26/08/2011

jacques lusseyran - jeremy

a primeira figura com que me deparo, à minha frente, é um velho. e não podem imaginar o quão feliz isso me torna.

não sei se haverá graça maior do que encontrar uma pessoa verdadeiramente velha, ou seja, feliz. é uma dádiva rara visto que, para muitos, a idade acaba por não ser mais que a adição vazia e degradante de anos físicos. mas quando uma pessoa idosa é feliz, ela torna-se tão poderosa que nem precisa de falar: onde ela chega... cura! aquele que neste momento surge na minha memória é assim. chama-se jeremy regard.

não fui eu que lhe atribui este nome. ele pertence-lhe. quantos romancistas gostariam de o ter inventado?

na verdade, gostaria de usar de bastante modéstia ao descrevê-lo - pelo grande que ele era, parecendo, no entanto, tão insignificante. a passagem dele pela minha vida foi tão breve - apenas umas semanas - que já nem consigo lembrar-me do seu corpo. recordo vagamente um homem vigoroso, direito, compacto. sim, um homem pequeno, do ponto de vista da estatura física. não consigo ver-lhe a cara. acho que nunca me interroguei sobre ela, mesmo na época. via sempre uma outra que me parecia muito mais real.

conheci-o em janeiro de 1944, em plena guerra, na alemanha, quando me encontrava num campo de concentração, tinha então dezanove anos. ele era um dos seis mil franceses que foram chegando a buchenwald entre 22 e 26 de janeiro. mas não se assemelhava a nenhum deles.

tenho que me deter aqui, por instantes, porque acabei de escrever a palavra "buchenwald". vou escrevê-la com frequência. mas não esperem uma descrição dos horrores da deportação. eles foram reais e não são agradáveis de enunciar. para termos o direito de falar deles seria necessário sermos "xamãs" - e não apenas do corpo. contentar-me-ei, portanto, com o indispensável, o cenário geral.

referir-me-ei mesmo, por vezes, à deportação, duma forma que poderá soar escandalosa a alguns, ou seja, paradoxal: direi em que é que ela foi positiva, que riquezas ocultas continha.

este tema é recorrente na minha vida pela relevância que assumiu nela, constituindo-se como um sótão transbordante de dor e alegria, de perguntas e respostas.

o jeremy tanbém não falava de campos de concentração, mesmo quando se encontrava lá. não ficava com o olhar agarrado ao fumo que saía dos fornos crematórios nem aos mil e duzentos prisioneiros aterrorizados do bloco 57. ele olhava através disso. no início, não sabia quem ele era. falavam-me do "sócrates".

os meus vizinhos, que eram numerosos, pronunciavam este nome, perfeitamente inesperado, no meio do frio e do medo daquele formigueiro em que todos deambulávamos. "o sócrates disse...", "o sócrates riu-se...". o sócrates estava por ali, um pouco mais adiante, do outro lado desta pequena multidão de homens rapados. eu não entendia porque é que toda aquela gente chamava alguém sócrates. mas tinha vontade de o conhecer.

um dia, por fim, vi-o - quer dizer, devo tê-lo visto, posto que, para dizer a verdade, não guardo memória do nosso primeiro encontro.

só sei que esperava um interlocutor eloquente, de raciocínio brilhante, um metafísico sagaz, um qualquer filósofo de moral triunfante. mas não foi nada disso que encontrei.

ele era simplesmente um soldador duma pequena vila situada aos pés das montanhas de jura. tinha vindo parar a buchenwald por razões que tinham tão pouco a ver com o que de essencial guardo dele que nunca as conheci nem o interroguei sobre elas. o nome dele não era "sócrates", como já sabem, era jeremy, e nunca entendi porque é que este nome não bastava aos seus companheiros.

a história de jeremy era a de um soldador proveniente de uma zona específica do mundo, uma vila em frança. ele adorava referi-lo, entre sorrisos francos. relatava-o de forma simples, tal como qualquer comerciante falaria do seu negócio. e, aqui ou ali, podia discernir-se a prresença de uma segunda forja, uma forja do espírito.

sim, disse "espiritual". sei que esta palavra se foi deteriorando, por excesso de uso, mas tomem-na aqui como verdadeira e plena.

ouvi o jeremy contar que havia homens que vinham à sua loja não apenas pelos seus cavalos ou carruagens mas por eles próprios. vinham para regressarem "ferrados" e renovados, para levarem para casa um pouco da vida de que careciam e que encontravam, transbordante, irradiante e delicada na forja do "pai" jeremy.

naquela altura eu era estudante. praticamente nunca tinha tido contacto com homens assim, eles não são do estilo com que nos cruzamos nas universidades. eu pensava que quando um homem era sábio o explicitava, especificando como e porquê, em articulação com que escola de pensamento. eu pensava, acima de tudo, que para ser sábio havia que pensar, e pensar de forma bem rigorosa.

fiquei de boca aberta perante o jeremy, porque ele não pensava. ele contava histórias, quase sempre as mesmas, abanava os ombros, parecia fazer-nos sentir trespassados por seres invisíveis. tinha sempre o nariz em cima do óbvio, do imediato, do que estava à mão. se se referia à felicidade de um vizinho quando este saía da sua loja, era como se falasse de uma verruga ou de um caroço que tivesse sido removido. observava, com os seus olhos, as coisas do espírito, tal como os médicos observam os micróbios nos seus microscópios. não fazia distinções. e quanto mais eu o observava a fazer isto, menos sentia o peso do ar à minha volta.

fui encontrando pela vida seres surpreendentes, seres cujos gestos e palavras eram tão impactantes que, na sua presença, sentia necessidade de baixar os olhos. o jeremy não era assim, de todo! não estava ali para nos estimular.

não foi sequer a curiosidade que me impeliu para ele. eu precisava dele tal como um homem que está a morrer de sede necessita de água. como todas as coisas importantes, esta era básica, elementar.

ainda consigo ver o jeremy a circular pelas nossas casernas. formava-se um espaço entre nós. ele parava em qualquer lado e, imediatamente, os homens apertavam o círculo, deixando, no entanto, um pouco de espaço à sua volta. tratava-se de um movimento completamente instintivo que não pode ser justificado apenas pela noção de respeito. nós recuávamos mais como alguém que dá uns passos atrás para deixar espaço livre para quem trabalha.

notem que nós éramos mais de mil homens nestes barracões, dos quais pelo menos uns quatrocentos se encontravam muito desconfortáveis. lembrem-se de que estávamos todos profundamente e permanentemente amedrontados. não pensem em nós, naquela situação, como indivíduos, mas como uma massa protoplásmica. na verdade, estávamos colados uns aos outros. os únicos movimentos que fazíamos eram empurrar, agarrar, separar, torcer. donde, podem entender melhor o encanto (para não dizer o "milagre") desta pequena distância, do círculo de espaço que se mantinha em torno do jeremy.

ele não era ameaçador, não era austero, não era, sequer, eloquente. mas estava ali, e isso era tangível. sentia-se como uma mão no ombro, uma mão que inspira respeito, que nos traz a nós próprios quando sentimos que estamos prestes a desaparecer.

sempre que ele aparecia, o ar tornava-se respirável: eu levava com uma lufada de vida na cara. talvez isto não fosse um milagre mas era, pelo menos, um grande evento, do qual apenas ele era capaz. a passagem do jeremy pelo átrio das casernas era isso: uma respiração. na minha memória, consigo acompanhar, com nitidez, o trilho de luz e claridade que ele deixava por entre a multidão.

eu não entendia, na altura, quem ele era, mas conseguia, seguramente, vê-lo. e esta imagem começou a trabalhar, dentro de mim, até que se acendeu como um archote. eu não sabia quem ele era porque ele não dizia.

havia uma história a que ele voltava frequentemente, sobre a seita dos cientologistas cristãos a que ele tinha pertencido. ele tinha mesmo estado na américa uma vez, para conhecer os seus pares. esta aventura, bastante invulgar para um soldador de jura, intrigou-me mas não me esclareceu. trazia mais um véu de mistério à sua pessoa. e era tudo. o jeremy por si, sem histórias, era o que verdadeiramente me importava.

terei que me desculpar por usar tantas imagens associadas a actos simples como comer, respirar... quando me sentia tentado a fazê-lo o jeremy proibia-mo. ele sabia muito bem o quanto as ideias podiam impossibilitar a vida

ele era um verdadeiro trabalhador manual e sabia que em buchenwald não conseguiríamos sobreviver com base nas ideias que tínhamos de buchenwald. ele dizia isto; dizia, mesmo, que muitos de nós morreriam por causa delas. e não estava enganado.

eu sabia de muitos homens que tinham morrido porque tinham sido assassinados por outros. por esses, nada mais havia a fazer senão orar. mas conheci também muitos outros que morreram muito depressa, como moscas, por pensarem que se encontravam no inferno. era desses assuntos que o jeremy falava.

era necessário haver ali um homem com as qualidades de simplicidade e clareza de visão susceptíveis de o levarem às profundezas da realidade, por forma a permitir-lhe ver o fogo e para lá do fogo. era necessário mais que a simples esperança.
era necessário ver.

o jeremy via. havia um espectáculo perante os seus olhos, mas não era aquele a que nós assistíamos. não era o nosso buchenwald, o buchenwald das vítimas. não era uma prisão, ou seja, um lugar de fome, agressões, morte, revolta, em que outros homens, os maus, tinham cometido o crime de nos colocarem. para ele não havia nós, os inocentes, e o outro, o grande e anónimo Outro, com chicote e voz atormentadora - "o carrasco".

como é que eu sabia disto? - é legítimo que perguntem - visto o jeremy quase não se pronunciar sobre estas questões. sem sombra de dúvida, dir-vos-ei que existe em certos seres - como existia nele - uma qualidade de inteireza e rectidão tão apurada que a sua forma de olharem para as coisas se comunica por si, é-nos dada, ao menos por instantes. e nesse espaço, o silêncio é então mais verdadeiro, mas exacto que as palavras.

quando o jeremy vinha ter connosco ao bloco 57, no meio daquele pequeno halo de espaço, o que nos dava era claridade. era uma transbordância de visão, uma nova visão. e era por isso que todos nos aproximávamos dele.

mas sobretudo não fiquem com a ideia de que o jeremy nos consolava. no ponto a que já tínhamos chegado, qualquer consolação teria sido mera fantasia, uma escarnecedora e perversa história para adormecer crianças. não nos encontrávamos no país das maravilhas e se fôssemos suficientemente loucos ou incautos para acreditar nisso um segundo que fosse, o despertar subsequente teria sido deveras amargo.

o discurso do jeremy era duro. mas a sua expressão era delicada, sem volubilidade. tinha uma voz suave, gestos claros e incisivos, decorrentes da prática da sua arte, uma tranquilidade natural. era um "tipo porreiro", garanto-vos, não um profeta.

ele era tão pouco um profeta, gerava tão pouco alarido à sua volta que não sei quantos, da dúzia de homens que sobreviveram àqueles dias do inverno de 1944 na caserna 57, se lembrarão dele hoje em dia. gostaria de não ser o único a conservar esta memória.

não se notava nada de especial no jeremy, nenhum traço invulgar. não empunhava a bandeira de nenhum credo particular, excepto a referência ocasional à cientologia cristã. mas na época, para mim e para outros homens franceses que ali estavam, esta expressão assumia apenas um ressonância bizarra.

nós dirigíamo-nos ao jeremy como a uma nascente, nem nos perguntávamos porquê. não pensávamos nisso. naquele oceano de raiva e sofrimento existia aquela ilha: um homem que não gritava, que não pedia ajuda a ninguém, que se bastava a si próprio.

um homem que não sonhava: isso era, talvez, o mais importante de tudo. todos nós ali éramos sonhadores: sonhávamos com mulheres, filhos, casas, até mesmo com as misérias de outros tempos que tínhamos a fraqueza de classificar como "liberdade". não estávamos em buchenwald. não queríamos ter nada a ver com buchenwald. e cada vez que voltávamos, buchenwald estava ali, intacto, e doía.

o jeremy não se desiludia. para que havia de sonhar? quando o víamos chegar, com a sua imensa serenidade, tínhamos vontade de gritar, "fecha os olhos! - ver isto queima!" - mas o grito ficava nas nossas gargantas porque, comprovadamente, os seus olhos estavam solidamente fixados na nossa desgraça e não pestanejavam. ele não aparentava sequer a atitude de quem transporta consigo um grande fardo, um ar de herói. ele simplesmente não tinha medo, tão naturalmente quanto nós estávamos aterrorizados.

"para quem sabe ver, as coisas são sempre apenas como são", dizia ele. no início eu não entendia. chegava a sentir uma espécie de indignação. "o quê?! - buchenwald como a vida normal? - impossível!" aquele bando de homens dementes e hediondos, a sombra da ameaça da morte, inimigos por todo o lado, entre os ss, até mesmo entre os próprios prisioneiros, aquele pico de colina contra o céu, denso de fumo, com os seus sete círculos, mais adiante na floresta as vedações eléctricas, tudo isto "o habitual"!? lembro-me da minha incapacidade para aceitar a ideia. as coisas tinham que ser piores ou, senão, ao menos mais belas! até que o jeremy me permitiu ver.

não foi uma iluminação, uma encandeante revelação da verdade, não me parece que tenha havido sequer uma troca de palavras. mas um dia tornou-se-me óbvio, palpável na carne, que o soldador jeremy me tinha emprestado os seus olhos.

com esses olhos eu vi que buchenwald não era único, nem sequer privilegiado, por ser um dos lugares de maior sofrimento humano. vi também que o nosso campo não ficava na alemanha, como pensávamos, no coração de thuringe, dominando o planalto de iena, neste sítio específico e não outro. jeremy ensinou-me, com os seus olhos, que buchenwald estava em cada um de nós, cozido e recozido, acalentado incessantemente, alimentado duma forma horrenda. e que, portanto, podíamos vencê-lo, se o desejássemos com suficiente força e determinação.

"como sempre", explicava-se o jeremy por vezes. ele tinha visto constantemente pessoas a viverem amedrontadas e reféns do mais invencível de todos os medos: aquele que não tem objecto. tinha visto muitas delas a desejarem secretamente e acima de tudo uma coisa: fazerem mal a si próprias. era constante, estava sempre ali, o mesmo espectáculo. acontecia apenas que as condições se tinham, por fim, reunido de forma completa. a guerra, o nazismo, as loucuras da política e dos nacionalismos tinham criado uma obra-prima, uma patologia e uma tragédia perfeitas: o campo de concentração.

para nós, claro, esta era a primeira vez. o jeremy não sustentava a nossa surpresa. dizia que ela não era honesta e que nos fazia mal.

dizia que na vida comum, com olhos de ver, teríamos observado os mesmo horrores. e, mesmo assim, tínhamos logrado ser felizes antes. pois bem! - os nazis tinham-nos dado um terrível microscópio: o campo de concentração. mas isso não era razão para parar de viver.

o jeremy era um exemplo: ele encontrou alegria no seio do bloco 57. ele encontrou-a em momentos ao longo do dia em que nós só encontrávamos medo. e encontrou-a em tal abundância que, quando estava presente, ela acendia-se em nós. sensação inexplicável, incrível mesmo, no sítio onde nos encontrávamos: a alegria a preencher-nos. conseguem imaginar a dádiva que o jeremy nos fez?! não percebíamos mas agradeciamos-lhe, uma e outra vez, constantemente.

que tipo de alegria? aqui vão algumas toscas tentativas de explicação: a alegria de estar vivo neste momento, no seguinte, cada vez que nos tornávamos conscientes do facto. a alegria de sentir a vida dos outros, de alguns dos outros pelo menos, junto a nós, na escuridão da noite. o que é que eu sei, o que é que eu posso dizer mais? não vos chega?

era mais do que suficiente para nós. era uma absolvição, um bálsamo, uma moratória, assim, sem mais nem menos, a uns passos do inferno. eu fiquei a conhecer este estado de espírito através do jeremy. tal como aconteceu com outros, seguramente. a alegria de descobrir que a alegria existe, que está em nós, tal como a vida, sem condições, e que nenhuma condição, mesmo a pior, a pode matar.

tudo isto, dirão, proveio do jeremy porque ele era um homem lúcido. mas eu não disse que ele era lúcido - esta qualidade pertence à inteligência e o jeremy não se sentia em casa no mundo da inteligência. eu disse que ele via. falo-vos dele como uma oração viva.

pessoas mais exigentes poderão argumentar que a fé do jeremy era cega, inquebrantável, sem matizes. que importa! para ele, e para nós através dele, o mundo era salvo a cada segundo. esta benção não tinha fim. e, quando findava, era porque nós tínhamos parado de a ver, porque nós - e não ela - a tínhamos abandonado.

não se trata de grandes palavras. e se, ainda assim, ficarem com essa impressão, é pela minha inépcia para expressá-lo duma forma mais fiel

o jeremy era um homem comum, comum e sobrenatural, apenas isso.

era perfeitamente possível viver ao lado dele durante semanas a fio e nem dar por ele, vendo-o apenas como "um velhote um pouco diferente dos outros". ele não era espectacular como um herói nem chamava por ninguém como os vendedores ambulantes.

o que era sobrenatural nele claramente não lhe pertencia; existia para ser partilhado. o espectáculo, a existir, era para ser encontrado por nós e em nós próprios. tenho uma recordação muito clara de o ter encontrado. apercebi-me um dia, tal como outros, de um pequeno lugar em mim onde eu não tremia, onde não sentia vergonha, onde os agentes da morte eram apenas fantasmas, onde a vida não dependia da presença ou ausência do campo. e devo isso ao jeremy.

transporto este homem nas minhas memórias como se carrega uma imagem abençoada.

e então, como é que ele desapareceu? não faço ideia. seja como for, sem um som, tal como apareceu.

um dia, alguém me disse que ele tinha morrido. isto aconteceu várias semanas após a nossa chegada ao campo. era o que acontecia com os homens naquele sítio. quase nunca sabíamos como. desapareciam em grande número duma assentada: ninguém tinha tempo ou sentia vontade de se debruçar sobre os pormenores do "como" da sua morte. deixávamo-los fundirem-se com a massa dos desaparecidos. havia um fundo consistente de morte em que todos participávamos mais ou menos, nós, os que estávamos vivos. a morte dos outros era de tal forma um assunto nosso que não tínhamos coragem de a olhar de frente.

não me lembro do "como" da partida do jeremy. lembro-me apenas de ele ter vindo ver-me, alguns dias antes, e dizer-me que seria a última vez. sem, de todo, assumir o tom de quem anuncia uma triste ocorrência, sem solenidade. simplesmente - esta era a última vez e por assim ser, ele tinha vindo comunicar-mo.

não creio que me tenha provocado dor, não deve ter sido doloroso. de facto não foi, porque era real e conhecido. ele tinha sido útil. tinha o direito de deixar este mundo, que tinha vivido em pleno.

tenho a plena noção de que me perguntarão: "o que é que vês de tão sobrenatural no teu soldador?!" ele deu-te um exemplo de serenidade numa altura em que essa qualidade era muito difícil de manter. é bom, mas é tudo. a paz interior do jeremy era o resultado de coragem e de uma constituição sólida!".

pois... não concordo! - não faríamos justiça ao valor do jeremy por esta apreciação.

o que chamo "sobrenatural" nele é a capacidade para romper com hábitos de que se foi claramente apercebendo em si. esses hábitos de julgamento que nos fazem classificar qualquer adversidade como "má", ou "infeliz", ou os hábitos de ganância que nos fazem odiar, querer vingar-nos ou, simplesmente, reclamar - outra forma incontornável, mesmo que menor, do ódio. os hábitos do nosso anestesiante egocentrismo que nos faz supor inocentes cada vez que sofremos. ele tinha escapado dessa rede de reacções compulsivas em que todos nos debatemos e era este movimento tão essencial que a resistência ou a boa saúde por si sós não podiam explicar.

ele tinha tocado o mais fundo de si próprio e libertado o sobrenatural ou, se a palavra vos incomodar, o essencial, aquilo que não depende de circunstância alguma, que pode existir em qualquer tempo ou lugar, na dor e no prazer. tinha encontrado a própria fonte da vida. se usei o termo "sobrenatural" foi porque a atitude do jeremy consubstancia a natureza do próprio acto religioso: ali residia a descoberta de deus, em cada pessoa, no mesmo grau, a cada momento, comprovando que o regresso a Ele pode tornar-se uma realidade.

esta era a "boa nova" que o jeremy, à sua maneira, humilde, relatava.

todos ganharíamos imenso se pudéssemos pôr a nossa memória em quarantena, pelo menos a memória banal, mesquinha e atrofiante, que nos leva a acreditar nesta ficção, neste mito: o passado

é essa memória que, de forma súbita e irracional, nos traz uma pessoa ou uma cadeia de acontecimentos que depois se instalam em nós. a imagem inscreve-se no ecran da nossa consciência, espalha-se e, pouco depois, apodera-se de tudo, começa a não existir mais nada senão ela. o movimento mental pára. o presente dispersa-se. os momentos seguintes já não têm poder de nos motivar, deixam de ter qualquer sabor. resumidamente, esta memória segrega melancolia, remorso, todas as formas de tensão e contradição internas.

felizmente, existe a outra memória, aquela a que, para mim, pertence o jeremy.

confesso que este homem me persegue. mas não sob a forma de lembrança. ele entrou na minha carne, nutre-me, continua a operar dentro de mim, mantendo-me vivo. na verdade, passo muito pouco tempo a pensar nele, dir-se-ía que é ele que me pensa.

para vos falar dele tive que vos falar de buchenwald. mas não se confundam: o jeremy nunca esteve "em buchenwald". eu encontrei-o lá em carne e osso. ele tinha um número de identificação. havia mais pessoas, além de mim que o conheciam. mas ele não se encontrava lá daquela maneira particular, exclusiva, individual que a expressão "ter estado em buchenwald" sugere.

a aventura de estar naquele campo foi apenas isso para ele: uma aventura. não lhe dizia respeito, num sentido mais fundamental.

há pessoas de que me lembro deixando simplesmente a "pequena memória" funcionar em mim. e essas pessoas ficam aí, nesse canto do cérebro onde as encontro. mas quando o jeremy fala comigo, fá-lo não tanto a partir do meu passado mas das profundezas do meu presente - ali mesmo: do centro. não o posso deslocar.

no fundo, as pessoas que nos ensinaram alguma coisa são todas assim, porque esta "coisa", este "conhecimento", esta ampliação de presença na vida é-nos facilitada pela noção intrínseca que essas pessoas têm de que nada disso lhes pertence. imaginem o jeremy feliz tal como acontece a qualquer outro ser humano ser feliz: por razões pessoais, devido a uma história de vida diferente das outras, preciosa e especial. pensam que se assim fosse ele teria permanecido na minha vida até hoje?

ele ter-se-ía juntado a esse rol de personagens pitorescas de que todos guardamos memória, figurantes que vão passando no teatro da vida. mas o jeremy não era feliz: ele transbordava plenitude e alegria essenciais. o bem estar de que disfrutava não era dele, ou antes, era dele mas por participação, era tanto dele quanto nosso.

este é o mistério e o poder desses seres que servem algo mais que as suas efémeras e limitadas personalidades: não conseguimos escapar-lhes.


nota: jacques lusseyran ficou cego aos 8 anos fruto de um incidente com um colega de carteira na escola. todo o relato anterior - nomeadamente a referência constante à "visão" - é feito a partir dessa condição. dirigia um dos núcleos da resistência francesa em paris quando foi preso e deportado para buchenwald