18/05/2011

stillness




eis o Silêncio: deixar que o Senhor profira em nós uma Palavra igual a Ele

(evangelhos)


(fotografia: die grosse stille - philip groning)

sound



poeta e palavra

quando o ar, suprema companhia,
ocupa o sítio dos que já partiram,
dissipa seu olor, seus gestos, seus rumores
e, único, volta a preencher
a ordem natural do seu silêncio,
ele, a cujo domínio infinito se reduzem
a meia-noite, o meio-dia
(horizontes de prata ausente ou mais além de ouro)
fica com o ar em seu lugar,
docemente cingido pela atmosfera
da propriedade azul eterna

pode esquecer, calar, gritar então
a palavra que chega do harmonioso todo,
harmonioso todo solitário;
que o centro escuta em círculo
preparado desde sempre e para sempre;
que permanece leve e firme sobre tudo;
a vibrante palavra muda,
a imanente, única flor que não se dobra,
única flor que não se extingue,
única onda sem fracasso

de todos os segredos brancos, negros,
concorre a ele em eco, enamorada,
plena e alta de seus tesouros todos,
a profunda, silenciosa, verdadeira
palavra,
que só ele ouviu, ouve, ouvirá em sua vigília.
a sua carne, a sua alma unas, no seu ar,
são então palavra:
princípio e fim,
presentes sem mais olhar para trás,
destino, chama, olor, pedra, asa, válidos,
vida e morte,
nada ou eternidade: então palavra

e ele é o deus absorto no princípio,
completo e sem ter falado nada;
o embriagado deus do suceder,
inesgotável em seu nomear exacto;
o deus unânime no fim,
feliz por tudo repetir em cada dia.


juan ramón jimenez / tradução josé bento

(fotografia - abbas kiarostami - "five")

speech




acção

não sei com que dizê-lo
pois não está feita ainda
minha palavra

____________________________________

inteligência, dá-me
o nome exacto das coisas!
…minha palavra seja
a própria coisa,
criada por minha alma novamente.

que por mim cheguem todos
os que não as conhecem, às coisas;
que por mim cheguem todos,
os que já as esquecem, às coisas;
que por mim cheguem todos
os próprios que as amam, às coisas…
inteligência, dá-me
o nome exacto, e teu,
e seu, e meu, das coisas.


juan ramón jimenez / tradução - josé bento

(fotografia - victor erice - "el espíritu de la colmena")

14/05/2011

la faiblesse de dieu


"duvidamos - diz o prior, em voz subitamente trémula - fomos sempre duvidando... por quantas noites tenho rejeitado a ideia recorrente de Deus não ser, por cima de nós, mais que um tirano ou um monarca incapaz, e de que o ateu que O renega é, possivelmente, o único homem que não blasfema... depois surgiu-me um vislumbre; a doença é uma aberta! e se nós nos enganássemos postulando a Sua plenipotência e ao vermos nos nossos males o efeito da Sua vontade? e se coubesse a nós garantir que o Seu reino chegue? não há muito tempo, eu dizia que Deus se delega; iria mais longe, sebastião. talvez não esteja nas nossas mãos mais que uma pequena chama, que depende de nós alimentar e não deixar apagar-se; talvez nós sejamos o extremo último onde Ele consegue chegar... quantos infelizes, indignados com a noção da Sua omnipotência, acorreriam, do fundo da sua aflição, se lhes solicitássemos que viessem em auxílio da fraqueza de Deus?..."

marguerite yourcenar - "a obra ao negro" (tradução nc / 2011)

eric baret - de l'abandon (1)

(tradução e adaptação - nc / maio 2011)

"glória àquele que não estabeleceu caminho para ser conhecido senão o da incapacidade de ser conhecido"

ibn-arabi - as iluminações de meca


fruto do medo, o impulso de saber e de querer é a raiz do nosso sofrimento psicológico. a nossa existência não é, frequentemente, mais que uma luta para fazer triunfar essa afirmação de superficialidade. a busca constante de segurança é o obstáculo essencial à revelação duma liberdade que, porém, nos solicita a cada instante daquilo a que chamamos a vida ordinária

deixar o mundo livre das nossas projecções é a arte suprema expressa pelas grandes tradições espirituais. nessa escuta sem apropriação reside a solução dos nossos conflitos, imaginários, mas tornados bem reais pela nossa codificação da vida

temida pelo nosso psiquismo policiado, a emoção encontra-se na origem de todas as percepções. acolhida sem reservas, essa energia liberta-se das suas causas aparentes e torna-se canto da vida, silêncio da pessoa

a segurança em que se comprazem as almas opõe-se à intimidade com deus. essa vaidade priva o servidor do sentimento de bem estar logo que este a ele se entrega, de tal forma que lhe torna impossível a felicidade

na verdade, a segurança destrói a vida espiritual e arruina o homem que nela se compraz, fazendo-o desperdiçar o seu tempo. e quando este a ela regressa (apesar de si próprio) apercebe-se de que tem as mãos vazias e nada obteve

ibn - arabi : livro das teofanias


a consciência não nos serve para nada. ela não é um objecto destinado a estimular-nos psicologicamente. não é um automóvel vermelho, um marido ou um cão. ela não existe para nos servir: ela é a nossa emoção fundamental e impulsiona-nos a buscarmo-nos constantemente a nós próprios através das situações

a consciência de qualquer coisa é uma consciência funcional. é como uma perna para andar. esta "consciência" não tem qualquer substância, é uma função. a consciência é outra coisa

experimentem por um momento estar em desacordo com a vossa consciência - que podemos nós ser que não a "nossa" consciência? nós não somos uma zebra vermelha situada no exterior da consciência para nos pormos em acordo com ela. essa consciência é "eu próprio" quando deixamos de procurar o que quer que seja e paramos de pretender estar na posse do poder de entrar em acordo ou desacordo. no silêncio entre dois pensamentos, entre duas percepções, no sono profundo e a todos os momentos - porque o tempo aparece na consciência - a nossa vida encontra-se em perfeito acordo com a consciência

suprimamos quaisquer comentários ideológicos sobre a nossa vida. o nosso saber sobre a vida impede-nos de ver o quanto ela é perfeita. não há nada a mudar. a nossa vida muda, "c'est la vie", não é necessário pormo-nos em acordo com o que quer que seja. senão vamos sentir-nos constantemente em desacordo. se tentamos colocar-nos de acordo seja com o que for, pomo-nos de acordo com uma ideologia. há que ficarmos em acordo com o que se nos apresenta a cada instante. mas não podemos "fazê-lo", trata-se uma graça que nos chama e que recusamos a cada momento porque estamos preocupados em ficar em harmonia com o momento seguinte... observar o mecanismo!

há que valorizar, aceitar as solicitações que surgem do exterior. é normal que o nosso cão espere a sua refeição, que o nosso filho, pai, amante, marido, mulher, patrão, empregado, esperem qualquer coisa, mas vamo-nos dando conta de que não estamos aqui para corresponder às expectativas dos outros, nem às nossas tão pouco! estamos aqui, eventualmente, a certa altura, para estimularmos, em nós e à nossa volta, a não expectativa. por vezes o nosso meio ambiente e nós próprios ficaremos satisfeitos, outras vezes desiludidos. há que respeitar isto, a própria necessidade de ambos os fenómenos. tal como nós, o nosso filho precisa quer da satisfação quer da frustração dos seus desejos. a maturidade dele depende de ambos, do sim e do não. o nosso amigo, o nosso gato ou cavalo também

a certa altura, deixamos de nos alimentar da projecção do nosso vizinho. respeitamo-lo, simplesmente, no seu ódio como no seu amor. trata-se de uma projecção, ele fala para si próprio. é como os cães que nos querem morder ou lamber, não tem qualquer sentido dizermos ao cão que nos quer morder que não deve fazê-lo ou ao que quer lamber-nos que ele projecta sobre nós uma segurança que melhor seria procurar nele próprio. respeitamos o cão que vê em nós essa segurança e nos lambe tal como aquele que nos quer esfacelar por medo. agimos em função da situação, por respeito.

se não tivermos problemas connosco próprios também não os teremos com a sociedade. a sociedade é clara, perfeita... excepto quando vivemos na expectativa, na intenção. aí, surge o conflito.

na justa medida em que desejamos que o ambiente seja diferente a insatisfação permanece. mesmo que o meu marido se torne exactamente o que eu gostaria que ele fosse, no dia seguinte vai faltar qualquer outra coisa. aquilo que eu exijo ao meu marido ou ao meu cão é a minha própria pessoa e essa nenhum marido pode dar-me

em vez de viver a realidade passo o tempo a pensar que o meio à minha volta devia ser diferente. ele é o que é. não estar em harmonia com a realidade é ter um problema não com ela mas connosco próprios! nesse respeito, nesse amor pela realidade, reintegro a disponibilidade

aceitar significa escutar e escutar significa nada saber. começamos a aperceber-nos de que sempre que julgamos saber qualquer coisa a nossa respiração começa a ficar difícil. e que ela volta a libertar-se quando deixamos de saber, quando morremos para a situação

para experimentar a sensorialidade, cantar, dançar, fazer um círculo sobre uma página em branco, desferir um golpe, atirar ao arco, é necessária uma vida inteira

a arte exige um fervor total, mas por alegria. desenvolve-se um trabalho imenso e cada vez mais apurado. depois, com a idade, vamos enfraquecendo, o traço ou o passo tornam-se mais vacilantes, o golpe menos impactante, regredimos. mas porque nos situámos numa determinada vibração em que a tónica não está na técnica, mesmo já muito idosos, quando a nossa pintura ou arte marcial perdeu o virtuosismo técnico, a emoção que transmitimos permanece intensa

acontece com todas as artes: aquele que se apega à técnica é psicologicamente afectado pelo envelhecimento, porém, aquele que evoluiu pelo coração, nesse despojamento de si próprio, permite que outra coisa ocupe o lugar da técnica. é outro corpo - o corpo não é o corpo - é necessário um certo grau de maturidade para nos darmos conta do facto

trabalhar é agradecer. praticar uma técnica é um sinal de respeito para com a vida. a preguiça torna-se impossível pela paixão, intensidade, fervor, ausência de amadorismo. a técnica aprende-se pelo coração, por amor à arte. então, ela torna-se fácil e mesmo as dificuldades ou obstáculos deixam de ser problemas

na vida o que importa verdadeiramente não é saber qualquer coisa mas sabermo-nos nós próprios. quando me ponho, em busca de mim próprio, a estudar o taoísmo, o hinduísmo, o cristianismo, o que quer que seja, afasto-me de mim. todas essas formulações aconteceram, originalmente, para nos fazer regressar a nós próprios mas infelizmente tal não funcionou bem. por vezes elas permitem alguns laivos de clareza mas mesmo estes acabam por resultar num distanciamento

os tratados devem calar-se permitindo que a sensibilidade desperte e viva em nós. a única função de um tratado é conduzir a uma saturação, uma espécie de acalmia mental, onde não há nada a compreender. nesse abrandamento, podemos começar a deixar viver aquilo que é importante

essas belas teorias profundas estão ali apenas para acalmar os nossos medos. um dia deixaremos de nos desperdiçar em livros, ensinamentos e seminários. o que é importante para cada um de nós é o "eu próprio", e ele é gratuito. temo-lo sempre à mão, não precisamos de ir a lado nenhum para meditar ou ficar tranquilo, é o nosso presente de cada instante, regressar a esta oferta constante! aí, magicamente, compreendemos porque é que alguns exprimiram a virulência, o rugido desta dádiva, sob a forma de cinco, dois ou três elementos - tudo é verdade. tudo é uma maneira de dizer. mas a expressão afasta-me da sensibilidade

há que estar para lá do tratado para compreender o tratado. é por isso que ler os tratados se torna uma forma de barreira

voltar à nossa própria experiência de ser, que está constantemente disponível. nada nos é distante, a coisa mais profunda somos nós próprios

quando compreendemos isto de forma não mental, os tratados não falam senão de nós. de forma mais ou menos apurada, eles falam da nossa beleza. lemo-los, então, como quem lê um poema, como quem acaricia o joelho de alguém, como olhamos para a lua: sem razão. aí, os tratados revelam-se. mas enquanto tentarmos compreendê-los, vamos agitar-nos muito, por pouca coisa

eu não transmito compreensão nem ensinamento, transmito uma não-compreensão, essa convicção absoluta de não haver nada a compreender - liberdade

"como podemos ter acesso ao que aqui é transmitido, que atitude assumir para aceder a essa disponibilidade?"

darmo-nos conta a cada instante de que a recusamos: "eu devia ser diferente e o mundo também. quando eu for diferente, quando eu sentir menos medo, remorso, amargura, expectativa, então serei livre. quando tiver seguido uma via espiritual, quando me tiver purificado, quando tiver mudado de casa, me tiver divorciado, quando tiver encontrado outra pessoa, quando for mais rico, estiver melhor de saúde, me tornar budista, cristão, praticar meditação, yoga, for menos violento, quando parar de bater na minha mulher..."

constatar o mecanismo: estou em processo constante de negação da realidade e em vias de embarcar num projecto espiritual. dar-me conta do facto, claramente. e dar-me conta, sobretudo, de que não posso fazer nada contra o mesmo. não está nas minhas mãos o poder de me impedir de pensar que o budismo, o taoísmo, os ensinamentos de gurdjieff, a meditação solitária ou o casamento com cinco mulheres é a solução para mim. mas posso ver, sim, que todo o meu dinamismo deriva unicamente desse medo de escutar

no facto de estar presente, simplesmente, não há ninguém presente apenas presença. se houvesse alguém presente o momento seria passado. todas as percepções - designadas conscientes - são testemunhos do passado. há percepção, percepção justa, mas ninguém que percepciona nem o que quer que seja percepcionado

a personalidade não existe senão no passado e no futuro (que é outra forma de passado). quando digo não, encontro-me, enquanto personalidade, com um futuro e um passado. quando digo sim, não há ninguém a dizê-lo. o sim elimina a pessoa

a pessoa não pode dizer sim, a estrutura da pessoa é o não - dar-me conta do facto, profundamente...

é por isso que não podemos "relaxar-nos", apenas tensionarmo-nos. gerar tensão no corpo, voluntariamente. não podemos relaxar-nos voluntariamente. refiro-me, aqui, naturalmente, a um relaxamento profundo. o abandono voluntário é impossível. ele surge quando deixamos de "querer" abandonar-nos. aí, o "sim" inscreve-se em nós

situado constantemente no projecto, na intenção, o que acontece ao agora? excluo agora da realidade da vida mas é (apenas) agora que posso ser feliz, agora, no instante. se não for feliz agora, amanhã viverei a mesma miséria: é, de facto crucial, darmo-nos conta do mecanismo

realizar a que ponto dizemos não cada vez que nos imaginamos felizes ou infelizes... amanhã. entretanto, surgem-nos momentos em que vamos pela rua e, tendo sido abandonados pela nossa amante, com o nosso filho doente, o cão com a pata partida, sem dinheiro para pagar a renda, experimentamos um instante de bem estar transbordante. ficamos sem perceber porque nos sentimos contentes. apercebemo-nos de que o dizer "não" era uma reacção. fomos observando, cada vez mais conscientemente, o mecanismo que nos fazia ir sempre em direcção a qualquer coisa. não podemos nada contra o facto, apenas constatá-lo. essa visão "estou sempre a fugir da essência, da presença" - cria uma espécie de fissura; não podemos dizer onde é que ela acontece, é apenas uma imagem. nessa brecha, apesar de nós, vão instalar-se momentos livres de causalidade e que nos vão permitir verificar que a alegria não está ligada à situação, que ela não depende de nada, permitindo-nos integrar mais e mais a noção de que, na verdade, não precisamos de nada na vida porque ela acaba a cada instante. não há tempo para construir uma vida consciente. não há como "tornarmo-nos" o que quer que seja

vamo-nos apercebendo da dimensão extraordinária do instante, realizando que não há mais nada. essa compreensão vai ampliar ainda mais as falhas. vamo-nos surpreendendo, até de forma divertida por vezes, a projectar-nos sobre uma mulher, um homem, um cão, um automóvel, um mestre espiritual: a alimentar uma esperança na aquisição de uma técnica, na dança ou na música - mas não há nada a mudar. podemos casar-nos, ter um filho, divorciar-nos, tornar-nos budistas, mas não vamos mais buscar-nos, enquanto sentido para a existência, através desses encontros ou actividades. o dinamismo irá diminuindo e toda a energia utilizada para agarrar, transformar, encontrar e ser "alguém" vai progressivamente regressar a nós. vamos experimentando, cada vez mais frequentemente, momentos de tranquilidade e bem estar sem razão, cientes de que nada nem ninguém nos provoca esse estado. pela integração constante desses momentos de felicidade sem causa, vamo-nos apercebendo, surpreendidos, de que, da mesma forma, nada de exterior é responsável pela nossa infelicidade. uma espécie de cultura da escuta, da presença, vai desenvolver-se naturalmente em nós. ao mesmo tempo, cientes de que tal não está nas nossas mãos, de que não podemos decidi-lo

se for o nosso destino, encontraremos, talvez, nesses momentos de não expectativa, o que poderíamos chamar um mestre, um local ou um texto que irá, ainda, acentuar esse abalo. mas um mestre chega quando não o procuramos, quando nada pedimos. enquanto pedimos alguma coisa a um mestre não recebemos nada. recebemos apenas a nossa carência. para nos apresentarmos perante um mestre, há que ter as mãos vazias. só aí a transmissão pode acontecer. é o coração que fala

um mestre não vê "outro". não pode transmitir a "outro". enquanto pretendemos ser "outro" o mestre não pode fazer nada por nós. é quando abdicamos de qualquer diferenciação que o mestre pode revelar-se como sendo nós próprios. é o que, no oriente, designamos como "transmissão"

neste sentido, vidas de "plena luz" ou "vidas obscuras", vão-me surgindo como designações conceptuais que valem o que valem... vou-me apercebendo de que, profundamente, todas as vidas são o mesmo. aqueles que as vivem não têm a mínima liberdade de o fazer ou não fazer, de realizarem ou não realizarem aquilo que lhes vai acontecendo. à medida que vou integrando essa evidência, uma forma de descontracção sobrevém. deixo de ter necessidade de me procurar nos jornais, nos livros, através das pessoas ditas vitoriosas ou derrotadas. a minha vida, o meu corpo, o meu psiquismo, são o que são. surge uma qualidade de plasticidade

enquanto continuo a pretender mudar (me), não me vejo, apenas consigo discernir o meu projecto. enquanto me mantenho farto da minha violência e indisponível a ela, não vejo senão o meu ódio a essa violência, o meu desconforto face a ela e a minha esperança de, amanhã, deixar de ser violento. fico ausente a mim próprio - não! quando sou violento, fico disponível à violência que me habita, deixo-me senti-la em todo o corpo. sem a pretensão de ser diferente.

essa presença à emoção é a mudança. é a magia. situa-se para lá de todos os "siddhis" (poderes mágicos) possíveis

a mudança deriva da visão. não há visão e mudança. a visão é a mudança

eu não vejo e escuto aquilo que é, supostamente, melhor para mim: a uma determinada altura apercebo-me de que compreendi, de uma vez por todas, que aquilo que é melhor para mim é o que acontece, o que é inevitável. escuto. nessa escuta, descubro se fui feito para a dança, a música, o combate, o budismo, o hinduísmo, para aprofundar a visão dos vedas ou ler as upanishads

torno-me uma caixa de ressonância do inevitável

e torno-me, assim, um bom marido, um bom asceta, um bom cristão ou um bom...nada de nada!

surge uma "facilidade no viver": a minha criatividade vai poder exprimir-se e os meus limites, quando eu deixo de me buscar "nas coisas", tornam-se tremendamente elásticos. continuo, naturalmente, mais músico que oleiro, pintor que bailarino, celibatário que delinquente sexual, conforme a minha biologia

entretanto, ser agredido torna-se uma dádiva para não adormecermos

é fácil acreditarmos numa imagem da nossa própria tranquilidade, fazer yoga, ser sábio. mas subitamente alguém nos agride, nos detesta, nos odeia. isso permite-nos despertar para a nossa ressonância. o que é que esse estímulo desencadeia em nós? - o amor? o ódio? - descobrimos, assim, a nossa própria forma de funcionamento. é isso o yoga, não o ficar sentado muito sério, como uma estaca, mas observarmos como fazemos face a cada instante

quando começamos a pressentir a força e a beleza da emoção, apercebemo-nos igualmente do quanto todos os sistemas de pensamento espiritual são superficiais. os dogmas, as análises, os saberes, as fantasias sobre a energia e o despertar não são mais que projecções a partir de fenómenos psíquicos miseráveis, ténues ecos da emoção profunda

a partir da necessidade humana de codificar, explicar, ter um princípio e um fim, religiões do oriente e ocidente fomentaram todo este delírio, este arrivismo pseudo-espiritual. a maior parte das pessoas é incapaz de fazer face às suas emoções. têm demasiado medo da loucura. refugiam-se, então, em sistemas que lhes proporcionam "onde se encontrarem", disciplinas onde "se contactarem", exercícios onde "se purificarem". e experimentam o sentimento de "serem alguém", de aperfeiçoarem, de se tornarem mais e mais "espirituais". e tudo isso é perfeito, tal como é. os loucos têm necessidade dos respectivos guardas... mas a certa altura, sem queremos sequer, damo-nos conta da frivolidade destes pseudo-saberes

encontrarmo-nos, uma vez na vida, sem dinamismo para agir ou deixar de agir. desprovidos da mais pequena pretensão de sermos detentores de uma qualquer "capacidade". o ego não pode tolerar um tal momento. dar-me conta de que passei a vida a desenvolver as minhas faculdades, a criar um mundo onde sou relativamente competente, a pretender ser independente, a conseguir sobreviver e sair-me airosamente de situações complexas e acto contínuo aperceber-me igualmente de que tudo foi um sonho. todas as competências que adquiri pela minha luta ou ascese, graças às minhas competências intelectuais ou afectivas, eram um sonho... de repente acordo e a fortuna, os castelos, os títulos que eu possuía, as obras que realizei em sonhos: não resta nada!... esse momento contém uma emoção profunda

ver, na acepção mais terminal do termo: sonhei a minha vida! inventei tudo! nada daquilo existe, só o meu medo. a codificação do meu medo! a minha vida é a materialização desse medo. quando um psiquiatra competente - se é que isso existe - me pede para desenhar uma árvore, pode ver as ramificações do meu medo. se eu lhe mostrar a fotografia da minha mulher, dos meus filhos, do meu cão, da minha casa, do meu automóvel e do meu corpo, ele não vê senão o meu medo. o medo que me fez comprar uma mulher, uma amante daquela cor, um cão daquela raça, que me fez fabricar aqueles filhos, trabalhar para ser rico, que me faz vestir, conduzir-me no dia a dia, respirar, falar, apresentar-me de determinada maneira, perfilhar uma teoria política ou social, um gosto literário ou cinematográfico - tudo isto, como expressão do meu medo em todo o seu esplendor!

sem crítica! - limito-me a constatar o fenómeno. não posso agir doutra forma. sem supor que posso funcionar sem medo...amanhã! dar-me apenas conta de que a vida que criei, as capacidades que procurei desenvolver - a força, a coragem, a inteligência, a espiritualidade, a meditação, a sabedoria e outras balelas - tudo isto desenvolvi para não fazer face à emoção que me habita constantemente

para fugir a essa evidência que me desnuda, demonstrando-me a minha total e inevitável inadequação, criei um mundo onde me pretendo uma "capacidade". então, torno-me um bom marido, um bom cidadão, um bom amante, um bom pai, um bom budista... tudo isto para pretender existir.

dum só golpe, desperto e apercebo-me de que tudo aquilo não era mais que pretensão, que não sou nada daquilo...

algures, todos conhecemos essa emoção profunda, quando somos ultrapassados, submersos por qualquer coisa. por mau hábito, quando tal acontece, dizemo-nos: " estou demasiado alterado, perdi o controlo, tenho que ver se me acalmo, vou tomar um tranquilizante, fazer yoga, para domar a emoção". mas, inversamente, este momento de humildade, de não saber, esta abdicação, é o verdadeiro saber, a verdadeira segurança.

ter confiança em "qualquer coisa" indicia uma falta de maturidade. enquanto depositamos confiança em algo de exterior, não temos verdadeira confiança. mais cedo ou mais tarde seremos enganados, porque projectamos a nossa própria tranquilidade naquilo em que temos confiança. imaginamos que a situação nos pode trazer essa plenitude. mas nem nós nem aquilo que chamamos "os outros" têm condições de no-la garantir, pelo que, toda a confiança está mal situada

quando deixo de ter confiança em mim ou no que me rodeia, fica uma confiança que não é dirigida ao que quer que seja, que é, simplesmente, um não-comentário

toda a esperança, todo o objectivo, direcção ou projecto impede essa confiança na vida. nascido com o pressentimento profundo, impossível de arrancar, de nada ser, o ser humano sabe, intuitivamente, que as suas projecções são histórias. toda a esperança é minada por esse pressentimento: ela serve apenas para tentar acreditar numa localização. e, nessa medida, enquanto alimento esperança em relação ao que quer que seja, sinto uma não confiança em relação à vida

vamo-nos dando conta de que todas as esperanças são fantasias. logo que obtenho qualquer coisa, desejo outra. na verdade não posso esperar senão a minha própria patologia. a minha mente, limitada pelo conteúdo da minha memória, conduziu-me à crise que me encontro a atravessar. como é que posso, então, alimentar uma esperança, de que os mecanismos dessa mesma mente me conduzam a outro lugar que não aquele onde estou?

a abordagem corporal, pelo yoga ou por outra arte, a cerimónia japonesa do chá, todas as artes tradicionais servem para nos estimular a escuta. qual é a esperança daquele que pratica a cerimónia do chá? durante trinta anos, todos os dias, aquela pessoa realiza os mesmos movimentos. com que esperança? poderia enriquecer, casar-se, divorciar-se, adquirir qualidades, cultivar-se, ler... mas não: procede aos gestos da cerimónia do chá, que se constitui como centro da sua vida. jovem, adulto, velho, doente: realiza aqueles gestos. é justamente a ausência de esperança que confere beleza ao acto. é gratuito, é uma arte

a arte de ser, sem esperança, sem futuro. doutra forma, não temos tempo de nos dedicarmos à arte, temos sempre coisas mais importantes a fazer. aqueles que têm esperança serão artistas... mais tarde! - quando tiverem tempo. mas a arte, é a arte de viver - a arte de viver... sem esperança

por trás da esperança esconde-se a carência, o medo. o medo provoca o desejo e, quando desejamos, não damos nada. é importante apercebermo-nos do facto. numa relação profunda, damos sem esperança de retribuição. quando deixa de haver expectativa somos tocados por essa não carência

com a maturidade necessária para não associar o sofrimento a quaisquer considerações e projecções, permitindo-me vivê-la independentemente de qualquer contexto, apenas sensorialmente, instala-se uma espécie de grande secura, uma morte interior constante vai despertar em mim. algo em mim vai morrer para todas as relações afectivas, sociais, de amizade, intelectuais... esse período é indispensável. um dia, essa tristeza vai revelar-se como sendo exactamente o seu oposto. basta, para tanto, ter a maturidade para a viver sem objectivação, sem situação.

quando o sofrimento se liberta das situações que supostamente lhe teriam dado origem, quando a minha maturidade me permite sentir uma tristeza sem motivo, que nada pode encobrir ou sanar, essa tristeza contém a minha própria morte. é um momento de grande intimidade.

porém, o mais frequente é que eu tente levantar a cabeça para respirar, evitando "afogar-me" nesse sofrimento. mas, pelo contrário, há que nos abandonarmos a ela: o único risco que corremos é o de morrer e, sem isso, não podemos nascer...

a sensação de tristeza situa-se no instante. não tem passado. quando digo: "estou deprimido", interligo as "centelhas" do presente e faço um "colar". na verdade, não há colar, senão no meu delírio mental. aquelas centelhas estão sempre presentes, umas nas outras, não estão à esquerda ou à direita para que eu delas faça um colar e portanto, uma história, no espaço/tempo.

quando deixo cair essa ideia, essa ficção, de depressão, fica a sensação de absoluta tristeza, sem causa. acarinho esse estado como o meu tesouro mais profundo, sem quaisquer laivos ou qualificações de masoquismo ou intenções de cura. deixo-o germinar, protegendo-o de qualquer esforço de compreensão, fuga, atenuação ou vontade de olhar para outro lado. deixo essa tristeza fermentar; a minha ternura por ela é o fermento

um dia, essa tristeza vai tornar claro tudo o que não tem sequer ligação directa a ela. a sua origem é o próprio pressentimento da autonomia. se eu não pressentisse a minha autonomia jamais poderia sentir-me triste desta forma. essa autonomia é-me inerente, por isso a adivinho, mesmo sem conseguir corresponder-lhe. a tristeza não deriva da vida fenomenal quotidiana difícil, ela surge porque eu vislumbro outra coisa sem conseguir atingi-la

a minha tristeza, como fermento, é, no fundo, esse pressentimento. e ele exige obscuridade e calor. enquanto vou olhando para o lado, um raio de sol atenua a tristeza e, novamente, a massa dessa "obra" abate. a mínima esperança, a mínima compreensão, a mínima tentativa e, novamente, a massa volta a caír, pela atenuação da tristeza. a partir do momento em que eu vou compreendendo o mecanismo, deixo de nutrir a mínima agressividade contra a tristeza: deixo a massa levedar. ainda uma vez: o pressentimento de ser e a minha disponibilidade a esse pressentimento constituem o fermento. esse fermento virá a fazer rebentar o recipiente, são os momentos de humildade face a essa tristeza que irão fazer esse invólucro explodir. mas aí, ainda, se encontrar uma forma de escapar, se o meu olhar se dirigir para fora, acto contínuo, acedo a essa pequena "aberta" de segurança medíocre e a massa volta a baixar...

há que, duma vez por todas, esquecer as nossas elaborações intelectuais, as nossas técnicas. essas coisas não têm valor senão no instante. existem, tão-só para criar uma caixa de ressonância que possa encarregar-se de nós! se nos permitirmos esquecer de tudo, alguma coisa não se esquece de nós. esse "qualquer coisa" vai-se imiscuir, de forma inicialmente imperceptível, depois mais concretamente, nas nossas vidas. mas qualquer tentativa de compreensão, de memorização, de apropriação, aceitação ou rejeição daquilo que aqui foi dito permanece como uma forma de agitação

a partir do momento em que sei, traio a minha honestidade. apercebendo-me do facto, regresso à própria honestidade. nessa disponibilidade,a vida revela-se verdadeiramente criativa. o saber é a morte

é tremendamente importante saber parar antes de compreender. parar antes que haja compreensão é a arte de viver no sentido profundo do yoga cachemiariano. como um cão a quem se tira o osso antes de ele o atingir ou, sequer, de ele ter tido tempo de se aperceber de que ele lhe foi retirado. esse "instante-já" como que suspenso no tempo

neste sentido, querer celebrar significa deixar a nossa ressonância profunda, que é celebração. não há nada a celebrar. a celebração é viver, conscientemente, a noção de que não há nada a celebrar, porque tudo é celebração

querer celebrar denota uma falta de vivência de celebração. a emoção profunda está para lá de toda a celebração. a nossa sensibilidade é a celebração. depois, conforme as nossas capacidades intelectuais, afectivas, acabamos por fazer a transposição desse momento. há que estar vigilante para que esse "rito" não derive para um movimento perfeccionista, por via de uma codificação ritual que formate excessivamente esse pressentimento original porque o natural não necessita de ajuda: o pintor que pretende retratá-lo tal qual insulta-o! como alguém que pretenda utilizar a extraordinária expressão da arte tântrica ao nível sexual, quando a emoção de que falam os tantra foi conceptualizada em termos de um "casal que se une no plano carnal" por razões de pura metafísica. os tantra falam de algo totalmente diferente quando se referem à relação homem/mulher. as esculturas de khadjuraho não falam de erotismo mas de silêncio. o mesmo para o "cântico dos cânticos" ou a "embriaguez" dos grandes místicos muçulmanos, que não se refere ao vinho. contrariamente à atitude mais frequente, estas imagens não devem ser vistas literalmente.

tudo reside "aqui", o bailarino, actor ou pianista não me interessam. na escuta autêntica, não escuto nem olho... é no coração que o concerto tem lugar. a partir dessa emoção, podemos olhar para lá: e vemos de outra maneira

além do que é visto ou ouvido, o sentido permanece. a beleza aborda-se de olhos fechados. abrir os olhos é uma concessão.