03/03/2012

éden - o filme desta terra




éden - o filme desta terra

tomás maia / andré maranha


é um grande recurso da alma que trabalha em segredo, que, no momento da mais elevada consciência, ela se esquive à consciência, e que, antes de o deus presente dela se apossar efectivamente, ela lhe faça frente com uma palavra audaz e muitas vezes mesmo blasfema, preservando assim a possibilidade sagrada, viva do espírito.

no auge da consciência, ela compara-se sempre então a objectos que não têm consciência, mas que assumem no seu destino a forma da consciência. um objecto assim é uma terra tornada deserta, que na sua exuberante fecundidade originária fortalece em excesso os efeitos da luz do sol, e por isso se torna árida


f. holderlin notas sobre antígona (II)



no interior, a partir do que é distinto, forma-se um espírito solene. tão simples são porém as imagens, tão sagradas, que muitas vezes realmente se teme descrevê-las. os celestiais, porém, sempre clementes, tudo de uma só vez, como ricos, possuem-nas, virtude e alegria. tudo isto pode o homem imitar. pode um homem, quando a vida é puro esforço, olhar para o alto e dizer: assim quero eu ser também? sim. enquanto perdurar ainda no coração a amabilidade, a pura, não será infortunadamente que o homem se mede com a divindade. será deus desconhecido? será manifesto como o céu? - antes o creio. é do homem a medida. pleno de mérito, mas poeticamente, assim habita o homem nesta terra. mais pura porém não é a sombra da noite com as estrelas, se me é permitido dizê-lo, do que o homem, de quem se diz que é uma imagem da divindade. existirá na terra uma medida? nenhuma existe.

a vida é morte, e a morte é também uma vida.


f. holderlin - num ameno azul...


(tradução bruno c. duarte)

o homem que está apaixonado


o homem que está apaixonado encontra um búzio na margem. quando o leva ao ouvido, não ouve o mar, nem o vento, nem os anjos, mas só a sua própria voz cantando: amo-te. nunca ouvira nada tão belo.

na outra margem, todos os homens dormem. alguém caminha lentamente ao longo da praia, leva-os um a um ao ouvido, escuta. nalguns desses búzios humanos ouve cães a ladrar, noutros tigres rugir na imensidão ou então martelos a ressoar, e noutros ainda crescer o crescer das máquinas. mas num deles ouve ecoar o grito de um peixe. é o som que faz o homem que está apaixonado quando alguém o leva ao ouvido.

se os planetas pudessem amar, deixariam a sua órbita e provocariam o caos. a salvação do mundo deve-se ao facto de o amor ser impossível. o homem que está apaixonado adivinha, também ele sabe, que o amor é gémeo da morte. mas isso não o impede, a ele que é prisioneiro do seu destino, de entrar de rompante na cela do seu vizinho gritando de alegria: sou livre!


stig dagerman

(publicação póstuma 1955)



o que é do mar se os rios se recusam?

estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. de igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. a minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anónima chamada população mundial, sou também uma unidade autónoma.

só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. porque me hei-de eu lembrar dela? a vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. as suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. mas porque me hei-de eu pôr a contar? no fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.

na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. o encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. tudo se passa como se não houvesse tempo. que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? a felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.

assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. o salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? e o que é perfeito não desempenha tarefas. o que é perfeito labora em estado de repouso. é absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. que outra tarefa a do homem senão viver? faz máquinas? escreve livros? faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. não é isso que importa. importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. importa é saber-se um fim autónomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.

(…)

a humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine.

é impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. a vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.


stig dagerman - “a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”

(versão de paula castro e josé daniel ribeiro - adaptação: nc)

fado




sete lágrimas - triste vida vivyre