdade se revela sem escorregar para o objecto - cuja inutilidade se nos tornou evidente - permanecendo nessa autonomia

é aí que encontramos a presença que conduz a nossa vida

(...)

a ausência de um eu acarreta, naturalmente, a ausência de um outro

trata-se de uma relação de amor, de viver na unidade

geralmente, o que é que desejamos? - ser reconhecidos, ser amados

raramente permitimos ao nosso interlocutor - ou ele a nós - a liberdade de ser

transcender a identificação com a pessoa e viver intensamente esses instantes de graça que se nos apresentam enquanto totalidade manifesta

na verdade, o que é que buscamos? - exactamente essa liberdade, que é nossa desde sempre e para sempre

para quê tentar adquirir ou atingir o que quer que seja?

compreender que basta viver não a presença ou a ausência de alguém mas a presença, tout court


jean klein (à l'écoute de soi/ trad. nc)

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neti neti

não se procurar nas expressões, não se procurar nas reacções, não se procurar nas qualidades, não se procurar nas emoções, não se procurar nas sensações, não se procurar nos pensamentos, não se procurar no corpo, não se procurar nos projectos, não se procurar nas acções, não se procurar no conhecimento, não se procurar nos objectos, não se procurar nos outros, não se procurar no silêncio, não se procurar

encontrar-se na presença onde eles acontecem

nc


presence á l'absence de soi-même

eb

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transversal do tempo









as coisas que eu sei de mim
são pivetes da cidade
pedem, insistem e eu
me sinto pouco à vontade
fechada dentro de um táxi
numa transversal do tempo
acho que o amor
é a ausência de engarrafamento

as coisas que eu sei de mim
tentam vencer a distância
e é como se aguardassem feridas
numa ambulância
as pobres coisas que eu sei
podem morrer, mas espero
como se houvesse um sinal
sem sair do amarelo

joão bosco / aldir blanc

09/08/2013

corporalidade livre






duma maneira geral, conduzidos pela imagem de um eu autónomo e delimitado, servimo-nos dos objectos na busca da segurança e da preservação dessa identidade imaginária: utilizamos o nosso automóvel, o nosso cão, o nosso marido, o nosso apartamento, os nossos filhos, a nossa profissão, o nosso corpo, para provarmos qualquer coisa, para provarmos a nós próprios e aos outros que existimos

utilizamos, pois, o corpo, como um objecto: desenvolvemos esforços para que ele se pareça com isto ou com aquilo, treinamo-lo, procuramos mantê-lo de boa saúde, alimentá-lo desta ou daquela maneira, para que ele se assemelhe à ideia que fabricámos do que é a nossa identidade, impondo ao nosso corpo o que adivinhamos que nos permitirá um melhor reconhecimento pelo meio ambiente que nos rodeia

desembocamos, dessa forma, na vivência de um corpo instrumental, um corpo explorado, escravizado

quando entendemos profundamente que não temos que nos pôr à venda, que não há necessidade de sermos certificados pelo exterior, quando começamos a pressentir essa autonomia afectiva, olhamos para o nosso cão, para o nosso automóvel, para o nosso marido, para a nossa mulher, para o nosso tapete, para o nosso corpo e vemos outra coisa, já não vemos um material para inscrever no nosso cartão de visita, já não vemos uma marca para nos comercializarmos, a nós e aos outros, vemos uma imensidão, vemos a vida, vemos significando que escutamos

aí vamos verdadeiramente ver o cão e o que é que será mais funcional para ele, o mesmo irá acontecer em relação ao tapete, ao marido ou ao automóvel, não para impressionar o vizinho quando ele aparecer mas por evdência do que lhes é mais adequado

nesse momento, ao ser escutado, o corpo, tal como os outros objectos, assume naturalmente o seu lugar, permitindo-nos descobrir as nossas capacidades, talentos, facilidades ou dificuldades, e passamos a poder deixar esta sensibilidade exprimir-se vivamente, não em função do que gostaríamos, não em função do que isso nos possa trazer, mas de acordo, simplesmente, com o que se apresenta a cada instante

esta forma de estar presente ao corpo torna-se por vezes surpreendente e incompreensível para o exterior, visto que deixamos de escutar por sobrevivência, por comércio, escutamos por amor

apresentam-se, então, outras redes de frequência, outras redes de escuta, de carácter muito mais íntimo, muito mais profundas do que a superficialidade dos conceitos de conforto ou de desconforto, de saúde ou de doença, funcionalidade ou disfuncionalidade, frequências que não são afectadas por aquelas, são, antes, essas polaridades que participam delas, mas naturalmente: a dor e a doença não têm que ser um erro, a saúde e o conforto não são forçosamente um bom sinal, elas são o que são

apenas numa mente sem opiniões podemos entender de forma não conceptual o que são consonâncias e dissonâncias, do ponto de vista comum, a sua compreensão torna-se redutora

ocorre uma forma de aprofundamento, o corpo apresenta-se como um mistério: como o nosso cão, como o nosso tapete, como o momento em que engolimos um trago de água - o que é que pode haver de mais extraordinário que beber um gole de água ou poder inspirar, ou sentir um dedo da nossa própria mão, ou contemplar uma folha que é levada pelo vento?

a profundidade e a plenitude estão em tudo e, quando deixo de tentar saber e compreender, elas vão-se revelando duma forma cada vez mais vasta e menos conceptual

é o verdadeiro início duma exploração íntima em que nos surge também a evidência de que sentir isolamento é viver à superfície dos seres e das coisas, é viver no pensamento

quando começamos realmente a sentir o corpo, torna-se impossível sequer conceber o isolamento, é impensável: não há senão contacto, o corpo não é outra coisa senão contacto, o tocar é constante, estamos permanentemente imersos na experiência de tocar, é aí que encontramos o afecto, a conexão profunda, que não são uma ligação psicológica, são um vínculo que se faz pelo coração, incompreensível para a mente

num corpo vivo, numa sensibilidade desperta, podemos ter um contacto profundo com alguém que nem sequer está objectivamente presente, um contacto eminentemente físico, mas não o físico tal como a mente o concebe

aquele que o vive sente esse laço como tal, mas trata-se de uma ligação que não precisa de ligar, apenas re-une, é uma corrente de energia como aquela que relaciona certas árvores, certos animais, certos espaços, certos países, certas culturas, não são laços imaginários, são ressonâncias

deixamos que nos cheguem todas essas formas de reverberação que não pertencem sequer ao passado, o passado apenas existe enquanto conceito, a ressonância passa-se no presente: quando, por exemplo, tomamos contacto com uma espada que foi utilizada em rituais específicos, eles encontram-se presentes, não são passados

antes de encontrarmos uma espada ritual, antes de encontrarmos um pai ou um filho, antes de encontrarmos um marido ou um amante, um amigo ou um inimigo, a linha já se encontra lá

numa subordinação a estas linhas, o encontro dá-se, no instante, naturalmente, mas o que está lá essencialmente é a linha subjacente a ele, pelo que, a exteriorização não tem que acarretar, sequer, um dispêndio de energia 

os seres humanos e os objectos fazem parte duma imensa cartografia que tem as suas regras

da mesma forma, a prática das posturas de yoga constitui-se como celebração de um regresso a formas fundamentais arquetípicas, não como atingimento ou conquista de configurações aleatórias, alheias ao corpo

a postura de yoga pré-existe no espaço, o corpo físico escoa, até se fundir nela

não há nada que nos seja verdadeiramente exterior, surge uma ligeireza, não há nada que nos seja alheio, tudo o que encontramos é a nossa intimidade

eric baret

(trad e adapt nc)


08/08/2013

cascatas




há cascatas de vento vento vento
que correm me correm ocorrem
cascatas cataratas decorrem escorrem no tempo
cascatas cantam captam tempo em catavento
canto que corre vento que corre acorre ocorre
ao corpo que escorre água água água ao vento que canta

há cascatas de vento e água que ocorrem no corpo
barro da terra terra terra terra e acorrem
ao corpo luz da areia dourada sereia ateia
traço passo na areia que corre canta ao vento
cascata de mar e mar e mar o mar a mar amar amor
e cor e cor e dor dor dor não morre não dorme
e corre e corre ocorre no tempo

há cascatas de vento e mar e terra
e sopro de água na areia sereia
ser de areia encandeia a praia
ateia fogo fogo fogo fogo
cascata de luz e mar e sol sol sol
cego céu cego sol céu céu céu sol e vento
águia plana alta estática cascata
catarata de vento que corre corre corre
escorre veio de luz acorre passa
veia de mar ser da areia sereia ateia
cascata de fogo canta canta canta
chama chama chama chama chama
incendeia o vento que me percorre

nc 2013

(foto: tiago cunha)

02/08/2013

solilóquio



o que és distrai-me do que dizes

lanças palavras velozes,
enfeitadas de risos,
convidando-me a ir
aonde elas me levem

não te atendo, não as sigo:
fico a olhar para os lábios
de onde nasceram

olhas de súbito para longe
fixas ali o olhar, não sei em quê,
e desde logo a tua alma afiada
como flecha se solta em sua busca

não olho para onde olhas
fico a ver-te olhar

e quando desejas algo
não penso no que tu queres
nem o invejo: é menor

desejas o que queres hoje,
esquecê-lo-ás amanhã
por outro querer

não. espero-te para lá
dos fins e dos princípios

no que não há-de passar me fixo.
no puro acto do teu desejo,
querendo-te

e já não quero outra coisa
senão ver-te a ti querer


pedro salinas

("la voz a ti debida", 1933, trad. nc)

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what you are looking for is what is looking

wei wu wei