11/11/2010

meditação

os apontamentos e considerações que se seguem, bem como as técnicas neles descritas, são resultantes da minha própria experiência, vão beber a tudo o que fui praticando e, por essa via, descobrindo em mim, aprendendo com outros, lendo e pesquisando ao longo de anos, não se baseiam em nenhuma obra em particular que vos possa sugerir como consulta

espero que vos sejam úteis e que neles encontrem algumas pistas que vos permitam “instalar”, se essa for a vossa intenção, uma prática de meditação regular e minimamente consistente

mas eles não pretendem constituir-se como referências para ninguém, não se filiam em nenhuma tradição específica nem há aqui qualquer intuito de “fazer escola ou apontar caminhos”

o meu conhecimento destas áreas (como, de resto, do próprio yoga) é diminuto, por muito que a minha postura ao transmiti-las possa sugerir segurança e convicção. na verdade, por opção (e por incapacidade) não me arrisco a grandes voos, pedagógicos ou de prática pessoal, o que me permite sentir-me tranquilo e intuir um mínimo de solidez no que me proponho. espero não estar a enganar-me ao afirmá-lo! - na verdade, não há dia em que não me extasie e interrogue perante o mistério de tudo isto e o pouco que sabemos (ou, pelo menos, o pouco que eu entendo) sobre estes meandros

nesse sentido, e em coerência com o que tem vindo a ser o meu próprio trajecto nestes meios, se alguma sugestão me permito deixar-vos é que passem o que nos apontamentos abaixo é proposto pelo crivo da vossa própria experiência, troquem informações, busquem outras referências e, se sentirem esse impulso, se construam (ou desconstruam...) nesta "via” com base na impressão soberana, mesmo que frágil e falível, da vossa individualidade


boa jornada!



meditação - indicações gerais


“if I could tell you what it meant there would be no point in dancing it”

isadora duncan


fantasia, razão, hora, local, posição, frequência, disposição, duração, continuidade, transição, consagração, despojamento



fantasia

começando do fim para o princípio, num sentido último, compenenetremo-nos, antes de mais (e sem por isso termos que ficar desanimados) de que a ideia ou intenção de “meditar”, como actividade, é pura ficção

na verdadeira acepção da palavra, “meditação” não é algo que possamos “fazer” ou, sequer, “atingir” de alguma forma, mas antes, algo que se realiza em nós, como reflexo da nossa natureza essencial, evidência a que acedemos, ou que se nos desvela, por abandono – inadvertidamente, aliás, e com muito mais frequência do que geralmente nos apercebemos

daí que, muitas escolas, mais do que o verbo “meditar”, prefiram e utilizem o termo “sentar”, na justa explicitação daquilo que de facto depende da nossa acção – num paralelo corriqueiro, é o mesmo que dizer que podemos deitar-nos na cama, criando um cenário propício para que o sono sobrevenha, mas não podemos “sonar”, tentando fabricá-lo

“esticando” o paralelismo, já agora, e porque somos os tais, tão falados, “animais de hábitos”: é provável que logremos dormir ao propiciarmos as condições para tal, mas nada nos garante que, ocasionalmente, não possam ocorrer insónias. da mesma forma, a rotina da meditação pode predispor-nos, por repetição, até mesmo do ponto de vista orgânico/neurológico, a esse estado, sem, contudo, garantir o seu surgimento, precisamente pelo facto de ele não depender da nossa vontade

no ocultismo considera-se que o máximo que o ser humano pode fazer, no plano tridimensional onde habita é “realizar o cálice”, o estado de receptividade plena

no mesmo sentido, falar de prática de meditação é falar, tão só, de disponibilização e entrega a algo que não depende da nossa acção, esforço ou capacidade, fenómeno absolutamente vertical e inclusivo mas que, num primeiro momento, visto como processo horizontal no tempo e no espaço, podemos então qualificar como subtractivo, não aditivo, do ponto de vista da acção individual

numa analogia simplista, o “estado meditativo” (expressão ela própria um tanto equívoca porque não se trata, verdadeiramente, de um “estado”, no sentido espácio-temporal, antes, sim, de um “não-estado”) pode ser comparado à tela em branco, pura potencialidade, que acolhe e possibilita todos os traços ou caracteres

o não-forma de onde brotam todas as formas, silêncio de fundo sobre o qual música e palavra adquirem sentido

prolongando o mesmo raciocínio, o não-estado meditativo, omnipresente e, portanto, integrante da própria presença do sujeito meditador e do hipotético objecto meditado, “engole-os”, no sentido em que “ali” apenas existe o espaço onde eles nascem e morrem, tal como o som se perde no silêncio, e todas as formas, cumprido o seu tempo, regressam ao vazio de onde brotaram – a forma é o vazio, o vazio é a forma, como se afirma no budismo

meditar seria, então, simplesmente, aquilo a que assistimos quando não está lá ninguém nem nada para ver, uma subtil e misteriosa “presença à ausência de nós próprios”, nas palavras de eric baret


razão

(mas então...) porquê meditar?

"everything we do is futile but we must do it anyway"

mahatma gandhi

dispor-se a praticar meditação pode considerar-se um exercício de humildade: aceitar o facto de se ser suficientemente instável e caótico por dentro para necessitar de alguns momentos em que a quietude possa ser semeada e consolidada

esse reconhecimento simples, quando autêntico e sentido, poderá ser o grande passo para a instalação de uma prática regular, quase, salvaguardadas as diferenças, como aquele que dá o alcoólico quando aceita que o é e decide recuperar-se

na verdade, se desde crianças recebemos, inadvertidamente, tantas achegas no sentido da dispersão e da agitação, faz sentido, mesmo que pareça artificial, num primeiro momento, que “treinemos” o oposto

tal não significa que o façamos de forma mecânica, utilitária e instrumental

como alguém dizia, “trata-se de servir uma arte, não de se servir de uma arte”

mesmo tomando como princípio, por um lado, que “meditar” seja um estado espontâneo, a nossa natureza de fundo, como tantas tradições afirmam, e por outro, que fazê-lo nos permita aceder a efeitos benéficos vários, essa disciplina pode ser vista como pura celebração do facto de estar vivo, exercício de gratidão festiva pela plenitude do ser

se me permitem a analogia, seguros do nosso amor por um filho, pai, amante, amigo, não deixamos de nos disponibilizar para momentos especiais com eles, que celebram, sem outra utilidade para lá do acto gratuito em si, esse sentimento

sabemos que não amamos apenas das dezoito às vinte, quando nos reservamos para brincar com o filho ou para estar com o amigo. da mesma forma, não meditamos apenas quando nos sentamos para o efeito. mas precisamos de momentos (e a sinceridade de reconhecê-lo pode ser ela própria transbordante e luminosa) que nos permitam confirmar – celebrando – que a escuta profunda e o amor estão lá, por muito que os tomemos como adquiridos

joseph campbell, autoridade mundial no âmbito do estudo das mitologias, afirmava precisamente que as narrativas mitológicas proporcionam a cada membro de cada povo/cultura/civilização a possibilidade da vivência de uma “autêntica experiência de estar vivo”

porém, talvez mais que alguma vez antes na história humana, pela autêntica “inflação” de estímulos que se oferecem à nossa atenção, hoje em dia tendemos, de forma extrema, a colocar a tónica da vitalidade das experiências no teor dos objectos das mesmas, sejam de que natureza forem, perdendo de vista o processo vivencial/sensorial que nos faz chegar a eles, numa espécie de “maquiavelismo perceptivo” em que os fins nos fazem perder os meios (quando, na verdade, é nestes que tudo se passa!)

a própria “obsessão colectiva” com a produtividade e com o sucesso vai no mesmo sentido: “não fazer nada” tornou-se, para muitas pessoas, o “pecado supremo”, ou uma virtual impossibilidade, e “parar para ver”, “inutilmente”, em meditação, um sério desafio a esta “cadência instalada” - até temos o velho ditado que associa a ociosidade aos vícios para legitimar a ideia! entretanto, as perdas de tempo sistemáticas em actividades estéreis e pouco gratificantes, de facto ociosas, são o contraponto directo (saída de emergência, em desespero de causa) desta propensão ao “engarrafamento” dos dias

neste sentido, meditar é voltar à fonte primordial do prazer e da plenitude, ao puro acto perceptivo, em que ele se basta a si próprio antes de atingir o objecto, permitindo, aí sim, uma vivência verdadeiramente livre e transbordante de todos os objectos e experiências, pela constatação da sua inutilidade última

pura escuta, sensorialidade integral, em que o aforismo de wei wu wei ganha todo o sentido : “what you are looking for is what is looking” 


hora

faça a experiência de diferentes momentos do dia para se sentar uns minutos, preferencialmente de manhã, antes de iniciar as suas actividades, quaisquer que elas sejam, ou à noite, antes de dormir ; no entanto, se a sua disponibilidade maior for, por exemplo, antes do almoço ou do jantar, não hesite, aproveite!


local

procure um espaço onde possa permanecer minimamente protegido de ruídos, interrupções ou outros factores de perturbação, mas evite a exigência de quietude e silêncio extremos como condições imprescindíveis. essa ideia torna-se facilmente dificultadora da sua assiduidade àquilo que se propôs (meditação com carácter regular) – experimente, de vez em quando, a título excepcional, meditar no autocarro ou no comboio, por exemplo, descondicione-se! 


posição

escolha uma postura confortável para se sentar (pode até ser numa cadeira, por pouco “zen” que pareça)

a posição sentada, desde que devidamente ajustada, permite-lhe manter um estado físico e mental tranquilamente desperto: procure assegurar a “neutralidade” da coluna vertebral pela preservação, sem esforço, das suas curvaturas naturais, utilizando, sempre que necessário, alguma altura debaixo das nádegas, e procurando, se se sentir cansado ou instável, o suporte de uma parede para as costas

há múltiplas formas de colocação das pernas, com diferentes objectivos e efeitos energéticos que não importa aqui descrever exaustivamente, escolha uma que o faça sentir-se confortável e que lhe permita “esquecer-se” delas ( e das costas) mesmo quando imóvel durante alguns minutos - é o melhor sintoma de uma boa colocação do corpo

pode experimentar deitar-se, se preferir, mas cuidado: a semelhança com a posição do sono facilmente deixa instalar-se uma qualidade de inércia e entorpecimento que prejudicam a concentração e a escuta

a colocação dos olhos (abertos, fechados, semi-cerrados) varia bastante, incluindo detalhes mais ou menos minuciosos, de acordo com as diferentes escolas e tradições

independentemente da forma que escolha para os colocar assuma como princípio, se ficar com os olhos fechados, a ideia de manter a sua atenção tão presente e desperta (não dispersa) como se eles estivessem abertos

inversamente, se optar por deixar os olhos abertos ou semi-cerrados, procure conservar as qualidades de quietude e interiorização que o recolhimento do olhar mais facilmente lhe permitiria

faça a experiência das duas possibilidades e decida a partir dela, podendo, também, ir alternando, conforme se sinta em cada dia: se estiver mais cansado ou com sono pode ser bom experimentar deixar os olhos semi-abertos para se manter acordado e presente, se estiver mais agitado e disperso talvez os olhos fechados se tornem mais funcionais

tanto quanto possível, nas técnicas de meditação em posição estática, procure manter a imobilidade, resistindo ao impulso neurológico do movimento como reacção instintiva de sobrevivência: o nosso sistema nervoso está programado para se assegurar da integridade e da própria existência simples do sistema psico-físico através do movimento, que nos permite, de forma directa, “confirmar que estamos vivos”

pela imobilidade intencional, cientes de nos termos sentado duma forma que não nos acarreta danos ao mantê-la, atravessamos uma “pequena morte” e ficamos menos reféns de impulsos biológicos básicos, permitimo-nos um “air bag” de tempo de reacção que nos proporciona maior liberdade de escolha, gradualmente extensível a outros domínios (mentais, emocionais)


duração

seja flexível com o tempo que dedica a esta actividade, sobretudo no início - não se proponha grandes objectivos (“vou meditar meia hora de manhã, meia hora à noite”) porque muito provavelmente vão-lhe sair furados rapidamente. muitas vezes são mesmo estratégias inconscientes de sabotagem da intenção inicial. será preferível começar com muito pouco tempo e ir aumentando gradualmente a duração

deixe que a meditação venha a si, como estado natural, plano de fundo que vai sendo gradualmente reconhecido e relembrado, em vez de a forçar a entrar, abruptamente, na sua vida

comece por experimentar períodos de cinco minutos, eventualmente de manhã e à noite, até para poder aperceber-se de qual dos horários será mais funcional ou harmonioso para si, de acordo com as suas rotinas, temperamento, biorritmo, etc

depois, pouco a pouco, vá aumentando, se lhe parecer viável, para dez minutos, quinze... se ficar pelos cinco minutos durante semanas, meses, anos, não os deprecie, valorize-os!


frequência

afirma-se, consensualmente, que a prática da meditação deve ser diária, mas se se sentir “sufocado” por essa ideia, mesmo tendo optado por períodos curtos, estabeleça uma rotina bi ou tri semanal, por exemplo, o que lhe pareça viável e aprazível, pelo menos numa fase inicial

evite uma atitude austera com o que deve ser uma dádiva a si próprio, gratificante e libertadora. imagine o que seria dedicar-se ao que quer que tenha para si como a actividade que mais gosta (sem ser a meditação) e, numa sensação de obrigação penosa, torná-la uma tarefa a promover à força!...

a perspectiva do sofrimento e/ou do castigo como vias supremas de aperfeiçoamento e purificação encontra-se profundamente enraizada na nossa cultura, mesmo em quem, à partida, não se define como religioso ou místico

acautelando essa propensão, observe se está a transformar a meditação numa penitência! – não se tornará, seguramente, uma melhor pessoa (seja lá isso o que for!) por se mortificar diariamente submetendo-se sem amor nem convicção a uma disciplina que lhe seja desagradável e sentida como absurda

daí a importância de dosear esta actividade (como todas...) de forma realista e permitir-se, sobretudo no início, ir ajustando ritmos e durações de acordo com a ressonância interna que sinta a partir da prática que vai desenvolvendo, até que a meditação se acomode na sua vida e encontre um “nicho” natural no seu quotidiano

procure, porém, cumprir rigorosamente o que se propuser e, ao mesmo tempo, seja tolerante (sem ser complacente) consigo próprio, condescendendo, tranquilamente, no tocante a falhas pontuais, sem se servir delas para desistir: alguma vez lhe cruzou o espírito deixar de vez de tomar banho ou nunca mais lavar os dentes só porque falhou um dia ou outro?!


disposição

evite usar argumentos para consigo próprio para romper a rotina que se propôs, como sejam: hoje estou muito cansado, hoje tenho a cabeça a mil, hoje não estou inspirado, hoje preciso de outra coisa... a escolha é sua mas não tenha dúvidas, quase sempre é tudo conversa, deixe-se de tretas e sente-se cinco minutos!

permita-se disfrutar do desafogo resultante de, por momentos, literalmente “esquecer-se de si e dos seus humores”, que não vêm ao caso: deixe que o acto da escuta seja mais importante do que quem procede a ele!


continuidade

“one does not become enlightened by imagining figures of light but by making darkness conscious”

"i'd rather be whole than good"


c. g. jung

fique alerta, desde o início, para o facto de que a serenidade, limpidez mental, quietude, que geralmente derivam da prática regular da meditação ou do yoga podem funcionar como uma faca de dois gumes: o despertar da sensibilidade, ao permitir uma ampliação do nosso espectro de consciência psíquica (como nas cores - no vermelho, por exemplo) se por um lado nos torna mais acessíveis “nuances” de prazer e bem estar que antes, por embotamento perceptivo, tínhamos dificuldade em experimentar (os ultra-violetas, simbolicamente) podem oferecer-nos simultaneamente, porque a agudeza se estabelece para os dois lados, imprevistos e não requeridos “tons” de dor e desconforto (infra-vermelhos simbólicos) como condição polar do nosso amadurecimento

numa analogia simplista (porque se trata de processos de natureza obviamente diferente) é um pouco o que se passa, a certa altura, nas psicoterapias (já para não dizer nas relações humanas em geral...) pelo confronto com “conteúdos”, memórias, sentimentos não esperados, quando as coisas “começam a aquecer”

estendendo o paralelismo, é nesses momentos criticos (que muitas vezes vão e vêm, ressurgem mais tarde, desaparecem de novo...) que é importante permanecer, assumir o compromisso, num exercicio de fidelidade (a nós próprios, antes de mais) valendo-nos de alguma firmeza e disciplina


transição

facilmente se instala em nós, no desenvolvimento destas práticas, uma atitude de fundo dissociativa em que o período da meditação tende a funcionar como um “oásis” momentâneo, findo o qual voltamos, algo “recauchutados”, à confusão e à postura de sobrevivência do dia a dia, fortalecendo inconscientemente estas últimas quando o intuito era supostamente inverso - um pouco naquela lógica folclórica do devoto que se presta à confissão para mais plenamente poder voltar ao pecado logo de seguida!

numa perspectiva mais integradora e unificante, permita-se uns instantes breves de transição para o exterior no final do período em que se propôs permanecer sentado. tanto quanto lhe for possível, desenvolva os primeiros gestos e actividades ainda no comprimento de onda anterior, como que impregnado de um perfume que tivesse permanecido em si. dessa forma evita que ocorra um corte brusco entre a “frequência psíquica” daquele pequeno período e o resto do dia (ou da noite) favorecendo, ao invés, que as “horas mundanas” vão ficando saudavelmente contaminadas pelas qualidades de alerta e quietude ali semeadas


consagração

se lhe fizer sentido e o ajudar a promover um estado interior de maior receptividade a este tipo de prática, pode consagrá-la, não necessariamente num sentido religioso ou místico sequer, dedicando-a a alguém em particular, ao mundo, ao que quer que lhe suscite esse impulso misto de dádiva e gratidão

num sentido último, afirma-se comummente que não existe sujeito contemplativo nem objecto contemplado, apenas o acto perceptivo

na "oferenda" simples da prática da meditação a algo que, de forma directa e primária, percepcionamos como exterior a nós, abrimos portas à dissolução do “sujeito meditador” permitindo que a arte suprema da escuta se exprima por nós, mais que pretendermos exprimir-nos por ela, “tornando-nos” no que quer que seja


despojamento

uma última nota, sobretudo para quem, por temperamento, tenda a “levar-se demasiado a sério” nestas ou noutras práticas, ou se aperceba de que começa a derivar (por vezes até, a colmatar) um qualquer sentido de identidade própria a partir do facto de se envolver nelas

não há nada de particularmente excepcional ou diferente em dedicarmo-nos a uma actividade deste tipo, não somos pessoas especiais, melhores nem piores que as outras por fazê-lo, nem nos distinguimos, mesmo nos melhores momentos da nossa prática desta “arte”, de quem, sem sequer ter algum dia ouvido o termo “meditar”, em várias alturas do dia, se entrega profundamente ao que faz - servir cafés, por exemplo - numa expressão involuntária de atenção e presença a que poderíamos chamar amor

nesse sentido, se se der conta de que começou a envergar a pomposa farda do “meditador”,ou do praticante de yoga, ou outras, nem precisa de a despir - aperceba-se só de que... o rei vai nu! ;-)



guião 1

papel de revelação fotográfica

numa lógica de “inversão figura/fundo”, mais do que dirigir a sua atenção a qualquer objecto, procure disponibilizar-se indiferenciadamente para todos os estímulos, numa percepção sensorial global, sobretudo táctil e auditiva, operando como antena parabólica, a trezentos e sessenta graus

qual papel de revelação fotográfica que, indiscriminadamente, recebe o que quer que nele incida, deixe-se captar tudo o que se ofereça à sua atenção sensorial ou psíquica: sons, sensações tácteis internas ou exteriores ao corpo, pensamentos, sentimentos

neste exercício simples, de pura disponibilidade, observe como implicitamente traz a tónica não ao que é percepcionado ou observado mas ao acto de observar ou contemplar, à escuta, no sentido lato do termo

esteja presente à sua atenção e ao que quer que a ela se ofereça, num primeiro esboço simples da interrogação de fundo que, de momento, nem necessita de ser formulada: “quem está presente a quê?”

simultaneamente, observe o possível apaziguamento sensorial/neurológico resultante do facto de permitir que a realidade (interna ou externa, não importa, são apenas palavras) o “visite” mais do que dirigir-se, do ponto de vista da atenção, onde quer que seja


guião 2

respiração

sentado de forma estável, faça inicialmente algumas respirações profundas e depois abandone a respiração ao seu fluxo natural

deixe a sua sensibilidade táctil e auditiva pousar sobre o ar que é respirado; se vir que o estratagema lhe facilita a concentração, acompanhe mentalmente o trajecto de uma partícula ou pequena porção de ar, desde as narinas até aos alvéolos profundos e daqueles novamente até ao exterior, numa pulsação constante

simultaneamente, vá-se apercebendo do ritmo respiratório que se foi instalando, tanto quanto possível evitando “fazer” o que quer que seja com ele, apenas observando

estenda a sua sensibilidade à percepção cutânea, muscular e articular do movimento da respiração, quer no contacto da superfície da caixa torácica com a roupa quer pelo reflexo táctil nas zonas adjacentes (braços, abdómen, cabeça...)

se se distrair, relembre a sua intenção inicial de permanecer presente, de se centrar na respiração, voltando à observação, tranquila e firmemente, uma e outra vez; mais do que encará-las como “ruído”, integre as distracções como pretextos e oportunidades de regresso ao “eixo” da atenção

mantenha a centragem da sua atenção na respiração como uma lente que focasse de forma nítida um objecto próximo numa fotografia contendo uma paisagem de fundo esbatida: dessa paisagem fazem parte todas as percepções simultâneas acessórias que se insinuam em paralelo, como sejam pensamentos, sentimentos, sensações, cheiros, ruídos, etc

deixe-os coabitar, desfocadamente, em “grande angular”, com o “grande plano” em que a sua lente perceptiva se situou, mantendo a prioridade na focagem inicial

a título adicional, se sentir que é sugestivo para si:

enquanto respira, relembre o processo de troca gasosa vital que se opera nos seus pulmões. depois, progressivamente, vá-se apercebendo, numa sensorialidade cada vez mais aguda, da dimensão prânica da respiração: observe o processo constante de alquimia que acontece no seu organismo em que este, qual “pedra filosofal”, vai transmutando a “matéria grossa” do ar em energia subtil que se distribui, de forma revitalizante e depurativa, por todo o corpo, à medida que inspira e expira

observe como a respiração se constitui em cada ser humano, desde o nascimento até à morte (desde a primeira inspiração até à última expiração) como “cordão umbilical” com o mundo, um ponto de contacto e nutrição permanentes

relembre que cada ser humano respira o mesmo ar, ele entra e sai dos pulmões das outras pessoas e seres vivos, num processo contínuo. observe essa conexão com a atmosfera e, através dela, com as outras formas de vida, com o mundo


guião 3

sensações (1)

depois de se ter instalado em posição sentada uns instantes, visualize o seu corpo como imerso num líquido, dentro de um enorme recipiente

à medida que esse recipiente se vai esvaziando, observe as sensações puramente cutâneas que começam a manifestar-se a partir do topo da cabeça, como se tivesse a sensibilidade da sua língua ou da polpa dos dedos das suas mãos por todo o corpo, começando por ali

como se procedesse a um “scanning”, apenas à superfície da pele, no contacto desta com o ar circundante ou com a roupa, vá acompanhando tactilmente a descida circular desse “nível” de líquido à medida que o recipiente imaginário se vai esvaziando: pela testa até às sobrancelhas, têmporas, nuca, zona superior das orelhas, depois toda a superfície da face, de cima para baixo, ao longo das orelhas, occipital, até ao início do pescoço, em todas as frentes deste, garganta, parte de cima dos ombros, clavículas, caixa torácica, omoplatas, ao longo dos braços, progressivamente por todo o resto do corpo até chegar aos pés

pode optar por terminar ali ou prosseguir, agora no sentido ascendente, com o mesmo processo

tendencialmente, para situar a percepção táctil pelo corpo, recorremos à visualização simples, como se estivéssemos fora dele. experimente, se lhe acontecer espontaneamente visualizar as zonas do corpo, fazê-lo a partir de dentro, como se não pudesse “ver” mentalmente cada uma mas apenas “sentir” pelo tacto, a partir do interior do invólucro opaco do corpo - como se, literalmente, “estivesse lá dentro”

observe as zonas “brancas” ou “neutras” em que é difícil pressentir qualquer tipo de sensação e repare, de dia para dia, como a percepção quer destas, quer das que lhe são mais sensíveis, se vai modificando, apercebendo-se sensorialmente da mutabilidade do corpo na sua aparente fixidez - como as dunas no deserto, sempre iguais, nunca as mesmas

como “plano de fundo” do enfoque mental desta técnica, se lhe for sugestivo, pense no exercício como autêntico processo de “incarnação”, ainda que, por agora, apenas à superfície do corpo – observe se é possível captar a sensação, por vezes fugaz, de “existir mais” do que antes, do ponto de vista estritamente corporal, mesmo que de forma vagamente etérea, menos substancial, grossa


guião 4

sensações (2)

seguindo as mesmas indicações do “guião 3” considere agora o seu corpo como um recipiente cheio até ao topo (cabeça) com um líquido denso cujo nível vai descendo - esvaziando - até à base (pés)

concentrado, desta vez, nas sensações internas, de qualquer natureza, vá acompanhando tactilmente, por dentro, essa linha de água invisível, à medida que ela vai baixando

chegando ao nível do chão, conforme o tempo que tenha disponível, poderá seguir o mesmo procedimento no sentido ascendente, depois voltar a “descer” e assim sucessivamente, num “scanning” contínuo, até terminar o período que se propôs permanecer sentado

da mesma forma que no guião 3:

observe as zonas “brancas” ou “neutras” em que é difícil pressentir qualquer tipo de sensação e repare, de dia para dia, como a percepção quer destas, quer das que lhe são mais sensíveis, se vai modificando, apercebendo-se sensorialmente da mutabilidade do corpo na sua aparente fixidez - como as dunas no deserto, sempre iguais, nunca as mesmas

como “plano de fundo” do enfoque mental desta técnica, se lhe for sugestivo, pense no exercício como autêntico processo de “incarnação”, agora nas zonas profundas do corpo – observe se é possível captar a sensação, por vezes fugaz, de “existir mais” do que antes, do ponto de vista estritamente corporal, mesmo que de forma vagamente etérea, menos substancial, grossa


guião 5

sensações (3)

integrando os procedimentos dos guiões 3 e 4, acompanhe, simultaneamente, as sensações tácteis internas e externas ao corpo, agora captando cada uma delas como simples luminescência (pense, por um instante, na disponibilidade e encantamento da criança que contempla uma árvore de natal)

observe que zonas do corpo se encontram mais “acesas”, mais presentes à sua percepção, e que zonas “brilham” menos

pode experimentar, desta vez, manter a sua atenção distribuída globalmente por todo o corpo ou, se sentir que se perde, seguir a lógica anterior de acompanhamento da linha de água imaginária, descendo e subindo ao longo do corpo

exercitando uma espécie de “comutabilidade sensorial” ouça, agora, cada uma das sensações tácteis e visuais/luminosas como se de sons se tratasse, escutando a melodia que emana do seu corpo

transitando de “sentido em sentido”, observe como a própria visão e audição são também tácteis, no sentido em que resultam do “con-tacto” de superfícies - pense, por um momento, nos seus tímpanos e retinas como se eles existissem em cada micro-ponto do seu corpo

por momentos observe também, ao invés, como sons e cores têm textura e podem ser captados pela sua pele

por fim, permita-se estender este percepção física subtil aproximadamente um metro além do ponto onde situa as suas fronteiras corporais habituais, em todas as direcções (à frente, atrás, acima, abaixo, esquerda, direita) observando a interpenetração do seu campo corporal com o das outras pessoas eventualmente presentes, com objectos, com o próprio chão, paredes, etc


guião 6

sensações (4)

regressando ao primeiro “itinerário”, volte a percorrer agora o corpo seguindo a linha de água imaginária, sintonizado mentalmente com a dimensão atómica/molecular do corpo, essencialmente feita de vazio

numa experiência de silêncio sensorial, observe se é possível sentir continuidade entre o espaço circundante (ar, chão...) e o seu corpo, como se as fronteiras deste último se dissolvessem num estado unitário de participação no todo

por momentos observe, de novo numa perspectiva sensorial mas mais subtil (não tão estritamente táctil ou auditiva) o ritmo e vibração da sua respiração enquanto experimenta essa continuidade entre espaço interno do corpo e espaço exterior como um mesmo espaço

observe (sem fabricar efeitos!) se é possível vivenciar a sensação de “ser respirado” – a pulsação da atmosfera a acontecer em si, o seu ser como “micro-alvéolo do mundo”


guião 7

pensamentos (1)

utilize esta técnica e a seguinte (guião 8) sempre que se sentir particularmente agitado, mentalmente frenético ou com a impressão de que outras formas de concentração (a das sensações, por exemplo) vão funcionar apenas como tentativas vãs de parar uma locomotiva! – ao permitir-se “dar algum assunto” à sua mente consegue, como um surfista que, em movimento, apanha melhor a onda, navegar os seus pensamentos fazendo surf com eles em vez de pretender parar o mar para se sentir calmo – (por vezes) ele é demasiado grande!

então, da mesma forma que nas técnicas anteriores concentrou a sua atenção nas sensações do corpo, agora permaneça atento a quaisquer pensamentos que aflorem à sua mente enquanto permanece sentado, imóvel, em silêncio

comece por se concentrar simplesmente na respiração, como ponto de referência e de regresso após cada divagação

sempre que identificar um pensamento, procure classificá-lo atribuindo-lhe uma categoria geral criada por si, como seja: remoer no passado, sonhar acordado, ajustar contas, fantasiar, planear a agenda, inquietar-me com o futuro, etc

feita a classificação, regresse à neutralidade observando novamente a respiração até que o pensamento seguinte se insinue

volte a classificar o novo pensamento e regresse à respiração, seguindo sempre esta alternância até ao final

depois de terminar, se quiser, como diagnóstico simples do seu estado mental, observe a “gama” dos pensamentos que observou e classificou, quais foram os dominantes ou eventualmente recorrentes e o que lhe dizem deste seu momento de vida


guião 8

pensamentos (2)

tendo por base, ainda, a observação dos pensamentos, desta vez deixe-se absorver inteiramente por cada um que for surgindo, como se quisesse deixar-se devorar por eles, verdadeiramente “consumir-se na chama” da intensidade com que eles se manifestarem

sem quaisquer restrições, regressos a pontos de concentração, orientações de atenção, deixe que a sua mente fique completamente refém de ideias, conjecturas, fantasias, raciocínios, o que quer que se lhe ofereça observar como espontaneamente surgido no ecrã da sua actividade cerebral

permaneça, contudo, no que se poderia chamar a “retaguarda da mente”, presente e atento ao “show”, como espectador passivo mas bem desperto

capte, por momentos, a sua consciência observante como sendo esse espectador, numa sala de cinema que seria o interior da sua caixa craniana, observando o filme (pensamentos) projectado no ecrã (a parte interior da sua testa) dessa sala imaginária

observe a possível sensação de espaço que se vai criando entre si e toda a gama de pensamentos que perpassam pela sua mente (por muito aliciante que seja a “intriga”)

se sentir que, por instantes, “perdeu o pé” e foi arrastado na actividade mental, confundindo-se com ela, volte a recuar, como se saísse do filme e regressasse à plateia

procure aperceber-se da efectiva substância ou insubstância, da realidade ou irrealidade objectiva dos pensamentos enquanto tais (não daquilo a que eles se referem)

compare de forma simples e directa, tangível, o teor/solidez dos pensamentos com o da sua consciência observante

regressando à imagem da sala de cinema, por momentos visualize a interrupção da projecção e o ecrã apenas branco, vazio

se ainda tiver tempo, observe que novos filmes se insinuam nesse ecrã, novamente disponível, e siga o mesmo processo

como forma de estender o estado contemplativo ao quotidiano, observe se ao longo do dia se “cola ao filme” da sua vida e exercite a mesma capacidade de recuo, como actor participante, genuíno, mas consciente e, por isso, mais livre, do “enredo” em que está inserido


guião 9

sons (1) – música

utilize esta variante quando sentir que, por agitação ou por simples disposição, outras técnicas mais silenciosas, em que o foco da atenção é mais ténue ou difuso, se tornam menos eficazes

escolha um estímulo sonoro preferencialmente repetitivo, mesmo que não regular, por forma a facilitar-lhe a concentração e a estabilização da atenção (ex: taças ou pratos tibetanos, piano ou guitarra muito suaves, até mesmo sons da natureza – se estiver no campo aproveite-os, não precisam de ser gravados!)

procure simplesmente escutar o som, de novo como “primeiro plano”, imagem nítida na fotografia, deixando todos os restantes estímulos, físicos ou mentais, auditivos ou outros, ficar em segundo plano, como paisagem de fundo

procure ouvir com todo o corpo, percepcionando a vibração do som quer na superfície da pele quer internamente, como se se tornasse um enorme “tímpano”, a ressonância sonora ecoando em si como na caixa de um instrumento de cordas

ainda nesta perspectiva de escuta global, dirija por momentos a sua atenção ao próprio acto de ouvir: onde é que termina o som e começa a audição? – observe a continuidade entre ambos, o carácter unitário da experiência


guião 10

sons (2) – audição de cinema

“if you develop an ear for sounds that are musical it is like developing an ego. you begin to refuse sounds that are not musical and that way cut yourself off from a good deal of experience”

john cage


para a prática desta técnica é conveniente – contrariamente ao habitual em todas as outras – que se encontre num ambiente minimamente movimentado e em que existam estímulos sonoros variados

opte por ela como alternativa quando vir que não consegue instalar-se num local mais tranquilo e que a prática de outras variantes fica muito dificultada

pode partir de dois enfoques básicos, alternativos ou simultâneos, para a aplicação desta modalidade:

adoptar, durante o período em que permanecer sentado, a forma de percepção do mundo de um cego, no sentido em que, longe de pretender situar-se distanciadamente em relação aos estímulos auditivos, deve procurar “lê-los” atentamente para que eles possam proporcionar-lhe a máxima informação possível sobre o ambiente que o rodeia

de forma semelhante, pensar que se encontra numa sala de cinema em que não pode visualizar o ecrã ou em que simplesmente o realizador do filme tenha optado por mantê-lo escuro enquanto a acção que se vai desenvolvendo apenas pode ser escutada.

deixe-se, literalmente, “fazer o seu filme” a partir de todos os estímulos auditivos que vai recebendo, permitindo que a hierarquia que se estabeleça entre eles, a partir da atenção prioritária ou secundária que a sua atenção espontaneamente lhes dê, funcione como a câmara do realizador que, igualmente, “dirigiria o seu olhar” a partir do dele

já agora, uma sugestão: se conhecer o filme “shirin” do iraniano abbas kiarostami, pode ser inspirador para esta técnica apenas lembrá-lo. se não tiver visto, aconselho-o vivamente, como aliás todos os deste realizador – assistir às obras dele é meditar! (“five” é outra obra de pura contemplação)


guião 11

“o que é isto?”

associando inicialmente esta técnica com a da concentração na respiração, cada vez que expirar pergunte, interiormente: “o que é isto?”

de forma circular, deixe que a interrogação fique como que a pairar, ao longo da expiração, prolongando-se à inspiração seguinte (como o som de um gongo que se fosse esbatendo) e quando voltar a expirar pergunte novamente: “o que é isto?”

evite colocar a pergunta de forma mecânica ou automática, como se de um mantra ou oração se tratasse – observe, antes, se se vai desenvolvendo em si uma impressão de perplexidade à medida que vai perguntando, repetidamente: “o que é isto?”

não se trata de uma investigação intelectual, o objectivo não é responder á pergunta, muito menos pela especulação ou pela lógica, nesse sentido não coloque a questão ao nível da caixa craniana, deixe que ela seja lançada a partir de cada ponto do seu corpo (por muito teórica ou forçada que esta ideia possa soar, num primeiro momento)

na verdade, a resposta não pode ser encontrada, nem sequer no silêncio ou no espaço vazio que são, ainda, conceitos - muito menos numa coisa, entidade ou designação

assim, desafogadamente, liberto de qualquer intencionalidade, sem solução nem salvação à vista, da cabeça aos pés, pergunte: “o que é isto?” – simplesmente porque não sabe!

se se distrair, volte continuamente à questão. deixe que ela se torne como o poste ao qual o barco fica amarrado por uma corda: da mesma forma que o poste impede o barco de partir à deriva, a questão mantém-no a si centrado, protegido de pensamentos, sentimentos, sons ou sensações que vão aflorando

a pergunta “o que é isto?” é um antídoto contra pensamentos distractivos, afiada como uma espada, nada pode permanecer muito tempo no fio da sua lâmina silenciante

ao colocar esta questão, profundamente, está a abrir-se à experiência da totalidade do seu ser, num misto possível de fascínio, estranheza e temor perante o contacto com o leito onde o oceano da sua vida tem lugar


guião 12

“o que é eu?”, “quem é eu?”, “quem sou eu?”

associando inicialmente esta técnica com a da concentração na respiração, cada vez que expirar pergunte interiormente: “quem sou eu?”

de forma circular, deixe que a interrogação fique como que a pairar, ao longo da expiração, prolongando-se à inspiração seguinte (como o som de um gongo que se fosse esbatendo) e quando voltar a expirar, pergunte novamente: “quem sou eu?”

evite colocar a pergunta de forma mecânica ou automática, como se de um mantra ou oração se tratasse – observe, antes, se se vai desenvolvendo em si uma sensação de perplexidade à medida que vai perguntando, repetidamente: “quem sou eu?”

não se trata de uma investigação intelectual, o objectivo não é responder á pergunta, muito menos pela especulação ou pela lógica, nesse sentido não coloque a questão ao nível da caixa craniana, deixe que ela seja lançada a partir de cada ponto do seu corpo (por muito teórica ou forçada que esta ideia possa soar, num primeiro momento)

na verdade, a resposta não pode ser encontrada, nem sequer no silêncio ou no espaço vazio que são, ainda, conceitos - muito menos numa coisa, entidade ou designação

assim, desafogadamente, liberto de qualquer intencionalidade, sem solução nem salvação à vista, da cabeça aos pés, pergunte: “quem sou eu?” – simplesmente porque não sabe!

se se distrair volte continuamente à questão. deixe que ela se torne como o poste ao qual o barco fica amarrado por uma corda. da mesma forma que o poste impede o barco de partir à deriva, a questão mantém-no a si centrado, protegido de pensamentos, sentimentos, sons ou sensações que vão aflorando

a pergunta “quem sou eu?” é um antídoto contra pensamentos distractivos, afiada como uma espada, nada pode permanecer muito tempo no fio da sua lâmina silenciante

ao colocar esta questão, profundamente, está a abrir-se à experiência da totalidade do seu ser, num misto possível de fascínio, estranheza e temor perante o contacto com o leito onde o oceano da sua vida tem lugar, num refluxo de consciência àquilo de que verdadeiramente falamos quando dizemos “eu”


guião 13

morte

"the meaning of life is that it stops"

franz kafka

evite esta forma de meditação se a experiência da morte de outrem lhe tiver sido muito traumática recentemente ou mesmo se for apenas, por temperamento e de forma constante, uma ideia cuja evocação se lhe torne particularmente perturbadora ou intolerável (excepto se pressentir que o facto de debruçar-se sobre ela poderá surtir sobre si um efeito libertador e pacificante)

evite, também, utilizar esta técnica numa perspectiva de “combater o fantasma da morte” ou com o intuito estratégico de se “desembaraçar” dela – trata-se de lhe dar a mão como parte integrante, indissociável, da vida, não de exorcizá-la ou bani-la

comece por deixar a sua atenção incidir sobre a respiração e aperceba-se do quanto a manutenção da sua condição vital, a sua sobrevivência, neste exacto momento, repousa sobre uma simples golfada de ar

constate o potencial de mudança que cada respiração lhe proporciona (as tais dunas do deserto, sempre iguais, nunca as mesmas)

agora concentre-se sobre o fenómeno da morte: nasceu um dia e um dia vai morrer

reflicta sobre o facto inelutável que é a sua morte, sem quaisquer considerações marginais como sejam alma, espírito, karma, reencarnação ou outras

faça uma resenha breve de todas as pessoas que se lembre de terem morrido – sobretudo as que conheceu pessoalmente mas também aquelas de quem apenas tenha ouvido falar

escolha uma delas, aleatoriamente, e permaneça, uns momentos, atentamente presente à vacuidade, à ausência física, táctil, dessa pessoa, à impossibilidade virtual de contacto com esse ser que existiu fisicamente tanto quanto o seu próprio corpo existe aqui e agora, neste preciso instante

situe-se na consciência aguda de que nenhum ser vive para sempre, de que algures no tempo todos morremos

pense agora no facto de que o momento da morte é incerto, relembrando as diferentes idades em que as pessoas que conheceu morreram – em bebés, jovens, na meia idade, velhas, muito velhas...

as pessoas morrem em todas as idades e circunstâncias, de formas variadas, pelo que, não sabe (não sabe mesmo) como, quando ou onde vai morrer

uma vez que a ocorrência da morte é um dado adquirido mas o seu momento não, o que é que é prioritário para si viver neste instante?

reflicta sobre o que é que lhe é mais importante e significativo, evitando dar respostas instantâneas ou automáticas – o que é que é mesmo relevante para si, que propósito(s) fundamental(is) serve a sua vida, o que é que o move? (independentemente da forma prática que assuma)

de que maneira pode, então, realizar “isso” que, neste instante, face à morte, nua e crua, se revela como evidência de propósito na sua vida?

mais uma vez, também aqui, procure evitar o “piloto automático” da resposta pragmática, tendencialmente simplista e redutora, demasiado assente na sugestão de acções externas concretas - essa realização pode passar sobretudo pela sintonia com uma qualidade interna que vá impregnar tudo o que fizer

(não importa tanto o que faz mas como faz, como vivencia o que faz)

observando uma última vez a sua respiração (sonoridade, textura, aroma, ritmo, amplitude) com todos os sentidos, por momentos habite profundamente o seu corpo.

suavemente abra os olhos (se os tiver mantido fechados) e vendo, ouvindo, sentindo, cheirando, pensando, aprecie a vida em si neste instante, desperto e presente, face à morte


guião 14

conversação

“your words are not the message, you are!”

utilize esta técnica “secretamente”, ou seja, consigo próprio, sem informar o interlocutor de que está a utilizá-la, por forma a não “viciar os dados do jogo”

procure fazê-lo em conversas cujo contexto e conteúdo sejam leves e inconsequentes, no sentido de lhe permitirem uma maior tranquilidade na aplicação da mesma

gradualmente, com a prática, poderá começar a “arriscar” a utilização desta variante em circunstâncias mais formais ou que envolvam um maior grau de responsabilidade, como sejam, por exemplo, situações profissionais, onde, aliás, este tipo de enfoque poderá, até, vir a ser-lhe muito útil

a noção prévia de se encontrar num ambiente e disposição amistosos e descontraídos facilita-lhe a disponibilidade para ficar atento aos aspectos que se propuser observar

porém, quando iniciar a experiência e começar a conversar com alguém, procure escutar com um nível de cuidado e atenção igual ao que manteria perante conteúdos muito mais significativos e graves do que na realidade constata que estes são

aplique a si próprio as partes do guião que sinta que “encaixam” com a sua atitude “típica” em conversação, esqueça aquelas com que não se identifique, conforme os temperamentos pode haver grandes variações de pessoa para pessoa

à medida que vai ouvindo observe (-se):

pressupõe que já sabe o que a pessoa vai dizer?

avalia e classifica o que ouve a partir de categorias prévias suas, sobre o assunto ou sobre a pessoa que está a falar? (inconscientemente evitando que algo de verdadeiramente novo ou “ameaçador” seja escutado – mais uma vez sobre o tema ou sobre o interlocutor – pondo-o a si em causa?)

como é que vê a pessoa que está a falar e que filtros é que essa percepção – subjectiva, como todas – coloca à sua recepção da mensagem?

-considera-a credível e “respeitável” tendendo, por isso, a aderir de forma instantânea, “mal escutada” e excessivamente benevolente ao que ela diz?

-acha-a confusa, limitada ou desinteressante ao ponto de, logo à partida, desvalorizar o que ela tenha para lhe dizer?

-tende a encará-la como “puro receptáculo de mensagem”, indiferenciado, que há que ouvir por momentos, por delicadeza, mas sobretudo utilizar como via de escoamento da sua própria necessidade de falar?

acontece-lhe, a certa altura, deixar de ouvir verdadeiramente para, numa quota-parte considerável do seu espaço mental (estilo “memória ram”) começar já a preparar o que vai dizer em seguida?

na mesma perspectiva, “apanha-se” a si próprio impacientemente à espera de uma aberta para dizer alguma coisa que considera mais importante ou interessante do que aquilo que está a ouvir?

dá-se conta de, por momentos, no “calor da conversa”, a sua necessidade de protagonismo tornar mais importante e imperiosa para si a expressão de um “à-parte fulminante” ou duma “saída magistral” do que o diálogo, o interlocutor ou o assunto em si mesmos?

detecta em si a tendência para interromper o interlocutor? - mesmo que não chegue a fazê-lo por uma atitude de “bom tom” para com ele ou, mesmo, para com o “jogo invisível” em curso?

tende a mostrar-se muito enfático na expressão facial ou corporal da sua concordância ou discordância, sobrepondo-se, dessa forma, ao que está a ser dito?

tenta, repetidamente, encontrar formas alternativas de expressão que se lhe afigurem melhores para traduzir o que ouve?

completa, sistematicamente, as frases do outro, ou sugere palavras, reformulando excessivamente o que ouve (como se quisesse substituir-se ao interlocutor) preenchendo, em demasia, momentos de silêncio, de dúvida, de reflexão ou de simples pausa para respirar, da outra pessoa?

inversamente, tende a assumir uma atitude (verbal ou não-verbal) exageradamente passiva e inexpressiva, deixando o seu interlocutor “perdido”, com poucas possibilidades de aferição da ressonância que aquilo que ele está a dizer vai tendo sobre si?

escuta mais o conteúdo intelectual da mensagem, o tom de voz e a postura do interlocutor ou ambos? – está sobretudo atento a vertente humana do contacto, como numa conversa de autocarro em que se comenta, por exemplo (e “desnecessariamente”) o tempo que faz, ou à dimensão mais puramente cognitiva da mesma, como num balcão de informações?

consegue escutar-se a si próprio – no sentido lato da expressão – enquanto ouve o que lhe estão a dizer, captando a ressonância integral que a mensagem está a ter em si? (como se, em posição de espectador, assistisse à conversa e se observasse a si próprio no papel de ouvinte?)

quando fala:

consegue, por instantes breves que seja, ouvir-se a si próprio como se estivesse no lugar do seu interlocutor?

ao fim de uns momentos continua, de facto, a falar com ele, ou entrou em solilóquio e dá consigo a falar como se apenas para si próprio?

exprime-se assertivamente, a partir do que genuinamente pensa e sente em si, ou apenas de forma reactiva, face ao que ouviu antes?

sente-se capaz de convictamente ceder, perante argumentos do interlocutor que reconheça como válidos, ou observa em si a tendência para se agarrar aos seus pontos de vista de forma rígida e competitiva?

utiliza uma linguagem e expressão facial/corporal abertas, que deixem espaço para a continuidade e para a incerteza criativa no diálogo ou torna-se avaliador e definitivo na sua maneira de se exprimir?

ao invés, torna-se evasivo e vago na sua linguagem, ou simplesmente mente a si próprio, contrariado, numa espécie de “falsa concordância” quando sente que vai ter que divergir dos pontos de vista expressos pelo seu interlocutor?

como respira e como olha, enquanto fala? que gestualidade, que volume, timbre e tom vocais dá por si a utilizar?

é honesto e frontal ou duro, cortante e impositivo?

é amável ou complacente?

tende a fabricar posturas ou personagens, tornar-se teatral? – “olhar nos olhos” ou manter uma voz doce e maviosa nem sempre são o ideal, por vezes tornam-se deslocados, caricatos e até irritantes – consegue ser genuíno e deixar caír, quer os automatismos pseudo-espontâneos, quer os artifícios, ambos falsos?

sente-se capaz de ir aferindo, a cada instante, aquilo que diz, não tanto por uma óptica racional restrita daquilo que soa lógico e correcto mas através de uma consideração mais ampla e subtil (também afectiva) do que se revela oportuno e harmónico (sem por isso fugir à divergência caso ela ocorra)?

o que exprime é útil e necessário? - numa acepção muito ampla destas palavras: “serve para alguma coisa”? “acrescenta algo”? “que propósito visa”? – não coloque a questão apenas, nem prioritariamente sequer, no plano intelectual ou utilitário simples, procure, sobretudo, intuir se a conversa, até ao ponto em que ela depende da sua atitude, está a promover ou não a proximidade, o entendimento e a partilha entre si e o seu interlocutor

quer ao escutar, quer ao falar:

está disposto a assumir que, por vezes, “a falar a gente se desentende” e que “da discussão nem sempre nasce a luz” como princípios moderadores de interacções estéreis e sem sentido? – na constatação da impotência das palavras está disposto a deixar que o silêncio – não cínico ou manipulativo mas pacificador - fale por si, como suprema eloquência?

quando está, está mesmo?! – presente, sem reservas, de forma plena, como se “estreasse o espectáculo”, ou assume internamente uma atitude displicente de “ensaio”, trivializando e empobrecendo o encontro?

esquecida a informação, o teor cognitivo da conversa, que impressão lhe fica do seu papel nela, que qualidade de ressonância subsiste em si deste encontro?


guião 15

manipulação de objectos

utilize esta técnica durante a execução de tarefas simples e que, habitualmente, não lhe exijam particular atenção ou cuidado

evite fazê-lo em alturas em que, por motivos objectivos, tenha que se despachar e seja, por isso, mais facilmente levado a desenvolver um ritmo de procedimento maquinal e acelerado

experimente, pelo contrário, durante o “exercício”, seja ele de que natureza for, abrandar o ritmo de execução por forma a conceder-se mais tempo e espaço de sensibilização para o que estiver a fazer

mais tarde, e progressivamente, o desafio será então praticar este enfoque mesmo nas chamadas “situações de stress” em que sinta que a única saída é ligar o “piloto automático” e instaurar momentaneamente (às vezes prolongadamente, para não dizer permanentemente...) uma espécie de “estado de emergência” – observe mesmo se, sem se dar conta, tem vindo a tornar o clima da sua vida um “alerta laranja” contínuo!

tal como na técnica da conversação, as indicações para a auto-observação aqui apresentadas não são de aplicação universal, variam conforme os temperamentos, o seu estilo pessoal pode até ser “relaxado” (o que não significa forçosamente atento, ou presente) e se assim for deve atender apenas às sugestões do guião que vão mais nesse sentido

se lhe for sugestivo, parta para a aplicação desta variante de meditação inspirando-se nos rituais japoneses da caligrafia, dos arranjos florais ou do chá, que se constituem como verdadeiros “laboratórios experimentais” para o apuramento da mesma: eles explicitam, subtilmente, que a sacralidade não está na natureza exterior do gesto, simples e banal na aparência, mas na qualidade da atitude interior que o acompanha (e que pode, ela sim, reflectir-se nele, de dentro para fora, como se diz da beleza)

mas atenção, não ritualize a coisa, dando-se ares de quem segura a hóstia sagrada no altar, fica ridículo e artificial! - neste trabalho, a "cerimonialidade", a existir, é interna, não se confunde com solenidade exterior

observe:

que grau de sensorialidade (considerando mesmo os cinco sentidos) se permite ter na sua postura e na condução da tarefa?

está globalmente presente ao seu corpo, do ponto de vista táctil, respiratório, enquanto age, mesmo quando a sua atenção está focada no objecto exterior?

no contacto (visual, táctil, eventualmente auditivo ou olfactivo até) com o objecto, sente-se capaz de receber e processar essas impressões para lá do estritamente necessário à pura execução mecânica do trabalho?

com que ritmo, intensidade e cuidado aborda o objecto: de forma brusca ou progressiva, agressiva ou delicada, apreciativa ou indiferente, curiosa ou entediada?

por momentos, imagine que o objecto é uma pessoa ou um animal - como é que estes reagiriam à sua abordagem? tende a fazer uma aproximação ou um abalroamento? é amável ou apenas utilitário com o objecto?

está mental e sensorialmente presente à tarefa ou começou a divagar e só a vertente funcional permaneceu, como numa conversa em que continua a dizer que sim mas já nem ouve o que lhe estão a dizer?

irrita-se com o objecto se ele não “responde” como pretendido? (como se ele tivesse vontade ou autonomia?)

trivializa o contacto com o objecto, assumindo uma atitude puramente prática e utilitária como quem passeia o cão por frete porque ele tem que fazer xixi, ou como quem urina, apenas porque é necessário fazê-lo, à pressa e completamente alheio ao acto, desejando que ele termine?

quando assim é, consegue constatar a sensação de vazio momentâneo, de “passivo vital” de “cada minuto que passou sem mim” (como diz chico buarque)?

observe que grau de satisfação obtém, quer durante o processo, quer no resultado, à medida que a sua presença mental/sensorial se vai apurando

tende a adiar a plenitude da sua entrega ao que está a fazer/viver em nome de condições/actividades futuras, essas sim, supostamente relevantes e prioritárias? (mesmo que esse “futuro” se situe uma hora depois?)

está a despachar-se/desembaraçar-se daquilo que está a fazer neste momento em nome de quê?

que potencial de gratificação – no sentido de uma plena sensação de estar vivo – objectivamente diferente ou maior é que a actividade seguinte lhe traz?

se morresse dentro de alguns minutos, na impossibilidade (e inutilidade...) de mudar de actividade, como se situaria na que tem em mãos?

permanecendo ainda alguns momentos na intensidade vital desse “sabor terminal”, o que é que o impede de a manter (sem aura de tragédia) no seu dia a dia?

finalizado o trabalho e contemplando o resultado, consegue “adivinhar-se energeticamente nele”, pela vibração de presença efectiva (e afectiva) com que o impregnou, ou sente, mais superficialmente, que “a tarefa está concluída mas a sua pessoa não passou por lá”, que "poderia ter sido realizada por qualquer um"?

à medida que for repetindo esta técnica de observação/meditação em movimento deixe que ela se generalize ao seu dia a dia, como se o impregnasse, mesmo que já não haja um intuito experimental explícito: como é que lida com o computador ao escrever, como cozinha, como come, como se veste, como trata da sua higiene pessoal, como limpa ou organiza a sua casa ou o seu espaço de trabalho, como anda na rua, como conduz o seu carro, etc...


nuno cabral

outubro / 2010

23/10/2010

yoga e arte

peter brook – “não há segredos”

tradução, adaptação e acréscimos livres por nuno cabral, a partir de brook, peter – “there are no secrets – thoughts on acting and theater”, methuen, 1993

para que algo de qualidade aconteça, é fundamental que seja criado um espaço vazio. um espaço vazio torna possível o surgimento de um novo fenómeno, uma vez que o que quer que toque a noção de conteúdo, significado, expressão, língua e música (yoga) só pode existir se a experiência for nova e fresca. não há, porém, qualquer possibilidade de que esse tipo de experiência aconteça se não existir um espaço puro e virgem para a receber

vamos ao teatro (yoga) para encontrar vida, mas se não houver diferença entre a vida fora do teatro (yoga) e a vida dentro dele, então o teatro (yoga) não tem sentido. não há razão para o fazer. mas se aceitarmos que a vida no teatro (yoga) é mais visível, mais vívida que fora dele, então apercebemo-nos de que ela é simultaneamente a mesma coisa e algo diferente

a vida no teatro (yoga) é mais legível e intensa porque é mais concentrada. o acto de reduzir o espaço e comprimir o tempo cria um “concentrado”

no nosso trabalho usamos habitualmente um tapete como zona de ensaio, com um propósito bem definido: fora do tapete, o actor (praticante) está na sua vida diária, pode fazer o que quiser – desperdiçar a sua energia, envolver-se em movimentos que não expressam nada em particular, coçar a cabeça, adormecer… mas logo que ele se encontra sobre o tapete, fica sob a responsabilidade de ter uma intenção clara, de estar intensamente vivo, simplesmente porque há uma audiência a observá-lo (o professor ou, na prática individual, o “eu profundo” observa)

o que é que é necessário para passar do banal/comum ao único?

a vida diária consiste em ser “de qualquer maneira”. vamos ver três exemplos. se estivermos a ser submetidos a um exame, ou em conversa com um erudito, iremos provavelmente tentar não ser “de qualquer maneira” ao nível do pensamento e do discurso, mas, sem nos apercebermos, “de qualquer maneira” irá estar o nosso corpo, esquecido, ignorado ou deslocado. entretanto, se estivermos com uma pessoa aflita ou desesperada, não estaremos "“de qualquer maneira" nos nossos sentimentos, estaremos certamente amáveis e atentos, mas os nossos pensamentos poderão estar dispersos e confusos, tal como os nossos corpos. num terceiro caso, ao conduzirmos um carro, o corpo poderá estar a ser correctamente mobilizado na sua totalidade, mas a cabeça, entregue a si própria, pode divagar em pensamentos “de qualquer maneira”

para que as intenções de um actor sejam perfeitamente claras, com o intelecto desperto, sentimentos genuínos e um corpo equilibrado e sintonizado, os três elementos – pensamento, emoção e corpo – devem encontrar-se em perfeita harmonia. só então é que ele poderá estar à altura da exigência de ser mais intenso num curto espaço de tempo do que quando está simplesmente em casa ou numa situação banal do seu quotidiano

um corpo não treinado é como um instrumento musical desafinado – com a caixa de ressonância cheia de ruídos confusos, ásperos e inúteis, que impedem a audição da verdadeira melodia. quando o instrumento do actor (praticante) o seu corpo, é afinado por exercícios, os hábitos e tensões inúteis e desgastantes desaparecem. ele fica então apto para se abrir às possibilidades ilimitadas do vazio

mas há um preço a pagar: frente a este vazio desconhecido, surge, naturalmente, o medo (bem como frustração e por vezes tédio ou falta de motivação, como mecanismos de defesa). mesmo quando um actor (praticante) já tem uma longa experiência de representação (prática) cada vez que recomeça, logo que se encontra junto ao tapete, este medo – do vazio em si próprio, e do vazio no espaço – reaparece. a tendência imediata é a de tentar preenchê-lo de alguma maneira por forma a fugir ao medo, para ter algo a fazer ou dizer. é necessária uma real auto-confiança para ficar sentado quieto e permanecer em silêncio. uma enorme fatia das nossas excessivas e desnecessárias manifestações derivam do terror de que se não estivermos constantemente a demonstrar que existimos “sinalizando”, de facto deixamos mesmo de “ser”. este problema já se coloca com alguma gravidade no nosso dia a dia, repleto de pessoas nervosas, hiperactivas e excitadas que nos “encostam à parede”, mas no teatro (yoga) em que todas as energias devem convergir para o mesmo objectivo, o reconhecimento de que uma pessoa pode estar totalmente “ali”, aparentemente sem “fazer” nada, assume uma importância extrema. é fundamental para todos os actores (praticantes) o reconhecimento e identificação desses obstáculos, os quais, neste caso, são tão legítimos quanto naturais. se fôssemos perguntar a um bom actor (praticante) japonês sobre a sua prática, ele admitiria ter reconhecido e ultrapassado esta barreira. quando ele actua correctamente, o resultado deriva não de ter pré-construído um edifício mental mas de ter gerado um vazio livre de medo dentro de si

que elementos é que perturbam o espaço vazio? um deles é o excesso de racionalização. então porque é que insistimos em preparar as coisas? fazêmo-lo quase sempre para lutarmos contra o risco de sermos apanhados desprevenidos. só o rigor e a repetição no ensaio e na performance permitem demonstrar ao actor (praticante) que se não procurarmos a segurança, a verdadeira criatividade inunda o espaço em volta. tudo o que é convencional, tudo o que é medíocre, está associado a este medo

chegamos então ao âmago do problema. nada na vida existe sem forma: somos forçados, a cada instante, sobretudo ao falarmos, a procurarmos uma forma. mas devemos aperceber-nos de que esta forma pode ser o maior obstáculo à manifestação da vida, que é, por essência, sem forma. não podemos escapar a esta dificuldade e a batalha é permanente: a forma é necessária, porém não é tudo. no confronto com esta dificuldade, não vale a pena adoptar uma atitude purista e esperar que a forma perfeita caia dos céus, pois nesse caso nunca faríamos nada, o que seria uma atitude estúpida. voltamos então à questão da pureza e da impureza. a forma pura não nos cai dos céus. o “pôr em prática”, na forma, é sempre um compromisso que temos que aceitar dizendo simultaneamente a nós próprios: “é temporário, terá que ser renovado”. a questão que estamos aqui a abordar, a dinâmica a que se refere, são por definição infinitas, intermináveis

a qualidade encontra-se nos detalhes. a presença de um actor (praticante) aquilo que confere qualidade à sua escuta e aparência é algo de bastante misterioso mas não inteiramente, ou seja, não está totalmente para lá das suas capacidades conscientes e voluntárias. ele pode encontrar esta “presença” num determinado tipo de silêncio dentro de si próprio. aquilo que poderíamos chamar “teatro(yoga) sagrado”, o teatro (yoga) em que o invisível aparece, enraíza-se e tem origem neste silêncio, do qual todo o tipo de gestos conhecidos e desconhecidos podem surgir. pelo grau de sensibilidade no movimento, um esquimó é capaz de dizer imediatamente se o gesto de um indiano ou de um africano é de boas vindas ou de agressividade. qualquer que seja o código, um significado pode preencher a forma e a compreensão será imediata. o teatro (yoga) é sempre, em simultâneo, uma busca de significado e de tornar este significado assimilável aos outros. e aqui reside o mistério

o reconhecimento do mistério é essencial. quando o ser humano perde o sentido de reverência, temor e espanto, a vida perde o significado e não é por acaso que nas suas origens o teatro (yoga) era um “mistério”. no entanto, a arte do teatro (yoga) como processo prático não pode permanecer um mistério. se a mão que segura o martelo for imprecisa no seu movimento, irá bater no dedo e não no prego. a função antiga do teatro (yoga) deve ser sempre respeitada, mas não com o tipo de respeito que nos põe a dormir. há sempre uma escada para subir, conduzindo-nos de um nível de qualidade a outro. mas onde é que encontramos a escada? os seus degraus são detalhes, os mais pequenos detalhes, momento a momento. os pormenores são a arte que conduz ao coração do mistério

(“deus está nos pormenores”)

relativamente ao “teatro (yoga) sagrado” essencialmente há que reconhecer que há um mundo invisível que necessitamos de tornar visível. há vários níveis no “invisível”. nos séculos XX/XXI já estamos mais que a par do nível psicológico, esta área obscura situada entre o que é expresso e o que é ocultado. praticamente todo o teatro (yoga) contemporâneo reconhece esse grande sub-mundo freudiano, por trás dos gestos ou das palavras, onde pode ser encontrado o ego, o super ego e o inconsciente. este nível de invisibilidade psicológica não tem nada a ver com o teatro (yoga) sagrado. “teatro (yoga) sagrado” implica que haja algo mais implicado, por baixo, por cima, à volta, uma outra zona ainda mais invisível, para lá mesmo das formas que somos capazes de ler ou registar, que contém poderosas fontes de energia. nesses pouco conhecidos campos de energia existem impulsos que nos guiam no sentido da “qualidade”. Todos os impulsos humanos dirigidos ao que, de uma forma imprecisa e tosca chamamos “qualidade” provêm de uma fonte cuja natureza essencial desconhecemos inteiramente mas que somos perfeitamente capazes de reconhecer quando aparece em nós próprios ou em outra pessoa. não é comunicada através do ruído mas através do silêncio. uma vez que temos que usar palavras, chamamos-lhe “sagrado”. a única questão verdadeiramente importante é, então, a seguinte: “o sagrado é uma forma?”. o declínio, a decadência das religiões deriva do facto de se dar uma confusão entre uma corrente, uma luz, nenhuma das quais tem forma, com cerimónias, rituais e dogmas, os quais, como formas que são, perdem rapidamente o seu significado. certas formas que foram perfeitamente adequadas para determinadas pessoas durante uns anos ou mesmo para a totalidade de uma sociedade durante todo um século são ainda praticadas entre nós e defendidas com”respeito”. mas de que “respeito” falamos aqui?

pela observação dos últimos milhares de anos podemos constatar que nada é mais terrível que cultivar a idolatria, porque um ídolo é apenas um pedaço de madeira. ou o sagrado é omnipresente ou não existe. é ridículo pensar que o sagrado está no alto da montanha e não existe no vale, ou ao domingo e não nos outros dias da semana.
o problema é que o invisível não é obrigado a tornar-se visível. embora o invisível não seja compelido a manifestar-se, pode ao mesmo tempo fazê-lo em qualquer sítio, a qualquer momento, através de qualquer pessoa, reunidas as condições adequadas. não me parece que faça qualquer sentido reproduzir os rituais sagrados do passado, como forma de sermos conduzidos ao invisível na actualidade. a única coisa que nos pode ajudar é a consciência do presente. se o momento presente for acolhido de uma forma particularmente intensa e se as condições forem favoráveis, um “sphota”, essa insondável e fugidia centelha de vida, pode surgir no seio do som, gesto, aparência, ou interacção correctos. em mil e uma formas inesperadas e improváveis o invisível pode manifestar-se. a busca do sagrado é, assim, uma jornada

o sagrado consiste numa transformação, em termos de qualidade, daquilo que originalmente não possui esse traço. o teatro (yoga) é baseado em relações entre e intra seres humanos que, por o serem, são por definição não sagrados. a vida de um ser humano é o visível através do qual o invisível pode aparecer

(porque é que o acto de escrever um poema, ou de assistir a uma peça de teatro ou de ouvir uma canção num momento de profunda crise emocional pode ser tão libertador e balsâmico: permite-nos regressar a uma dimensão intemporal colectiva sagrada em que a nossa dor em vez de nos apartar e fazer sentir isolados nos reconduz à sensação de unidade com a própria condição humana. o mesmo para a alegria ou para o êxtase que quando intimamente partilhados através da celebração pelo acto criativo - ou pela contemplação deste em outrem - simultaneamente se sacralizam e universalizam)

a grande e eterna questão que nos continuamos a colocar é: “como viver?” mas as grandes questões permanecem ilusórias e teóricas se não tiverem uma base concreta para aplicação no terreno. o que é fascinante é que o teatro (yoga) é precisamente o ponto de encontro entre as grandes questões da humanidade – vida, morte – e a dimensão do artesanato, que é muito prática, como na olaria. nas sociedades tradicionais, o oleiro é alguém que procura lidar com as eternas grandes questões ao mesmo tempo que modela a sua obra. esta dupla dimensão é igualmente possível no teatro (yoga): na verdade, é o que lhe dá todo o seu valor

“teatro” (yoga) é uma palavra simultaneamente tão vaga e vasta que a sua evocação ou perde o sentido ou cria confusão porque cada pessoa pode-se-lhe referir em sentidos completamente diferentes. é como falar da “vida”. a palavra é demasiado grande para transportar significado operacional. o teatro (yoga) não tem que ver com construções, textos, actores, estilos ou formas. a essência do teatro (yoga) encontra-se num mistério chamado “o momento presente”

o “momento presente” é espantoso. como o fragmento extraído de um holograma, a sua transparência é enganadora. quando quebramos este átomo de tempo, encontramos a totalidade do universo na sua infinita pequenez

aqui, neste momento, à superfície, nada de especial está a acontecer, eu estou a falar, vocês escutam. mas será esta imagem superficial um reflexo genuíno da nossa realidade presente? claro que não. nenhum de nós sacudiu de repente todo o edifício vivo que cada um é: mesmo que momentâneamente adormecidas, as nossas preocupações, relações, comédias menores assim como profundas tragédias estão todas presentes, como actores aguardando nos bastidores. não só estão aqui as personagens dos nossos dramas pessoais como à semelhança do coro das óperas, multidões de figurantes encontram-se também aptos para entrar a qualquer momento, ligando a nossa história pessoal com o mundo exterior, com a sociedade no seu todo. e dentro de nós, a todo o momento, como num instrumento musical gigante pronto a ser tocado, temos cordas cujos tons, consonâncias e dissonâncias constituem a nossa capacidade para responder às vibrações do mundo espiritual invisível que frequentemente ignoramos mas com quem renovamos o contacto a cada simples respiração

se fosse possível libertar subitamente para o espaço, para a “arena” desta sala, todas as nossas imagens e dinâmicas internas, tal assemelhar-se-ía a uma explosão nuclear, e o turbilhão caótico de impressões seria demasiado poderoso para poder ser absorvido por qualquer de nós. por aqui podemos constatar como um acto de teatro (yoga) acontecendo no verdadeiro presente pode, por esse facto, libertar potenciais colectivos ocultos de pensamento, imagem, sentimento, mito e trauma tão poderosos que podem tornar-se perigosos

“mas os mundos também contemplam a vossa forma temível e poderosa, com muitas bocas e olhos, com muitos ventres, coxas e pés, ameaçadora com dentes terríveis: eles tremem de medo e também eu tremo!

quando observo a tua forma imensa, atingindo o céu, incendiada numa miríade de cores, com bocas escancaradas, olhos enormes e flamejantes, o meu coração vacila de horror: o meu poder foi-se, tal como a minha paz, ó vishnu!

como o grande fogo no fim do tempo, que tudo consome no último dia, assim vejo as vossas vastas bocas e temíveis dentes. onde é que eu estou? onde é que está o meu abrigo? tem piedade de mim, deus dos deuses, refúgio supremo do mundo!”

(“bhagavad gita”)

importa investigarmos com mais cuidado o que queremos significar com o termo “momento”. se pudéssemos penetrar até ao âmago de um “momento”, descobriríamos que ele não contém movimento, consistindo no todo de todos os momentos possíveis e que aquilo que habitualmente designamos como tempo teria desaparecido. mas logo que prosseguimos nos afazeres da nossa vida corrente, “cá fora”, constatamos que cada momento no tempo está relacionado com o que o precedeu e com o que se lhe sucede, numa cadeia interminável. desta forma, numa peça de teatro (sessão de yoga) confrontamo-nos com uma lei inelutável: uma peça (sessão de yoga) é um fluxo, que tem uma linha ascendente e uma queda. para que um momento de profundo significado seja atingido, necessitamos de uma cadeia de instantes que começam num nível simples, natural, conduzem-nos a uma determinada intensidade e nos trazem de regresso. o tempo, que é tantas vezes inimigo da vida, pode tornar-se nosso aliado, se constatarmos como um momento simples pode dar origem a um momento crescente, que nos conduz a um momento de perfeita transparência, antes da queda e regresso a um momento de simplicidade quotidiana

podemos seguir melhor este raciocínio se pensarmos num pescador que constrói a sua rede. à medida que ele vai trabalhando, cuidado e significado estão presentes em cada volta e toque dos seus dedos. ele pega no fio, vai formando os nós, envolvendo o vazio com formas cujos contornos exactos correspondem a funções precisas. mais tarde, a rede é lançada à água, é puxada em várias direcções contra e a favor da maré, em muitos padrões complexos e aleatórios. um peixe é apanhado! um peixe não comestível, ou um peixe vulgar, bom para grelhar, talvez um peixe multicolor, ou um peixe raro, ou venenoso, ou, num momento de graça, um peixe dourado. há no entanto, uma diferença subtil mas fundamental entre o teatro (yoga) e a pesca, que deve ser sublinhada. no caso da rede bem construída, fica ainda assim a dever-se à sorte ou acaso se o pescador apanha um peixe bom ou mau. no teatro (yoga), os que “dão os nós” têm uma influência directa na qualidade do momento que é captado na sua rede sendo portanto responsáveis por ele. é espantoso! o “pescador” pela forma como faz os nós influencia a qualidade do peixe que cai na sua rede!

o primeiro passo é fundamental e muito mais difícil do que parece. surpreendentemente, esta etapa preliminar não recebe o devido reconhecimento

uma plateia (grupo de alunos) pode estar sentada à espera do início duma peça (sessão de yoga) empenhada, interessada, expectante, persuadida de que tem que demonstrar interesse. ela só ficará irresistivelmente interessada se as primeiras palavras, sons e acções da peça (sessão) libertarem bem do fundo de cada espectador (praticante) um primeiro murmúrio relativo aos conteúdos ocultos que irão gradualmente emergir

de onde é que vem o peixe dourado? não sabemos. algures, podemos imaginar, desse oceano colectivo inconsciente mítico cujos limites nunca foram descobertos. e onde é que estamos nós, as pessoas comuns na audiência (na sala de yoga). nós estamos onde estamos quando entramos na sala de espectáculos (sala de yoga), em nós próprios, na nossa vida habitual. desta forma, a construção da rede consiste na criação de uma ponte entre nós e aquilo que habitualmente somos, nas nossa condições normais, transportando o nosso universo quotidiano connosco e um mundo invisível que só se nos pode revelar quando a habitual inadequação perceptiva é substituída por uma mais aguda qualidade de consciência. a rede é feita de de buracos ou nós? esta questão é como um “koan” e para fazermos teatro (yoga) temos que viver com ela sempre

nada na história do teatro expressa tão completamente este paradoxo como as estruturas que encontramos em shakespeare. na essência, o seu teatro é religioso, trazendo o o mundo espiritual invisível ao mundo concreto visível e reconhecível das formas e acções. shakespeare não faz concessões a nenhum dos extremos da escala da natureza humana. o seu teatro não vulgariza o espiritual para o tornar de mais fácil assimilação ao homem comum, nem rejeita a sujidade, a fealdade, a violência, o absurdo e o cómico da condição humana básica. ele flutua sem esforço entre ambos, momento a momento, ao mesmo tempo que num golpe certeiro vai intensificando a experiência em crescendo até que toda a resistência explode e a audiência é desperta para um rasgo de profunda consciência e visão clara sobre a essência da realidade. este momento não se pode perpetuar. a verdade não pode ser definida, nem agarrada, mas o teatro (yoga) é uma máquina que permite a todos os seus participantes saboreá-la no seio de um momento: o teatro (yoga) é uma máquina que nos permite subir e descer os degraus do significado, numa “autêntica experiência de estar vivo “ (joseph campbell)

aqui confrontamo-nos com a verdadeira dificuldade. captar um momento de verdade exige a totalidade dos melhores esforços do actor, encenador e cenógrafo (professor e aluno); ninguém pode fazê-lo sozinho. numa peça (sessão de yoga) não pode haver estéticas ou objectivos em conflito. todas as técnicas artísticas e de construção têm que servir aquilo que o poeta inglês ted hughes chama uma “negociação” entre o nosso nível comum e o plano oculto do mito. esta negociação traduz-se pela articulação do imutável com o mutável do dia a dia, que é precisamente onde a performance (prática de yoga) acontece. na verdade, estamos em contacto com este mundo a cada segundo das nossas vidas, quando a informação registada nas células dos nossos cérebros no passado é reactivada no presente. o “outro mundo”, embora sempre presente permanece invisível porque os nossos sentidos não permitem ter-lhe acesso, mas pode ser apreendido em muitas ocasiões e formas, pela nossa intuição. todas as práticas espirituais se orientam no sentido de nos conduzirem ao “oculto”, a este “mundo invisível”, pela retirada ou desidentificação do mundo das impressões tangíveis e o mergulho na quietude e no silêncio. o teatro (yoga) porém, não é uma disciplina espiritual. o teatro (yoga) é um aliado exterior da via espiritual e existe para proporcionar vislumbres, inevitavelmente de curta duração, de um mundo invisível que impregna a vida quotidiana mas é normalmente ignorado pelos sentidos e pela consciência psíquica comuns

um grande ritual, um mito fundamental, são uma porta, uma porta que não pode ser apenas observada mas vivida, e aquele que consegue ter a experiência dessa porta dentro de si próprio atravessa-a mais intensa e profundamente. neste sentido, o passado não deve ser ignorado de uma forma arrogante. mas, ao mesmo tempo, há que não ser desonesto. se “roubarmos” os rituais e os seus símbolos e tentarmos explorá-los para os nossos próprios e exclusivos fins, não é de admirar que eles percam a sua qualidade e poder, transformando-se em meros objectos decorativos cintilantes e ocos. o desafio do discernimento e da discriminação é constante. em certos casos, um formato tradicional ainda conserva a sua vitalidade; noutros, ele é precisamente o laço mortífero que estrangula a experiência vital. o ponto importante é conseguir rejeitar a “via habitual” sem contudo procurar a mudança pela mudança.
a questão central, então, está na forma, a forma precisa, a forma adequada. não podemos passar sem ela, a vida não pode prescindir dela. mas o que é que significa “forma”? dê eu as voltas que der a esta questão sou sempre reconduzido ao “sphota”, uma palavra originária da filosofia clássica hindu, cujo significado deriva da sua sonoridade – uma ondinha que aparece de repente à superfície na quietude das águas, uma nuvem que surge no céu limpo. uma forma é o virtual que se torna manifesto, o espírito que ganha corpo, o primeiro som, o big bang