20/05/2014

o sadhaka secreto 2






prosseguimento da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa - ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)

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11.

o sadhana implicava um silêncio e um sono em que a origem se mantivesse envolta no pólen da sua inocência nativa

sem veemência e sem precipitações, o sadhaka iria colocando o corpo ao ritmo da respiração e acariciando os ângulos que iria entrevendo como se estivesse a modelar um rosto de uma fragilidade extrema

no interior de um corpo vivo, que seria tanto seu como de um outro, a luz do horizonte iluminaria a penumbra da indizível sede e daria à prática o flexível equilíbrio de uma construção aberta à insondável germinação da terra

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12.

a prática será redonda porque redondo é o ser

ela será uma frutificação da substância e, na sua multiplicidade, a unidade viva do desejo

todas as linhas da morada reflectirão os enigmas, os turbilhões, os labirintos e os dilemas do sadhaka mas o núcleo do sadhana será uma pequena falha luminosa que a fará elevar-se para o cimo e para além de todas as determinações particulares do sadhaka

e, assim, ao ritmo da construção, o sentido se forma num recomeço constante, não como um eco do passado mas como o frémito novo de cada movimento corporal que desperta, na materialidade da prática, a nascente viva e unificadora do ser

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13.

às afirmações dogmáticas, à imposição dos conceitos, o sadhaka opõe a simplicidade primeira de uma energia que nunca é figurada mas cintila e estremece nas formas subtis da prática

nas paredes que ergue o longínquo reflecte-se e palpita como uma pálpebra marinha

a proximidade de um rio e de uma pequena ilha no meio dele acompanha-o como uma presença cúmplice e preciosa

o visitante que nunca virá, mesmo quando a casa estiver construída, é a presença da ausência que pulsa e a abertura viva do invisível

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14.

a tranquila exalação com que o sadhaka coloca cada objecto é uma consequência da maravilhosa insignificância do seu acto

se a postura é uma finalidade, o movimento que determina a prática é, em si mesmo, uma tentativa incerta que não tem atrás de si um fundamento ou a energia de um princípio

a espontaneidade ingénua de cada gesto liberta e regenera o sadhaka e cria nele a sua base móvel e o movimento corporal que unifica e reúne em si os elementos esparsos das impulsões caóticas do ser

num impulso vertical, o sadhaka abre o espaço solar da realidade entre os flancos terrestres e carnais da postura e a vibração silenciosa do invisível espaço

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15.

como a exalação de uma antiga sombra, o bafo de uma antemanhã de renovo e nostalgia acentuará o paradoxo da construção do ser

se a luz matinal traz consigo os grandes movimentos dos navios e dos sóis, o rastro da noite permanece com uma lua azul sobre as suaves colinas

o sadhaka sente a atracção da matéria materna e o esplendor das sumptuosas paisagens da realidade imediata

a origem dividiu-se e a energia construtiva suspendeu-se entre o glorioso excesso do dia e a inefável matéria nocturna

é então que se impõe a tarefa da unificação das formas e a circulação viva dos contrários, de tal modo que o âmago da prática  adquira a lenta espessura da temporalidade e a límpida vivacidade de cada instante

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16.

o movimento vertical do sadhana vem de muito longe, de um fundo sem fundo que a visão não capta mas que é a condição primeira da visibilidade

a noite desse fundo é a força que unifica e propaga preenchendo o vazio da pupila e abrindo-a ao mundo

essa força é a força da imaginação e a possibilidade de ser o que ainda não se é

o sadhaka sente a angustiante iminência do por fazer e o vazio de uma suspensão em que o nada é a ruína absoluta de toda a esperança

mas do fundo desse abismo negativo um movimento ascensional erige o incomparável à forma da sua prática

é então que ele encontra a forma do ser como se o longínquo se tornasse acessível na distância

e assim o ser a si mesmo se junta e todos os movimentos corporais serão como que os frémitos do ser unido ao alento lúcido e claro do sadhaka

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17.

quando a confusão reina no vazio e os turbilhões se sucedem obscurecendo todo o espaço mental, o movimento corporal pode suscitar um plano de tranquilidade e de elegância feliz

sem presunções nem espelhos, o ser reflectir-se-á sobre uma água perfeita como um puro reflexo silencioso e nobre

mas esta reflexão não será apenas o fruto de uma passiva espera mas também de uma decisão que se liga ao fundo subterrâneo onde a origem se recolhe e se abre em perspectivas sempre novas sobre o espaço do visível

nesse momento o sadhaka encontrar-se-á numa rotunda onde sentirá o vivo segredo do prazer de ser e a profunda suavidade do inalterável e absolutamente outro

o sadhana tornar-se-á uma oferenda ao desconhecido nas suas espirais suaves e afectuosas, fieis à profundidade viva da origem

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18.

as fases e movimentos da prática são anéis que envolvem o vazio do ser

uma genealogia emerge do fundo e o infinito imponderável consubstancia-se na leveza das etapas sobrepostas

as dualidades gravidade e contra-gravidade, dentro e fora, frente e trás, alto e baixo, reflectirão o movimento contínuo do ser maciço e opaco para o ser ascensional e puro e vice-versa

mas será a pobreza o guia permanente do sadhaka porque só ela será capaz de reconhecer o que não se pode reconhecer e assim conduzirá o movimento corporal ao limiar do invisível

será ela que determinará a delicada pureza das estruturas e combinará os elementos discretos numa subtil totalidade estética

pelas periferias e recônditos, nos sentidos despertos, o aqui estará unificado no esplendor do espaço e o longínquo será o seu horizonte, vibração plena e feliz de uma presença infinita

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19.

antes de proceder ao primeiro movimento do dia o sadhaka contempla e considera as suas feridas que enfraquecem a vontade de praticar, com a sua própria substância de cinzas e sangue petrificado, o espaço em que a fénix poderá renascer com todo o esplendor original de um astro

nada mais lhe resta do que lançar-se a um trabalho para o qual a disposição ainda não surgiu, mas que poderá despertar os impulsos da construção solar e abrir o horizonte luminoso e tranquilo de um rio em torno da morada

o sadhana está envolto numa espessa bruma e não há nela sinais de figuras ou formas, porque essa névoa é o próprio nada da confusão inicial e do fim de todo movimento como possibilidade de vida e de renovo

é do obscuro fundo da retina que surge um ténue raio cintilante que penetra na massa nebulosa do corpo e o faz palpitar e estremecer

o sadhaka poderá então discernir algumas linhas de força, algumas estruturas e bases numa crescente e sincopada clarificação

haverá um momento em que ele sentirá que o corpo dança porque tudo se duplica e se reflecte e se anima

de algum modo, é já a fénix que resplandece no fulgor da edificação e na plenitude do ser e do olhar na sua mútua criação

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20.

a essência da distância é a essência do encontro, da identidade, do espaço renovado

sem a distância nenhuma prática poderia ser realizável nem nenhum horizonte visível

por isso o sadhaka celebra, numa ampla sala já construída, os grandes ritos da iniciação

as imagens serão evocadas e depois abolidas para que só o frémito da distância perpasse pela sua desfiguração essencial

assim a imaginação preparar-se-á no branco das figuras e a violência da sua força será canalizada para a postura do sadhaka

este sente a força nua e maciça do ser nas quadrados e robustos elementos com que vai erguendo o seu sadhana

todavia, essa força é a força mesma da separação de uma energia que outrora era uma só no corpo e na matéria

é através do branco inicial que o sadhaka poderá abrir a solidez do corpo e tornar-se leve e ágil em consonância com a energia dele libertada

as vertentes incompatíveis do ser reunir-se-ão na elegância viva dos movimentos à luz do longínquo que será o aroma e o alento da prática aberta ao ritmo luminoso da distância