22/08/2014

o sadhaka secreto - 5



prosseguimento da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa  -ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)



41.

todo o movimento corporal tem como objectivo essencial a integridade do ser

a liberdade inteira do sadhana radica-se na una totalidade de um corpo que se perspectiva e configura a sua energia e a desenvolve em consonância com a sua integridade, que é, ao mesmo tempo, a origem e o alvo incessante da sua realização

ser íntegro é sentir o peso inteiro da terra sobre as pálpebras e ter os olhos abertos sobre a amplitude azul do mar

o sadhana é, assim, o movimento da unificação do corpo e do espaço, da luz e da sombra, da presença e da ausência

um círculo se forma em torno do ser e os seus sucessivos anéis possuem a leveza e o fulgor de uma idade que é, simultaneamente, maturidade, adolescência, infância

este instante é o instante da integridade pura em que o ser é envolvido pelo seu sadhana aberto e transparente

a diferença radical inerente ao ser como fundamento primeiro integra-se na unidade construída da obra e nela reaparece como a pulsação do informulável que nunca pode ser apreendido ou delimitado

a integridade, com todas as suas raízes imperceptíveis e a sua imperceptível atmosfera, orienta o itinerário do sadhana que a consagra e a eleva ao plano da totalidade visível e ao seu esplendor inicial

o sadhana torna-se, então, a esfera do uno e a habitação viva em que o sadhaka e a natureza se unem na unidade viva da origem

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42.

o sadhana é um movimento sem conclusão, uma meditação activa em que o movimento corporal antecede o pensamento e se liberta da cadeia temporal

esta felicidade no seio do presente nasce do silêncio quando é transposta a linha de separação entre o homem e a natureza

esta abertura e este contacto profundo são essenciais para que o sadhana não se desvie da pureza das suas linhas essenciais e não caia na arbitrariedade de uma fantasia sem a integridade de uma relação inicial

o momento da prática reserva e prodigaliza a nativa pureza da comunhão cósmica

a liberdade dos movimentos corporais é o fruto da unidade do corpo com o espaço, mas, como liberdade que é, desenvolve-se livremente constituindo a integridade autónoma do sadhana como um ser vivo e inesgotável

por isso, o sadhana é um acto criativo que liberta, no seu próprio movimento, as possibilidades inovadoras de uma vida que, plenamente, se frui a si mesma e a si mesma se consagra

como duas bocas no mesmo corpo, como dois sexos diferentes de um mesmo corpo, assim o desejo no sadhana reúne os dois pólos do ser, a imóvel estrela do repouso e a dinâmica flecha sempre dirigida para um alvo informulado

na circularidade destes dois pólos está o fundamento da criação livre que, na sua tensão para o ser desconhecido, se vai encontrar com o gérmen que determinou o seu movimento inaugural

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43.

o sadhana não seria possível se uma nesga de luz ou uma pequena formação de espaço não se tivesse constituído no abismo obscuro da psique do sadhaka

mas ela apagar-se-ía se não se actualizasse nas linhas do sadhana e no seu espaço aberto a totalidade do ser

a experiência natural dessa relação é possível sem o recurso ao sadhana, mas ele requere-a tal como uma indizível emoção requer a palavra, o canto ou a realização de um quadro

como a experiência natural da unidade com a natureza não pode ser contínua e é sempre o fruto de momentos privilegiados, o sadhana funda a permanência da relação inicial, desenvolvendo-a livremente sem a repetir, sem a captar nas malhas de um discurso redutor e impositivo

por isso, o impulso para o sadhana projecta-se no espaço e nele liberta as pulsões fundamentais que, desse modo, se reúnem e se combinam em formas inovadoras de um espaço inicial que é ainda o espaço pleno do presente e da afirmação livre do ser no encontro com o mundo no seu puro começo

assim, o gesto corporal é o desenvolvimento e a consumação do gérmen que iluminou inicialmente o abismo da psiqué e que se apagaria para sempre se o sadhana não o integrasse no movimento instaurador da sua metamorfose radical

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44.

o sadhaka é um homem vazio, como todos os homens, mas a maioria destes não o sabe

esse vazio irredutível através de todas as situações da existência subjaz à paixão e ao desejo, ao prazer e à alegria, à comunicação e à festa

o conhecimento desse vazio é a percepção da realidade fundamental, aparentemente adversa mas constitutiva da subjectividade humana

a sabedoria do sadhaka reside em não tentar preencher esse vazio, em deixá-lo ser na sua neutralidade e na sua ignorância fértil

no seu silêncio povoado pelo pólen do sadhana futuro, a divindade é o corpo vivo de uma chama ténue, de uma pureza inicial

o sadhana principia aí, ainda antes que o sadhaka coloque uma pedra sobre outra

a abolição das imagens mentais, realizada espontaneamente, permite essa espécie de plenitude do vazio que é a condição primeira do sadhana

o sadhaka sabe que o ar que respira, então, é o do próprio deus que ele irá construir

o primeiro impulso corporal nasce da ondulação infinitamente tranquila desse vazio inicial

mas, antes que o primeiro movimento corporal se eleve, a concha do sono fecha-se sobre esse vazio de uma pura e total integridade

é preciso, então, combater o sono e, ao mesmo tempo, reintegrá-lo no desenrolar do sadhana, para que a matéria inanimada se confunda com a matéria viva do corpo e da palavra

o reino vegetal é, igualmente, importante, para a transmutação originária que o sadhana opera

assim, o sadhana é a actividade unificadora do sono e da vigília, do silêncio e da palavra, da vida animal e vegetal e da matéria inanimada

a verdade do sadhana é a liberdade plena em que todas as barreiras são abolidas e a realidade do ser aparece despojada de todas as crenças e descrenças, de todos os discursos, de todo o conhecimento redutor

mesmo na actividade do sadhana o deixar ser é o princípio da liberdade criadora que se orienta para a nudez do espaço inicial e para a integridade do ser inseparável do vazio

assim, ao longo do sadhana, a liberdade exerce-se como um não esforço e como uma percepção aberta sem conflitos, entregue à ondulação unânime do uno

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45.

o Ausente é a virtualidade do habitante desconhecido, para quem o sadhana é desenvolvido e que é, ele próprio, a condição inaugural da prática

quando esta se inicia, o habitante virtual torna-se o habitante presente, mas a sua presença é sempre distante ou demasiado envolvida no processo do sadhana para que a sua presença se recorte como uma figura nítida e distinta

ele é o Outro, e a sua identidade só se manifesta na realização do gesto em que o presente criativo unifica a diferença entre a imaginação e o real

o que há de inesperado e surpreendente em cada movimento corporal é a emergência, através do vazio, de um ser uno que se projecta, de diferença em diferença, e todas as diferenças unifica no seu impulso ao mesmo tempo imemorial e inovador

esta unidade dinâmica é a realização mais pura e mais intensa do desejo subterrâneo que é sempre um náufrago no abismo da subjectividade

o sadhana promove a identidade luminosa das impulsões desconexas que se opõem e digladiam no vazio subjectivo do ser

o habitante desconhecido perde a estéril e vertiginosa avidez do seu querer ser para se tornar a potencialidade fértil que transforma a sua ausência em presença una através das diferenças múltiplas da prática vital

nesta actividade essencialmente produtiva o ser actualiza-se e desenvolve-se, mantendo no entanto a sua receptividade estática perante os domínios luminosos que o movimento corporal funda e unifica

se o Ausente é cego e obscuro enquanto virtual, a sua mobilização instantânea no sadhana torna-o evidente e a sua visão confere-lhe a imediata presença do seu alento genético

a sua tranquila pujança complementa o frenesim da espontaneidade criativa e projecta-se num horizonte em que o local do sadhana se desenha como a habitação terrestre do ser reconciliado no seu espaço inicial e na sua pura finalidade originária

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46.

a inteligência e a sensibilidade que o sadhaka desenvolveu, através de inúmeras vicissitudes e dolorosos embates, deve-se sobretudo a uma experiência natural e à leitura de alguns livros em que, de algum modo, essa experiência era referida ou estava implícita, e não a qualquer guia espiritual ou livro religioso ou de preparação moral ou intelectual

é que essa experiência é, essencialmente, uma experiência da vida natural e o seu ponto de partida é a percepção da identidade do presente e, portanto, da unidade essencial do sujeito e da natureza

em certo momento da sua vida o sadhaka sentiu que a realidade se apresentava com um fulgor de presença absoluta que não se podia medir com os instrumentos do conhecimento habitual

era de si próprio, a partir de uma possibilidade inicial e fundadora, que ele poderia construir a relação autêntica com uma realidade que era inteiramente virgem e presente no círculo da identidade pura e na abertura de um encontro com o habitante desconhecido que residia no centro de si próprio

a realidade perdia, assim, o seu carácter asfixiante, as suas determinações redutoras, as suas limitações exteriores

o sadhaka sentia, por isso, a nudez da sua condição, a pobreza extrema do seu território, a solidão das suas fronteiras

mas, por outro lado, a sua liberdade era a inteira disponibilidade do ser para inaugurar a relação viva com uma realidade que, até então, era dominada por figuras totalitárias e inibidoras

a criação apareceu-lhe, por isso, como uma libertação que tinha em si próprio, no centro obscuro do seu corpo, na visão aberta e na palavra viva do seu sangue, o princípio da sua realização autónoma e da sua energia inovadora

o presente passou a ser a instância essencial do seu modo de ser e de estar no mundo

entre ele e os outros não se interpunham imagens ou figuras deformadoras porque a atenção aberta criava a relação fluida da ignorância lúcida centrada no presente

o sadhana era, assim, um acto de liberdade e de participação na realidade que esse acto ao mesmo tempo instaurava e descobria

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47.

o sadhaka sente por vezes, com uma acuidade extrema, que só ele poderia levar a cabo aquele sadhana específico, a obra que ele constrói

ele é único, como todos os homens o são, e é a sua unicidade que ele intensifica e desenvolve até que adquira a necessidade impessoal da autónoma transmutação na prática

todo o seu trabalho é uma ficção que nasce de um desejo e de uma falta essencial, que nunca poderia ser expressa ou traduzida, uma vez que a sua essência é inexprimível que constitui o obstáculo criativo do sadhana

quando este se inicia, a percepção esvazia-se dos objectos exteriores e fica suspensa no meio de uma nebulosa em que tudo é vago e impreciso porque está imerso na matéria de um sono vegetal

é então que a nascente do desejo e a estrela da imaginação se conjugam e formam o primeiro impulso em que se configuram as férteis planícies que atravessam as idades da memória e as unificam numa ondulação unânime

é este o primeiro movimento da matéria materna que, na sua plácida pujança, fundamenta o gesto criativo e lhe infunde um ritmo soberanamente terrestre e unitário

o murmúrio de ouro fino da água atravessa as sombras e sublinha o silêncio líquido que impregna esta atmosfera interior

este envolvimento materno poderia reter indefinidamente o sadhaka se o desejo e a falta que lhe é inerente não o impelissem para a realização de um sadhana em que toda a matéria de sensibilidade é submetida à imaginação essencial do ser e, por conseguinte, a uma ficção que está sempre voltada para a frente e, por isso, inova e cria as equivalências livres para um novo espaço em que ao mesmo tempo estão inseridos e ultrapassados os dados da sensibilidade

o sadhana tem que ser prosseguido porque só ele projecta o horizonte que é a sua condição primeira e só ele constitui a densidade temporal em que as presenças do ser se erigem no seu fulgor inicial

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48.

a possibilidade do sadhana tem como condição inaugural a energia vital do sadhaka

se esta é afectada por alguma grave enfermidade, o sadhana é interrompido e o sadhaka não dispõe de nenhuma mediação para o sofrimento que é a impossibilidade vivida sem horizonte nem perspectiva no futuro

nesta situação-limite o homem é um náufrago debatendo-se na violência das ondas em que não tardará a afundar-se

o sadhaka é consciente da precariedade da existência, da sua finitude insuperável, da sua negatividade intrínseca

nos seus actos e movimentos o homem é um ser tenso e cuidadoso porque a realidade implica a contingência da adversidade e a iminência de uma eventual catástrofe que tanto pode actualizar-se no mundo exterior como no domínio subjectivo

o sadhaka, como todo o homem, procura habitar o mundo e fruir a totalidade do instante ou a lenta duração do tempo

as suas coordenadas são, essencialmente, naturais e, por isso, desprovidas de quaisquer fantasmagorias ou ilusões da mente ou da percepção

o fulgor das presenças que o sadhana suscita é o fulgor de uma condição nua, de uma nudez inicial e instauradora

o espaço do sadhana é, antes de tudo, o espaço da abolição de todas as imagens ou figuras que se interponham entre a visão nua e a vacuidade do ser como princípio da prática criativa

deste modo, a metamorfose radical que o sadhaka opera, implica a integração do vazio na projecção das presenças que irão surgindo no decurso do sadhana

as linhas da sua arquitectura livre terão o frémito do contacto genético entre o vazio do ser e a sua plenitude inaugural

a livre energia que pulsará nas linhas do sadhana será o fruto de um despojamento contínuo, para que a nudez do ser se configure nas suas curvas, nas suas concavidades, nos seus ângulos e nos seus arcos

o espaço do sadhana será, assim, uma realização do ser, reconhecido com a abertura essencial da terra e consagrado, na sua nudez, como a energia livre que reúne em si o vazio e a plenitude

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49.

o homem pensa, age, cria, ama, contempla, habita e comunica segundo coordenadas que nem sempre são perceptíveis mas que estão sempre implícitas na sua vida habitual

a duração temporal é uma dimensão imprescindível mediante a qual a existência humana se perspectiva e se afirma modelando cada instante, realizando as suas potencialidades, cimentando a sua vontade de ser na continuidade da existência

o sadhaka é extremamente consciente dessa dimensão essencial e, por isso, as linhas da sua prática reflectem e desenvolvem a integridade temporal do ser

como a dimensão do futuro é inerente à verticalidade do presente, o sadhana é um ser que se projecta para diante numa abertura de confiança e de ingénuas fulgurações renovadoras

por outro lado,  a prática corporal, ao abrir o leque da temporalidade, reintegra em si o passado obscuro e perspectiva-a na projecção unitária do seu movimento instaurador

o presente torna-se, assim, a conjugação de tensões convergentes na unanimidade inaugural do movimento corporal

o sadhana revela, deste modo, a sua essência unitária e criativa, na medida em que se torna habitação pura de um espaço unificado e novo

o sadhaka frui a sua própria identidade na diferença entre a obscuridade informulável e a formulação prática

o espaço do sadhana vibra e fulgura porque é o espaço inacabado da iminência do ser e da sua energia inaugural, na tensão permanente para o futuro desejo

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50.

é possível que o sadhana, nos seus imprevisíveis efeitos, supere os dados da sensibilidade e se desenvolva como se fosse o puro início de uma liberdade inventiva sem correspondência com a subjectividade do sadhaka e independente das coordenadas da prática

se isto acontece é porque o ponto de partida do sadhana não pode ser determinado claramente e porque as suas linhas não seguem o princípio da semelhança e da equivalência entre a sensibilidade e a imaginação criativa

entre aquela e esta não existe uma continuidade que assegure a determinação unívoca numa unidade plena

entre a vida subjectiva e cada gesto corporal há um hiato que é inerente à prática na medida em que a liberta das determinações subjectivas e a impele para as regiões indefinidas da imaginação soberana

todavia, se o sadhana é aberto e livre, essa abertura e essa liberdade não se separam da condição obscura da sensibilidade que, se aparentemente se apaga no próprio processo da prática, nele se envolve e dele recebe as estimulações que, por sua vez, irão fomentar a imaginação do mesmo

a liberdade criativa não existiria sem esta separação inicial mas o sadhana não se desenvolveria sem a participação obscura da sensibilidade no processo prático

o sadhaka, ao iniciar a prática, sente o tremor da liberdade no espaço livre que tem diante de si

esse tremor será integrado nas linhas do sadhana e será ele que lhe dará um frémito sem o qual a prática teria o peso morto de um trabalho supérfluo e vão

assim, o fazer assume o por fazer, ou seja, o espaço virgem ou esse vazio que, na sua neutralidade vibrante, é uma condição da liberdade viva do trabalho a realizar

nada se poderia praticar se a imaginação não se separasse radicalmente da sensibilidade para que esta se revele e desenvolva na própria obscuridade do processo criativo

o sadhana é, por isso, sempre inicial e inovador, uma vez que a imaginação coincide com o próprio impulso da liberdade do ser e assim se reintegra a sensibilidade renovada na esfera de uma prática aberta à totalidade pressentida na sua unidade primeira