30/12/2014

zimbro






coisas sensíveis em equilíbrio




o que está a acontecer - acontece - é um facto, porque está a deixar de acontecer
nada se repete, nada permanece idêntico a si mesmo
as Coisas - todas elas - são incessantemente outra coisa,
ou seja, a vida é a morte do que acontece,
um único movimento de fluxo, impensável, com risos e com lágrimas, imenso, sem ruptura nem limites, sem tempo, sem contra tempo

se tal não acontecesse, se as Coisas fossem imortais, o mundo aos nossos olhos não teria expressão, seria sempre a mesma coisa, talvez qualquer coisa, que nem sequer uma coisa de plástico é.

tanto o conhecido que já está acumulado na memória, como o desconhecido que ainda não está, mas que em breve passará a estar, são as gravações, os registos das Coisas que percepcionamos: objectos, acções, acontecimentos, experiências, encontros, etc

esses registos auxiliam-nos na relação com o mundo, são úteis, graças a eles executamos as tarefas no domínio prático, mas não são nem as Coisas nem as percepções, são o (nosso) registo

o que quer que seja só pode ser abordado segundo um aspecto,
e, segundo esse aspecto é registado na memória.
é impossível abordar e registar completamente uma Coisa, apenas se regista uma parte; aquela que importa ou que convém

daí que, mesmo útil, todo o registo seja parcial

não se pode compreender inteiramente uma Coisa em nenhuma visão de pormenor,
só implicitamente podemos abranger a (sua) totalidade

mas, como isso não é registável (pela memória) nem comprovável (pelo pensamento)
não servindo nenhuma comparação, sem qualquer utilidade imediata e pessoal, é posto de lado porque não serve para nada

e o que é registado, por ser mastigável pelo pensamento (um glutão que não se rala nada com parcialidades) passa a ser considerado real

deste modo, aquele que "quer" ver tudo, para ver tudo "como quer", separa-se daquilo que vê
e cria uma visão fragmentada do mundo,
onde o mundo é visto como se fosse constituído por coisas independentes,
estilhaços ou fragmentos, cujo fragmento central é o "eu" que tudo quer

não obstante a gravidade da incorrecção, isso é transmitido, é propagado, é ensinado,
e o ensino é uma dessas coisas fragmentadas

consciente ou inconscientemente, este processo permite que o uso do registo da memória - o pensamento - venha ocupando cada vez mais um lugar de privilégio, invadindo e apoderando-se do frágil lugar da realidade - nova e desconhecida - pondo-se à frente de tudo, como a água de uma enxurrada, inundando e distorcendo a percepção do puro acontecimento - condicionando a Coisa que é

que nunca é tão simplista quanto o pensamento gosta de fazer crer, para dar a impressão de a poder dominar quando a autopsia explicando-a à (sua) vontade

de tal modo o homem vem permitindo que o pensamento invada esse campo - de novidade desconhecida - mesmo à sua frente, que aquilo que "vê", porque deixa de ver - ao voltar a cabeça, indo dormir, etc. - deixa de ter importãncia real diante daquilo a que chama "realidade" e que, na realidade, é o que "pensa ter visto"

neste insustentável processo, que magoa há milhares de anos, onde cada vez mais ele se deixa abusar pelo que tem fixo na mente,
há uma coisa que se deteriora - e vê-se - a olhos vistos: a sensibilidade
aquilo que dá resposta viva a tudo o que incessantemente muda, quer no exterior quer no interior do ser vivo


manuel zimbro

história secreta da aviação

22/11/2014

straub & huillet - cézanne







apresentar

antes de mais, no sentido de trazer ao conhecimento ou, se quisermos, de colocar em presença, no caso vertente, um património comum à humanidade - literatura, ideias, pensamento - e aqueles que acreditamos que dele poderão fazer uso, começando pelo povo, operários e camponeses

dito de outra forma, unir, organizar o encontro, partilhar quer a experiência quer o saber, considerando essa copresença, logo na rodagem, como uma definição possível da beleza

desde machorka-muff, os straub, danièle huillet e jean-marie, perseguem esta mesma ideia fixa

é a sua e nela se mantêm: o cinema como arte da apresentação, entendida enquanto aquilo que nos faz regressar à presença, daquilo que nos faz ampliar a consciência, a realidade de uma paisagem, a verdade de um texto sumido, a materialidade da sua língua, as vibrações dos corpos que o dizem, numa palavra, tudo o que nos permite aceder à universalidade

durante mais de 40 anos o seu projecto acompanhou-nos: o de uma arte pedagógica e social cuja radicalidade reside na sua intempestiva integridade, como uma forma única no mundo de crer em nós e, por consequência, de nos respeitar

patrick leboutte

(trad nc)











22/09/2014

o sadhaka secreto - 6



conclusão da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa - ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)

____________________________________________

51.

a finalidade do sadhana não é a obra acabada para ser habitada finalmente na tranquilidade de um repouso merecido

o movimento corporal é um fim em si mesmo, porque é um modo de abrir e habitar o espaço da prática

a obra nunca será uma propriedade mas sim a actividade incessante de um operário que se constrói a si mesmo em cada gesto construtivo

a matéria obscura e a matéria diurna reúnem-se num gesto inovador que se repercute no sadhaka amante

a realidade aparece agora à luz desse gesto amoroso e ingénuo que é como um feixe de centelhas que se curva, se eleva e se abate sobre a pedra e a modela tornando-a um astro do instante criativo

graças a esta acção construtiva, a opacidade da existência é integrada no movimento instaurador do sadhana e, sem ser suprimida, torna-se uma componente estética da prática em construção

esta transformação da relação com o real não encerra o ciclo das interrogações, das dúvidas e angústias do sadhaka

estas são revividas à luz da génese da prática e consagradas como momentos do mistério vivo do real

todavia, isto não quer dizer que toda a negatividade da existência humana seja reabsorvida e integrada pelo sadhana

o núcleo deste é sempre um ponto negro e as suas margens confinam com o silêncio do impronunciável

o gesto construtivo não suprime ou elide o negativo, mas o seu ímpeto inadiável e a sua verticalidade erigem-se sobre o fundo negro da existência e criam o horizonte das possibilidades iniciais do sadhana humano

______________________________________________

52.

tudo se passa como se uma verdade oculta a cada momento ameaçasse a soberania da verdade aparente dos nosso hábitos, dos nossos gestos, das nossas crenças

essa verdade, que é a verdade do corpo e dos sentidos, foi suprimida pela visão que a integrou em si, apagando-a completamente na sua visibilidade imediata e na sua presença total

mas entre a visão e os sentidos a diferença oculta subsiste sempre e essa diferença manifesta-se na iminência de algo desconhecido ou num mal estar ou ansiedade inexplicável

é esta parte secreta do ser que se subleva violentamente quando o sadhaka se entrega ao fluxo criativo

o sadhana tende, portanto, ao desocultamento de uma verdade outra e, por isso, a uma sublevação da verdade estabelecida mediante a irrupção do desejo que nasce dos sentidos submersos e aponta à totalidade corporal do ser

a relação que o sadhana instaura é uma nova ordenação do mundo ou o mundo no seu começo para além das determinações estabelecidas do real

o corpo é, assim, a grande fonte energética que gera o movimento do sadhana e lhe abre o horizonte da totalidade originária

esta totalidade engloba as zonas mais obscuras e violentas do ser e liberta-as da asfixia e da tirania da mente e da visão

a verdade outra que ameaçava a verdade aparente das coisas torna-se, mediante o gesto do sadhaka, a verdade do ser na liberdade das energias insurrectas

esta metamorfose unifica e equilibra as diversas e contrárias vertentes do ser e integra-as na temporidade duma prática em que o instante é permanentemente renovado pela atenção criativa e pela sua fruição estética como instância da plenitude corporal

____________________________________________

53.

a construção do sadhana é sempre uma reconstrução do corpo

a perda inicial transforma-se nela em coordenadas construtivas e é a partir dela que o sadhaka ergue a sua construção corporal

a memória de uma integridade primordial alia-se à ferida originada pela ruptura do ser e ambas se integram no movimento do sadhana em que a imaginação reconstitui a plenitude do corpo antes da sua separação originária

mas a ferida não é suprimida por este movimento, uma vez que ela própria o suscita e o promove sem nunca perder a sua nudez obscura e inviolável

por isso, as sombras do sadhana são-lhe tão necessárias quanto as luzes fulgurantes e as cores solares

mas a participação da ferida não é apenas nas sombras mas também na cor vermelha e vibrante dos flancos do sadhana sobranceiros ao abismo

o ritmo do sadhana determina o espaço temporal da habitação em que a paisagem participa como um elemento interior que, profusamente, o areja e modela

é esta receptividade à natureza que equilibra o espaço do sadhana entre as luzes e as sombras e torna possível a respiração ao nível da ferida inicial

o ritmo é um elemento essencial do sadhana porque é ele que o unifica e lhe proporciona a habitabilidade de um espaço novo

o corpo, então, sente-se contemporâneo e cúmplice do grande círculo do ser em que os montes, o mar, as estrelas e os animais são presenças vivas dele próprio reencontrado no espaço solar da unidade natural

____________________________________________

54.

a contingência da existência humana começa na sua génese inteiramente aleatória

o encontro entre os elementos genéticos que a originam é fortuito porque poderia não efectuar-se e, assim, outro encontro entre outros elementos genéricos teria dado origem a outro ser humano

durante o decurso da vida humana a contingência determina a instabilidade e a incerteza da condição do homem, cujo fundamento não é um dado mas um alvo móvel e constante no processo da existência

o sadhaka conhece esta indeterminação da origem e, sem a negar, procura erguer o seu sadhana sobre as pedras vivas da sua identidade

esta é, ao mesmo tempo, um dado e um alvo e é no processo circular do sadhana que o fundamento se encontra sempre como um centro móvel que se dirige para o porvir

a identidade é, por isso, condição da génese do sadhana mas é, por outro lado, a finalidade do processo criativo que a transforma e lhe assegura a sua integridade na relação dinâmica com os outros

este círculo do sadhana está em permanente mudança e, num incessante dinamismo, renova e reactualiza a identidade primeira do ser

esta identidade, porém, nunca é compacta nem um fundamento absoluto, porque a cada momento a contingência do ser abala as coordenadas do sadhana

estes sismos revelam que o fundamento é sempre precário e susceptível de se desagregar

o sadhaka, porém, é oreintado, constantemente, para o espaço solar da verticalidade humana e desenvolve a sua integridade no movimento dinâmico do seu sadhana

____________________________________________

55.

a ingenuidade não pode ser cultivada mas ela é um elemento essencial do sadhana

para vencer a inércia que se interpõe entre o desejo de praticar e a própria prática é preciso correr o risco de iniciar o movimento imediatamente antes de qualquer projecto ou antevisão

a elaboração de uma ideia preparatória pode absorver a energia do sadhaka ou levá-la a um impasse

o estado mais propício ao sadhana é o vazio mental, porque é nele que as impulsões ingénuas podem surgir espontaneamente

as várias idades e estações do sadhaka irrompem da nebulosa interior e resolvem-se em imagens, linhas e volumes que não obedecem aos dados da memória mas a subvertem e integram no movimento da prática

para além da memória, a imaginação liberta as regiões interditas e perspectiva-as no seu espaço instaurador

a ingenuidade é o próprio espírito original da criação que participa em todo o acto que visa o horizonte do ser

ela situa-se aquém da visão lúcida e vigilante, no interior da pupila enublada e semifechada pelo sono

a sua distracção é uma atenção segunda, imersa no limbo em que se equacionam as relações primeiras com o mundo

qualquer partícula da realidade exterior pode interromper o fluxo desta região íntima e sempre misteriosamente velada

o carácter inicial e inovador do sadhana resulta deste contacto fundador que estimula a imaginação e fermenta a sensibilidade

o círculo do presente renova-se e transforma-se na possibilidade de uma presença plena e inaugural

se o sadhana é uma forma de vida é porque a ingenuidade liga os seus materiais com a sua seiva fértil

ela é o génio da unificação e da integridade virgem do ser

____________________________________________

56.

o sadhaka aspira a uma comunidade fraterna e solidária

por isso, vive longe da sociedade, convivendo apenas com alguns amigos e, quer solitário, quer em companhia, o seu sadhana é a constante renovação da sua vida

se a existência é uma incessante mudança, o móvel equilíbrio do ser implica uma abertura aos outros sem preconceitos nem fantasias deformadoras

o deus do real não está no interior do sujeito, no círculo fechado da confusa intimidade mas no rosto dos outros e é através desses rostos que se perspectiva a construção humana de uma comunidade viva e essencialmente aberta

nas pulsações da convivência, o ser emerge dos seus obscuros labirintos e encontra o pólo do outro que o clarifica e assegura a sua móvel e aberta identidade

a verdadeira origem solar reside neste encontro com o outro que, deste modo, ilumina o sujeito e o erige em face da alteridade essencial

o deus da origem e do recomeço da vida revela, assim, a sua integridade viva como ser da transformação e da mudança fértil do real

o outro é uma condição inicial do sadhana e está sempre implícito nele mesmo quando irrompe do círculo solitário do ser

____________________________________________

57.

o corpo e o espaço constituem os dois dados essenciais da correlação do ser no mundo

cada um deles é a condição do outro e é por isso que o sadhana é um corpo do espaço e é o espaço do corpo, unindo, assim, a interioridade obscura do sangue à fulguração solar da terra

esta unidade é, ao mesmo tempo, um dado originário, dissimulado pelos afazeres da vida quotidiana, e o ritmo do movimento da prática sempre em uníssono com a integridade viva do ser

o espaço do corpo é o espaço da insurreição e da vitória unificadora de eros sobre as tendências negativas do ser

quando o sadhaka projecta este espaço, sente a vivacidade feliz da energia liberta e a sua ondulação unânime e unificadora

os deuses da antiguidade preencheram este espaço virgem e inicial em que o mundo aparece no seu começo e nas suas fascinantes configurações

agora é ainda a divindade imemorial que estremece na projecção desse espaço cuja nudez é a presença do corpo total aberto como um harmonioso leque em que pulsam as energias irradiantes

as bandeiras do poder e da glória não podem ser hasteadas neste espaço virgem em que o corpo atingiu a sua plenitude nua e o seu poder originário

mas a comunidade pode encontrar aí a sua vitalidade pura e reactualizar a festa do encontro no círculo da regeneração humana

não há qualquer redução do espaço puramente corporal do sadhana: o que era divino ou o que era a origem do divino é a presença mesma da totalidade reencontrada no círculo inicial do ser

assim, o espaço do corpo é a simbiose do sol e do mar numa festa essencialmente originária e, por isso, origem de todas as festas do encontro

a unidade indivisível do ser torna-se o domínio da visibilidade pura do corpo em que as energias do desejo se configuram como presenças da realidade vivida na unidade essencial com o espaço









22/08/2014

o sadhaka secreto - 5



prosseguimento da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa  -ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)



41.

todo o movimento corporal tem como objectivo essencial a integridade do ser

a liberdade inteira do sadhana radica-se na una totalidade de um corpo que se perspectiva e configura a sua energia e a desenvolve em consonância com a sua integridade, que é, ao mesmo tempo, a origem e o alvo incessante da sua realização

ser íntegro é sentir o peso inteiro da terra sobre as pálpebras e ter os olhos abertos sobre a amplitude azul do mar

o sadhana é, assim, o movimento da unificação do corpo e do espaço, da luz e da sombra, da presença e da ausência

um círculo se forma em torno do ser e os seus sucessivos anéis possuem a leveza e o fulgor de uma idade que é, simultaneamente, maturidade, adolescência, infância

este instante é o instante da integridade pura em que o ser é envolvido pelo seu sadhana aberto e transparente

a diferença radical inerente ao ser como fundamento primeiro integra-se na unidade construída da obra e nela reaparece como a pulsação do informulável que nunca pode ser apreendido ou delimitado

a integridade, com todas as suas raízes imperceptíveis e a sua imperceptível atmosfera, orienta o itinerário do sadhana que a consagra e a eleva ao plano da totalidade visível e ao seu esplendor inicial

o sadhana torna-se, então, a esfera do uno e a habitação viva em que o sadhaka e a natureza se unem na unidade viva da origem

____________________________________________

42.

o sadhana é um movimento sem conclusão, uma meditação activa em que o movimento corporal antecede o pensamento e se liberta da cadeia temporal

esta felicidade no seio do presente nasce do silêncio quando é transposta a linha de separação entre o homem e a natureza

esta abertura e este contacto profundo são essenciais para que o sadhana não se desvie da pureza das suas linhas essenciais e não caia na arbitrariedade de uma fantasia sem a integridade de uma relação inicial

o momento da prática reserva e prodigaliza a nativa pureza da comunhão cósmica

a liberdade dos movimentos corporais é o fruto da unidade do corpo com o espaço, mas, como liberdade que é, desenvolve-se livremente constituindo a integridade autónoma do sadhana como um ser vivo e inesgotável

por isso, o sadhana é um acto criativo que liberta, no seu próprio movimento, as possibilidades inovadoras de uma vida que, plenamente, se frui a si mesma e a si mesma se consagra

como duas bocas no mesmo corpo, como dois sexos diferentes de um mesmo corpo, assim o desejo no sadhana reúne os dois pólos do ser, a imóvel estrela do repouso e a dinâmica flecha sempre dirigida para um alvo informulado

na circularidade destes dois pólos está o fundamento da criação livre que, na sua tensão para o ser desconhecido, se vai encontrar com o gérmen que determinou o seu movimento inaugural

____________________________________________

43.

o sadhana não seria possível se uma nesga de luz ou uma pequena formação de espaço não se tivesse constituído no abismo obscuro da psique do sadhaka

mas ela apagar-se-ía se não se actualizasse nas linhas do sadhana e no seu espaço aberto a totalidade do ser

a experiência natural dessa relação é possível sem o recurso ao sadhana, mas ele requere-a tal como uma indizível emoção requer a palavra, o canto ou a realização de um quadro

como a experiência natural da unidade com a natureza não pode ser contínua e é sempre o fruto de momentos privilegiados, o sadhana funda a permanência da relação inicial, desenvolvendo-a livremente sem a repetir, sem a captar nas malhas de um discurso redutor e impositivo

por isso, o impulso para o sadhana projecta-se no espaço e nele liberta as pulsões fundamentais que, desse modo, se reúnem e se combinam em formas inovadoras de um espaço inicial que é ainda o espaço pleno do presente e da afirmação livre do ser no encontro com o mundo no seu puro começo

assim, o gesto corporal é o desenvolvimento e a consumação do gérmen que iluminou inicialmente o abismo da psiqué e que se apagaria para sempre se o sadhana não o integrasse no movimento instaurador da sua metamorfose radical

____________________________________________

44.

o sadhaka é um homem vazio, como todos os homens, mas a maioria destes não o sabe

esse vazio irredutível através de todas as situações da existência subjaz à paixão e ao desejo, ao prazer e à alegria, à comunicação e à festa

o conhecimento desse vazio é a percepção da realidade fundamental, aparentemente adversa mas constitutiva da subjectividade humana

a sabedoria do sadhaka reside em não tentar preencher esse vazio, em deixá-lo ser na sua neutralidade e na sua ignorância fértil

no seu silêncio povoado pelo pólen do sadhana futuro, a divindade é o corpo vivo de uma chama ténue, de uma pureza inicial

o sadhana principia aí, ainda antes que o sadhaka coloque uma pedra sobre outra

a abolição das imagens mentais, realizada espontaneamente, permite essa espécie de plenitude do vazio que é a condição primeira do sadhana

o sadhaka sabe que o ar que respira, então, é o do próprio deus que ele irá construir

o primeiro impulso corporal nasce da ondulação infinitamente tranquila desse vazio inicial

mas, antes que o primeiro movimento corporal se eleve, a concha do sono fecha-se sobre esse vazio de uma pura e total integridade

é preciso, então, combater o sono e, ao mesmo tempo, reintegrá-lo no desenrolar do sadhana, para que a matéria inanimada se confunda com a matéria viva do corpo e da palavra

o reino vegetal é, igualmente, importante, para a transmutação originária que o sadhana opera

assim, o sadhana é a actividade unificadora do sono e da vigília, do silêncio e da palavra, da vida animal e vegetal e da matéria inanimada

a verdade do sadhana é a liberdade plena em que todas as barreiras são abolidas e a realidade do ser aparece despojada de todas as crenças e descrenças, de todos os discursos, de todo o conhecimento redutor

mesmo na actividade do sadhana o deixar ser é o princípio da liberdade criadora que se orienta para a nudez do espaço inicial e para a integridade do ser inseparável do vazio

assim, ao longo do sadhana, a liberdade exerce-se como um não esforço e como uma percepção aberta sem conflitos, entregue à ondulação unânime do uno

_______________________________________________

45.

o Ausente é a virtualidade do habitante desconhecido, para quem o sadhana é desenvolvido e que é, ele próprio, a condição inaugural da prática

quando esta se inicia, o habitante virtual torna-se o habitante presente, mas a sua presença é sempre distante ou demasiado envolvida no processo do sadhana para que a sua presença se recorte como uma figura nítida e distinta

ele é o Outro, e a sua identidade só se manifesta na realização do gesto em que o presente criativo unifica a diferença entre a imaginação e o real

o que há de inesperado e surpreendente em cada movimento corporal é a emergência, através do vazio, de um ser uno que se projecta, de diferença em diferença, e todas as diferenças unifica no seu impulso ao mesmo tempo imemorial e inovador

esta unidade dinâmica é a realização mais pura e mais intensa do desejo subterrâneo que é sempre um náufrago no abismo da subjectividade

o sadhana promove a identidade luminosa das impulsões desconexas que se opõem e digladiam no vazio subjectivo do ser

o habitante desconhecido perde a estéril e vertiginosa avidez do seu querer ser para se tornar a potencialidade fértil que transforma a sua ausência em presença una através das diferenças múltiplas da prática vital

nesta actividade essencialmente produtiva o ser actualiza-se e desenvolve-se, mantendo no entanto a sua receptividade estática perante os domínios luminosos que o movimento corporal funda e unifica

se o Ausente é cego e obscuro enquanto virtual, a sua mobilização instantânea no sadhana torna-o evidente e a sua visão confere-lhe a imediata presença do seu alento genético

a sua tranquila pujança complementa o frenesim da espontaneidade criativa e projecta-se num horizonte em que o local do sadhana se desenha como a habitação terrestre do ser reconciliado no seu espaço inicial e na sua pura finalidade originária

____________________________________________

46.

a inteligência e a sensibilidade que o sadhaka desenvolveu, através de inúmeras vicissitudes e dolorosos embates, deve-se sobretudo a uma experiência natural e à leitura de alguns livros em que, de algum modo, essa experiência era referida ou estava implícita, e não a qualquer guia espiritual ou livro religioso ou de preparação moral ou intelectual

é que essa experiência é, essencialmente, uma experiência da vida natural e o seu ponto de partida é a percepção da identidade do presente e, portanto, da unidade essencial do sujeito e da natureza

em certo momento da sua vida o sadhaka sentiu que a realidade se apresentava com um fulgor de presença absoluta que não se podia medir com os instrumentos do conhecimento habitual

era de si próprio, a partir de uma possibilidade inicial e fundadora, que ele poderia construir a relação autêntica com uma realidade que era inteiramente virgem e presente no círculo da identidade pura e na abertura de um encontro com o habitante desconhecido que residia no centro de si próprio

a realidade perdia, assim, o seu carácter asfixiante, as suas determinações redutoras, as suas limitações exteriores

o sadhaka sentia, por isso, a nudez da sua condição, a pobreza extrema do seu território, a solidão das suas fronteiras

mas, por outro lado, a sua liberdade era a inteira disponibilidade do ser para inaugurar a relação viva com uma realidade que, até então, era dominada por figuras totalitárias e inibidoras

a criação apareceu-lhe, por isso, como uma libertação que tinha em si próprio, no centro obscuro do seu corpo, na visão aberta e na palavra viva do seu sangue, o princípio da sua realização autónoma e da sua energia inovadora

o presente passou a ser a instância essencial do seu modo de ser e de estar no mundo

entre ele e os outros não se interpunham imagens ou figuras deformadoras porque a atenção aberta criava a relação fluida da ignorância lúcida centrada no presente

o sadhana era, assim, um acto de liberdade e de participação na realidade que esse acto ao mesmo tempo instaurava e descobria

____________________________________________

47.

o sadhaka sente por vezes, com uma acuidade extrema, que só ele poderia levar a cabo aquele sadhana específico, a obra que ele constrói

ele é único, como todos os homens o são, e é a sua unicidade que ele intensifica e desenvolve até que adquira a necessidade impessoal da autónoma transmutação na prática

todo o seu trabalho é uma ficção que nasce de um desejo e de uma falta essencial, que nunca poderia ser expressa ou traduzida, uma vez que a sua essência é inexprimível que constitui o obstáculo criativo do sadhana

quando este se inicia, a percepção esvazia-se dos objectos exteriores e fica suspensa no meio de uma nebulosa em que tudo é vago e impreciso porque está imerso na matéria de um sono vegetal

é então que a nascente do desejo e a estrela da imaginação se conjugam e formam o primeiro impulso em que se configuram as férteis planícies que atravessam as idades da memória e as unificam numa ondulação unânime

é este o primeiro movimento da matéria materna que, na sua plácida pujança, fundamenta o gesto criativo e lhe infunde um ritmo soberanamente terrestre e unitário

o murmúrio de ouro fino da água atravessa as sombras e sublinha o silêncio líquido que impregna esta atmosfera interior

este envolvimento materno poderia reter indefinidamente o sadhaka se o desejo e a falta que lhe é inerente não o impelissem para a realização de um sadhana em que toda a matéria de sensibilidade é submetida à imaginação essencial do ser e, por conseguinte, a uma ficção que está sempre voltada para a frente e, por isso, inova e cria as equivalências livres para um novo espaço em que ao mesmo tempo estão inseridos e ultrapassados os dados da sensibilidade

o sadhana tem que ser prosseguido porque só ele projecta o horizonte que é a sua condição primeira e só ele constitui a densidade temporal em que as presenças do ser se erigem no seu fulgor inicial

____________________________________________

48.

a possibilidade do sadhana tem como condição inaugural a energia vital do sadhaka

se esta é afectada por alguma grave enfermidade, o sadhana é interrompido e o sadhaka não dispõe de nenhuma mediação para o sofrimento que é a impossibilidade vivida sem horizonte nem perspectiva no futuro

nesta situação-limite o homem é um náufrago debatendo-se na violência das ondas em que não tardará a afundar-se

o sadhaka é consciente da precariedade da existência, da sua finitude insuperável, da sua negatividade intrínseca

nos seus actos e movimentos o homem é um ser tenso e cuidadoso porque a realidade implica a contingência da adversidade e a iminência de uma eventual catástrofe que tanto pode actualizar-se no mundo exterior como no domínio subjectivo

o sadhaka, como todo o homem, procura habitar o mundo e fruir a totalidade do instante ou a lenta duração do tempo

as suas coordenadas são, essencialmente, naturais e, por isso, desprovidas de quaisquer fantasmagorias ou ilusões da mente ou da percepção

o fulgor das presenças que o sadhana suscita é o fulgor de uma condição nua, de uma nudez inicial e instauradora

o espaço do sadhana é, antes de tudo, o espaço da abolição de todas as imagens ou figuras que se interponham entre a visão nua e a vacuidade do ser como princípio da prática criativa

deste modo, a metamorfose radical que o sadhaka opera, implica a integração do vazio na projecção das presenças que irão surgindo no decurso do sadhana

as linhas da sua arquitectura livre terão o frémito do contacto genético entre o vazio do ser e a sua plenitude inaugural

a livre energia que pulsará nas linhas do sadhana será o fruto de um despojamento contínuo, para que a nudez do ser se configure nas suas curvas, nas suas concavidades, nos seus ângulos e nos seus arcos

o espaço do sadhana será, assim, uma realização do ser, reconhecido com a abertura essencial da terra e consagrado, na sua nudez, como a energia livre que reúne em si o vazio e a plenitude

____________________________________________

49.

o homem pensa, age, cria, ama, contempla, habita e comunica segundo coordenadas que nem sempre são perceptíveis mas que estão sempre implícitas na sua vida habitual

a duração temporal é uma dimensão imprescindível mediante a qual a existência humana se perspectiva e se afirma modelando cada instante, realizando as suas potencialidades, cimentando a sua vontade de ser na continuidade da existência

o sadhaka é extremamente consciente dessa dimensão essencial e, por isso, as linhas da sua prática reflectem e desenvolvem a integridade temporal do ser

como a dimensão do futuro é inerente à verticalidade do presente, o sadhana é um ser que se projecta para diante numa abertura de confiança e de ingénuas fulgurações renovadoras

por outro lado,  a prática corporal, ao abrir o leque da temporalidade, reintegra em si o passado obscuro e perspectiva-a na projecção unitária do seu movimento instaurador

o presente torna-se, assim, a conjugação de tensões convergentes na unanimidade inaugural do movimento corporal

o sadhana revela, deste modo, a sua essência unitária e criativa, na medida em que se torna habitação pura de um espaço unificado e novo

o sadhaka frui a sua própria identidade na diferença entre a obscuridade informulável e a formulação prática

o espaço do sadhana vibra e fulgura porque é o espaço inacabado da iminência do ser e da sua energia inaugural, na tensão permanente para o futuro desejo

____________________________________________

50.

é possível que o sadhana, nos seus imprevisíveis efeitos, supere os dados da sensibilidade e se desenvolva como se fosse o puro início de uma liberdade inventiva sem correspondência com a subjectividade do sadhaka e independente das coordenadas da prática

se isto acontece é porque o ponto de partida do sadhana não pode ser determinado claramente e porque as suas linhas não seguem o princípio da semelhança e da equivalência entre a sensibilidade e a imaginação criativa

entre aquela e esta não existe uma continuidade que assegure a determinação unívoca numa unidade plena

entre a vida subjectiva e cada gesto corporal há um hiato que é inerente à prática na medida em que a liberta das determinações subjectivas e a impele para as regiões indefinidas da imaginação soberana

todavia, se o sadhana é aberto e livre, essa abertura e essa liberdade não se separam da condição obscura da sensibilidade que, se aparentemente se apaga no próprio processo da prática, nele se envolve e dele recebe as estimulações que, por sua vez, irão fomentar a imaginação do mesmo

a liberdade criativa não existiria sem esta separação inicial mas o sadhana não se desenvolveria sem a participação obscura da sensibilidade no processo prático

o sadhaka, ao iniciar a prática, sente o tremor da liberdade no espaço livre que tem diante de si

esse tremor será integrado nas linhas do sadhana e será ele que lhe dará um frémito sem o qual a prática teria o peso morto de um trabalho supérfluo e vão

assim, o fazer assume o por fazer, ou seja, o espaço virgem ou esse vazio que, na sua neutralidade vibrante, é uma condição da liberdade viva do trabalho a realizar

nada se poderia praticar se a imaginação não se separasse radicalmente da sensibilidade para que esta se revele e desenvolva na própria obscuridade do processo criativo

o sadhana é, por isso, sempre inicial e inovador, uma vez que a imaginação coincide com o próprio impulso da liberdade do ser e assim se reintegra a sensibilidade renovada na esfera de uma prática aberta à totalidade pressentida na sua unidade primeira










22/07/2014

o sadhaka secreto - 4



prosseguimento da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa - ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)


____________________________________________

31.

o sadhana é um retorno e uma continuidade através das rupturas

estas, por vezes, são tão dolorosas e prolongadas que o sadhaka sente o seu futuro atraiçoado

nesses momentos é o desespero que, paradoxalmente, sustenta o seu ânimo

a revolta torna-se nutritiva e estimulante porque agita o fundo das cinzas e aviva o lume quase apagado

as palavras irrompem-lhe da boca com veios vermelhos e cintilações negras

esta tempestade expulsa as escórias e lava as vísceras enrugadas

no côncavo da vaga que se levanta a água é lisa, de uma tranquilidade pura

é então que o sadhaka se recorda de uma grande luz branca da sua infância

uma pequena luz que palpita, como um pulso, guia-o através da nocturna espessura que o rodeia

mas o corpo pesa-lhe como um destroço ou um fardo solto e desatado

só o sadhana poderia reconstituir a integridade corporal que o faria sentir-se em uníssono com o mundo

ele procura então apreender as coordenadas imanentes que o orientam sem que delas tenha consciência

mas estas são, por natureza, abertas ao mundo e é por elas que o mundo nos é dado na sua imediatez, elas escapam à observação e à possibilidade de serem objecto de experiência

o seu movimento em direcção ao mundo é irreversível e só através dele poderemos sentir a vibração silenciosa da sua construção do mundo

num momento propício o sadhaka recomeça o trabalho mas o que o domina é a sensação de vazio, um vazio fresco em que tudo se afigura nu e despojado, como à espera de uma nova relação primeira

o tremor das mãos e a vivacidade dos olhos revelam que o espírito da obra é a liberdade do ser voltado para o futuro iminente e para o presente do seu próprio movimento inaugural

____________________________________________

32.

às vezes é um vislumbre, uma pequena sombra, um muro cintilante ou um subtil murmúrio que desencadeia a energia construtiva que parecia ter abandonado o sadhaka

quando se lança à obra não é movido por nenhum fundo, por nenhum eixo, por nenhuma razão, por nenhum nome, por nenhuma semente

só o seu alento se eleva das cinzas e do vazio para além de todos os limites erigindo o sadhana com todos os seus enigmas e segredos, na liberdade de um movimento que só de si arranca o sentido e as formas nuas que vão surgindo

o ímpeto construtivo abre então perspectivas imprevistas, espaços de silêncios, corredores em que o olvido cintila sossegado, clareiras em que a brisa marinha restaura as enrugadas frontes

amadurecendo à sombra da sua carne, readquire a adolescência fértil e volúvel e o gosto pelos salubres enigmas de um espaço unânime e fulgurante em que o mundo se oferece como um grande navio aéreo e ondulado

uma corrente de vida nova e de impetuosa graça converte os elementos do corpo em caprichosas ondas que restauram a vivacidade primeira do desejo e a fúria fresca em que foram abolidas as máscaras quotidianas e os atavios arbitrários das construções negativas

____________________________________________

33.

a continuidade do tempo é a sucessão de presenças e ausências, de elevações e quedas, de desaparecimentos no seio do aparecer, de enxames de sombras nos círculos luminosos

o conhecimento desta dualidade leva o sadhaka a ter em conta o vazio e a sombra como condições da densidade e leveza do seu sadhana

assim, na materialidade maciça do ser, é preciso abrir concavidades e vazios para que o fluir do tempo se actualize na matéria com a musicalidade do ser

a graça e o encanto das formas resulta desse jogo de luzes e sombras, de plenos e vazios, de formas côncavas e convexas, de planos e curvas, de tonalidades suaves e de cores intensas

o espaço do sadhana será como uma concha adormecida com largas e baixas janelas abertas para o mar e os campos monótonos de sobreiros e olivais, e de um terraço liso e vermelho avistar-se-á também o mar e o horizonte e, à noite, o silencioso e cintilante harmónio das estrelas como um vasto leque imóvel e rutilante, soberanamente aberto

esta abertura do espaço cósmico fomentará a unidade que o construtor procura através da dualidade do tempo

o asana terá por isso a flexibilidade vegetal de uma planta e a transparência de um animal aéreo suspenso num voo largo e repousado, interminavelmente aberto à tranquilidade de um puro espaço

____________________________________________

34.

o sadhaka sabe que não é possível determinar nem descobrir o que nos sustenta, o que nos ilumina, o que nos orienta

mas tudo o que ele pratica é o fruto dessa ignorância primeira que o projecta para a frente, para um vazio fértil em que as formas flexíveis e mutáveis serão as metáforas de um espaço puro e inicial em consonância com as coordenadas dos sentidos e as latentes orientações do ser

assim, o sadhaka trabalha na matéria implicita do corpo, sem o conhecer, e ergue à sua frente as formas que ele inventa para ir ao encontro do que o constitui e lhe é sempre anterior no seu silêncio de estrela vegetal

o sadhana é como que um anel que reúne o princípio e o fim, a origem e o alvo, o gérmen e o espaço vivo da circulação nupcial

e por isso o asana será surpreendentemente vivo e de um fascinante equilíbrio entre vertentes contrárias, entre o deserto e o oásis, entre uma caverna calcinada e a jubilação copiosa de uma torrente interminável

_____________________________________________

35.

o principal efeito estético do sadhana é a sensação do indefinível para além de qualquer interrogação ou dúvida

ao mesmo tempo leve e plena, densa e suave, o espaço da prática não será apenas um abrigo ou uma fortaleza

ele será uma pulsação do mundo e a modulação de um paraíso vegetal

o vasto chão, as pequenas rugosidades, as paredes, as esquinas, as janelas, corresponderão a outras tantas formas de estar e de participar na unânime respiração da terra

eloendros, hibiscos, pinheiros, eucaliptos, araucárias e ciprestes envolverão profusamente o asana com algumas abertas para que o mar se aviste na sua extensa tranquilidade azul

o sossego das tardes será vagarosamente luminoso como se o instante se eternizasse até à opulência estática do ocaso

será a hora das grandes leituras com o acompanhamento dos leves sussurros de folhagem e de alguns gorjeios de aves

a luz será o meio soberano, quer na sua plenitude solar, quer nas tonalidades ténues em que se combina com as sombras

os sadhaka sentirão os rumores, os perfumes e o silêncio como um concerto indefinível a que não é necessário prestar atenção para sentir a sua maravilhosa conivência com o modo de estar e sentir a plenitude tranquila da tarde

ao crepúsculo os rumores tornam-se ténues e a luz de seda envolve-se em pregas de sombra vagarosa, enquanto o sol, atrás de um pinheiro, filtra os seus raios de laranja por entre o verde da folhagem

é a hora em que as lâmpadas se acendem na vasta placidez do silêncio planetário e tudo ressuma uma misteriosa tranquilidade, as árvores e as casas, os montes e o mar

é a hora da consagração do dia em que os sentidos musicais se harmonizam como se correspondessem ao subterrâneo coração da terra na tranquila nostalgia de quem recebe as silenciosas essências do crepúsculo

____________________________________________

36.

às vezes, a contemplação da falésia suscita uma pátria árida de vastos campos ressequidos, de agidas plantas selvagens

o desejo e a morte combinam-se numa vibração nostálgica ou na pureza imputrescível de uma alta pedra

as pálpebras aderem à inteira dimensão do espaço e respiram o seu pulmão roxo sobre as ilhas lilases

é a origem, como uma vagina verde plenamente aberta entre as altas ervas e os montes azulados de um perene crepúsculo

apesar da aridez e da vastdão deserta dos seus campos, o ser encontra aí o seu espaço inicial e a sua liberdade originária

é a partir deste contacto primeiro que a ferida do ser poderá ser reparada na prática futura que terá sempre em conta essa solicitação inicial em que a unidade era um campo aberto e um estremecimento de âmbito universal

todos os germes oprimidos eclodirão com a sua fúria germinante infundindo ao sadhana as imprevisíveis flexões das forças que outrora conheceram a unidade originária

____________________________________________

37.

é já noite alta

o sadhaka sente o vazio absoluto do universo e de si próprio

é apenas um ponto da solidão infinita e apenas esse ponto o separa da morte e do caos

nada se pode erigir sobre esse ponto de redução extrema e de negação total

a abolição das formas e dos seres é completa e a consciência é apenas a consciência da sombra vã e transitória do ser

o ponto oscila entre as sombras insondáveis e a memória não é mais do que o ténue reflexo dos astros que giravam numa adolescência remotíssima

nenhuma evocação, porém, pode restituir a presença solar do que outrora foi um instante fulgurante e inicial

o ponto é o lugar interior da ausência universal e o irredutível não da consciência reduzida ao núcleo vazio da sua reflexividade

esta situação é vivida plenamente como uma impossibilidade e, por isso, ele nada faz, esperando apenas pelo fio de água da meia-noite e pelo sono que ele induz no silêncio da sua navegação imóvel e plácida através da noite

_____________________________________________

38.

da fronte da floresta exala-se a frescura verde de uma força unânime

o sadhaka, sem uma palavra, sem um gesto, recebe esse poderoso incentivo vegetal e, por enquanto, limita-se a uma receptividade pura, como se a génese do sadhana dependesse dessa suspensão absoluta de qualquer interferência no processo da recepção daquelas ondas regeneradoras e vivificantes do bosque que ascende por uma das colinas circundantes

um deus elemental consubstancia-se nesse bafo azul e acre, tranquilamente fértil, voluptuosamente virgem

interromper essa emanação seria um atentado ao sadhana, uma precipitação perigosa

por isso o sadhaka entrega-se, com todos os seus sentidos, à felicidade pura daquele momento em que o corpo se une à vivacidade agreste do ar e à lisa e ampla pulsação da grande energia verde que inunda a atmosfera da floresta e da construção

em certo momento, porém, levanta-se e em passos leves e silenciosos, dirige-se para a obra e inicia o seu trabalho com uma sensação de leveza fértil e de flexibilidade luminosa

o desejo flui nas suas mãos cuja delicadeza subtil sentia como nunca

as pedras não pesavam e ganhavam contornos suaves e felinos, de uma sinuosa voluptuosidade, de uma ardência solar

ao fim da manhã o sono apossou-se dele e a densidade azul da floresta condensou-se nele como se fosse o próprio deus elemental que adormecesse no seio da vegetação paradisíaca

o sono fio profundo e reparador, cheio de silêncio e murmúrios vegetais, de um constante fluir de águas subtis, de leves figuras femininas de uma transparência cintilante, de vozes que se confundiam com as sombras e os sussurros da vasta e tranquila floresta

quando acordou era meio-dia e o sol inundava o corpo, revelando, com uma certa violência, as formas que o desejo modelara e que, agora, evidenciavam a sua virulência ardente e uma certa sumptuosidade monumental

a falta da sombra tornava-as um pouco brutais e excessivas, de uma desenvoltura desequilibrada

era necessário esperar pelo crepúsculo para que a harmonia se estabelecesse entre a suavidade da luz e as ténues tonalidades da sombra

____________________________________________

39.

o sadhaka está reunido com alguns amigos à volta de uma mesa de pedra, no terraço

um deles abana um velho fogareiro de barro onde vai pondo a assar sardinhas prateadas e um pouco gordas que logo se tornam loiras sobre a grelha por entre a qual se elevam as pequenas e faiscantes chamas do carvão

o ambiente é extremamente agradável porque dali se vê a larga faixa azul de um rio e entre os pinheiros e os eucaliptos e porque o ar é suave e a folhagem oscila levemente dispensando uma sombra fresca e tranquila

este instante do encontro é um privilégio único em que a alegria reina e a palavra é fácil, transparente, plena da energia que difundem as árvores verdejantes de largas copas, a terra de um jardim um pouco selvagem, os fermentos vivos da aragem, o espaço solar, a pureza ácida dos frutos e das sementes

o instante é vivido na plenitude dos elementos que, imperceptivelmente, se combinam e constituem a integridade viva da presença do ser

a consciência não se apercebe da intrincada e odorífera trama subtil de tudo quanto a estimula e a projecta no círculo vivo do instante sempre inicial

pouco se fala do sadhana, mas esta animada e revificante pausa é ainda um sadhana, o leve e incandescente sadhana da amizade na abertura do encontro e da participação mútua na esfera do ser

a separação individual deixa de reger o comportamento dos que participam no encontro e a palavra opera a metamorfose do eu que, assim, se torna o centro aberto dos impulsos afectivos e eufóricos que se reflectem no círculo luminoso e ardente do encontro

é por esta razão que o sadhaka sente que a obra está em movimento na palavra viva dos que estão sentados em torno da redonda mesa de pedra bebendo um pouco de vinho e comendo as doiradas sardinhas que um deles lhe vai passando de sobre a grelha colocada sobre as brasas de que se elevam pequenas chamas faiscantes, no velho fogareiro de barro, que esse amigo aviva com um pequeno abano de palhas entrançadas

____________________________________________

40.

em certos momentos, algo estremece e fulgura tanto no corpo do sadhaka como no espaço

e é o mundo que começa mais real que nunca mas também mais fugidio do que nunca na sua instantânea novidade

a emoção do sadhaka é a vibração da inocência do ser que se abre ao espaço do mundo onde desejaria consumar-se nupcialmente na leveza do encontro entre a viva fragilidade do desejo e a fulgurante densidade de um astro

um dia em que estava a conversar com um amigo no campo, uma nuvem sobre uma montanha atraiu-o magneticamente e ficou suspenso por alguns segundos da maravilha inesperada, inteiramente inexplicável, embora aparentemente banal e comum

em certos momentos, uma comoção muito viva e muito fina e uma espécie de tremor luminoso abre-nos um espaço primaveril em que as coisas aparecem com a vivacidade inicial do mundo originário

a instantaneidade desses momentos está para além da possibilidade de retenção ou da apropriação que desejaríamos para preservá-los na continuidade da existência quotidiana

mas são eles que, quer na nebulosa da memória, quer no frémito da eminência, são os astros imputrescíveis do instante

a ambição do sadhaka é ser fiel a esta comoção originária em que, instantaneamente, o espaço revela a infinidade da origem e a relação total entre o corpo e o espaço

ele não se esquece de que o corpo é orientado por coordenadas imperceptíveis inteiramente ligadas ao espaço como condição primeira e absoluta de todos os gestos, movimentos e posições que ele realize

o espaço não é só uma condição permanente da existência mas também a integridade pura e livre que o ser deseja atingir para se completar no seio do uno