23/10/2010

yoga e arte

peter brook – “não há segredos”

tradução, adaptação e acréscimos livres por nuno cabral, a partir de brook, peter – “there are no secrets – thoughts on acting and theater”, methuen, 1993

para que algo de qualidade aconteça, é fundamental que seja criado um espaço vazio. um espaço vazio torna possível o surgimento de um novo fenómeno, uma vez que o que quer que toque a noção de conteúdo, significado, expressão, língua e música (yoga) só pode existir se a experiência for nova e fresca. não há, porém, qualquer possibilidade de que esse tipo de experiência aconteça se não existir um espaço puro e virgem para a receber

vamos ao teatro (yoga) para encontrar vida, mas se não houver diferença entre a vida fora do teatro (yoga) e a vida dentro dele, então o teatro (yoga) não tem sentido. não há razão para o fazer. mas se aceitarmos que a vida no teatro (yoga) é mais visível, mais vívida que fora dele, então apercebemo-nos de que ela é simultaneamente a mesma coisa e algo diferente

a vida no teatro (yoga) é mais legível e intensa porque é mais concentrada. o acto de reduzir o espaço e comprimir o tempo cria um “concentrado”

no nosso trabalho usamos habitualmente um tapete como zona de ensaio, com um propósito bem definido: fora do tapete, o actor (praticante) está na sua vida diária, pode fazer o que quiser – desperdiçar a sua energia, envolver-se em movimentos que não expressam nada em particular, coçar a cabeça, adormecer… mas logo que ele se encontra sobre o tapete, fica sob a responsabilidade de ter uma intenção clara, de estar intensamente vivo, simplesmente porque há uma audiência a observá-lo (o professor ou, na prática individual, o “eu profundo” observa)

o que é que é necessário para passar do banal/comum ao único?

a vida diária consiste em ser “de qualquer maneira”. vamos ver três exemplos. se estivermos a ser submetidos a um exame, ou em conversa com um erudito, iremos provavelmente tentar não ser “de qualquer maneira” ao nível do pensamento e do discurso, mas, sem nos apercebermos, “de qualquer maneira” irá estar o nosso corpo, esquecido, ignorado ou deslocado. entretanto, se estivermos com uma pessoa aflita ou desesperada, não estaremos "“de qualquer maneira" nos nossos sentimentos, estaremos certamente amáveis e atentos, mas os nossos pensamentos poderão estar dispersos e confusos, tal como os nossos corpos. num terceiro caso, ao conduzirmos um carro, o corpo poderá estar a ser correctamente mobilizado na sua totalidade, mas a cabeça, entregue a si própria, pode divagar em pensamentos “de qualquer maneira”

para que as intenções de um actor sejam perfeitamente claras, com o intelecto desperto, sentimentos genuínos e um corpo equilibrado e sintonizado, os três elementos – pensamento, emoção e corpo – devem encontrar-se em perfeita harmonia. só então é que ele poderá estar à altura da exigência de ser mais intenso num curto espaço de tempo do que quando está simplesmente em casa ou numa situação banal do seu quotidiano

um corpo não treinado é como um instrumento musical desafinado – com a caixa de ressonância cheia de ruídos confusos, ásperos e inúteis, que impedem a audição da verdadeira melodia. quando o instrumento do actor (praticante) o seu corpo, é afinado por exercícios, os hábitos e tensões inúteis e desgastantes desaparecem. ele fica então apto para se abrir às possibilidades ilimitadas do vazio

mas há um preço a pagar: frente a este vazio desconhecido, surge, naturalmente, o medo (bem como frustração e por vezes tédio ou falta de motivação, como mecanismos de defesa). mesmo quando um actor (praticante) já tem uma longa experiência de representação (prática) cada vez que recomeça, logo que se encontra junto ao tapete, este medo – do vazio em si próprio, e do vazio no espaço – reaparece. a tendência imediata é a de tentar preenchê-lo de alguma maneira por forma a fugir ao medo, para ter algo a fazer ou dizer. é necessária uma real auto-confiança para ficar sentado quieto e permanecer em silêncio. uma enorme fatia das nossas excessivas e desnecessárias manifestações derivam do terror de que se não estivermos constantemente a demonstrar que existimos “sinalizando”, de facto deixamos mesmo de “ser”. este problema já se coloca com alguma gravidade no nosso dia a dia, repleto de pessoas nervosas, hiperactivas e excitadas que nos “encostam à parede”, mas no teatro (yoga) em que todas as energias devem convergir para o mesmo objectivo, o reconhecimento de que uma pessoa pode estar totalmente “ali”, aparentemente sem “fazer” nada, assume uma importância extrema. é fundamental para todos os actores (praticantes) o reconhecimento e identificação desses obstáculos, os quais, neste caso, são tão legítimos quanto naturais. se fôssemos perguntar a um bom actor (praticante) japonês sobre a sua prática, ele admitiria ter reconhecido e ultrapassado esta barreira. quando ele actua correctamente, o resultado deriva não de ter pré-construído um edifício mental mas de ter gerado um vazio livre de medo dentro de si

que elementos é que perturbam o espaço vazio? um deles é o excesso de racionalização. então porque é que insistimos em preparar as coisas? fazêmo-lo quase sempre para lutarmos contra o risco de sermos apanhados desprevenidos. só o rigor e a repetição no ensaio e na performance permitem demonstrar ao actor (praticante) que se não procurarmos a segurança, a verdadeira criatividade inunda o espaço em volta. tudo o que é convencional, tudo o que é medíocre, está associado a este medo

chegamos então ao âmago do problema. nada na vida existe sem forma: somos forçados, a cada instante, sobretudo ao falarmos, a procurarmos uma forma. mas devemos aperceber-nos de que esta forma pode ser o maior obstáculo à manifestação da vida, que é, por essência, sem forma. não podemos escapar a esta dificuldade e a batalha é permanente: a forma é necessária, porém não é tudo. no confronto com esta dificuldade, não vale a pena adoptar uma atitude purista e esperar que a forma perfeita caia dos céus, pois nesse caso nunca faríamos nada, o que seria uma atitude estúpida. voltamos então à questão da pureza e da impureza. a forma pura não nos cai dos céus. o “pôr em prática”, na forma, é sempre um compromisso que temos que aceitar dizendo simultaneamente a nós próprios: “é temporário, terá que ser renovado”. a questão que estamos aqui a abordar, a dinâmica a que se refere, são por definição infinitas, intermináveis

a qualidade encontra-se nos detalhes. a presença de um actor (praticante) aquilo que confere qualidade à sua escuta e aparência é algo de bastante misterioso mas não inteiramente, ou seja, não está totalmente para lá das suas capacidades conscientes e voluntárias. ele pode encontrar esta “presença” num determinado tipo de silêncio dentro de si próprio. aquilo que poderíamos chamar “teatro(yoga) sagrado”, o teatro (yoga) em que o invisível aparece, enraíza-se e tem origem neste silêncio, do qual todo o tipo de gestos conhecidos e desconhecidos podem surgir. pelo grau de sensibilidade no movimento, um esquimó é capaz de dizer imediatamente se o gesto de um indiano ou de um africano é de boas vindas ou de agressividade. qualquer que seja o código, um significado pode preencher a forma e a compreensão será imediata. o teatro (yoga) é sempre, em simultâneo, uma busca de significado e de tornar este significado assimilável aos outros. e aqui reside o mistério

o reconhecimento do mistério é essencial. quando o ser humano perde o sentido de reverência, temor e espanto, a vida perde o significado e não é por acaso que nas suas origens o teatro (yoga) era um “mistério”. no entanto, a arte do teatro (yoga) como processo prático não pode permanecer um mistério. se a mão que segura o martelo for imprecisa no seu movimento, irá bater no dedo e não no prego. a função antiga do teatro (yoga) deve ser sempre respeitada, mas não com o tipo de respeito que nos põe a dormir. há sempre uma escada para subir, conduzindo-nos de um nível de qualidade a outro. mas onde é que encontramos a escada? os seus degraus são detalhes, os mais pequenos detalhes, momento a momento. os pormenores são a arte que conduz ao coração do mistério

(“deus está nos pormenores”)

relativamente ao “teatro (yoga) sagrado” essencialmente há que reconhecer que há um mundo invisível que necessitamos de tornar visível. há vários níveis no “invisível”. nos séculos XX/XXI já estamos mais que a par do nível psicológico, esta área obscura situada entre o que é expresso e o que é ocultado. praticamente todo o teatro (yoga) contemporâneo reconhece esse grande sub-mundo freudiano, por trás dos gestos ou das palavras, onde pode ser encontrado o ego, o super ego e o inconsciente. este nível de invisibilidade psicológica não tem nada a ver com o teatro (yoga) sagrado. “teatro (yoga) sagrado” implica que haja algo mais implicado, por baixo, por cima, à volta, uma outra zona ainda mais invisível, para lá mesmo das formas que somos capazes de ler ou registar, que contém poderosas fontes de energia. nesses pouco conhecidos campos de energia existem impulsos que nos guiam no sentido da “qualidade”. Todos os impulsos humanos dirigidos ao que, de uma forma imprecisa e tosca chamamos “qualidade” provêm de uma fonte cuja natureza essencial desconhecemos inteiramente mas que somos perfeitamente capazes de reconhecer quando aparece em nós próprios ou em outra pessoa. não é comunicada através do ruído mas através do silêncio. uma vez que temos que usar palavras, chamamos-lhe “sagrado”. a única questão verdadeiramente importante é, então, a seguinte: “o sagrado é uma forma?”. o declínio, a decadência das religiões deriva do facto de se dar uma confusão entre uma corrente, uma luz, nenhuma das quais tem forma, com cerimónias, rituais e dogmas, os quais, como formas que são, perdem rapidamente o seu significado. certas formas que foram perfeitamente adequadas para determinadas pessoas durante uns anos ou mesmo para a totalidade de uma sociedade durante todo um século são ainda praticadas entre nós e defendidas com”respeito”. mas de que “respeito” falamos aqui?

pela observação dos últimos milhares de anos podemos constatar que nada é mais terrível que cultivar a idolatria, porque um ídolo é apenas um pedaço de madeira. ou o sagrado é omnipresente ou não existe. é ridículo pensar que o sagrado está no alto da montanha e não existe no vale, ou ao domingo e não nos outros dias da semana.
o problema é que o invisível não é obrigado a tornar-se visível. embora o invisível não seja compelido a manifestar-se, pode ao mesmo tempo fazê-lo em qualquer sítio, a qualquer momento, através de qualquer pessoa, reunidas as condições adequadas. não me parece que faça qualquer sentido reproduzir os rituais sagrados do passado, como forma de sermos conduzidos ao invisível na actualidade. a única coisa que nos pode ajudar é a consciência do presente. se o momento presente for acolhido de uma forma particularmente intensa e se as condições forem favoráveis, um “sphota”, essa insondável e fugidia centelha de vida, pode surgir no seio do som, gesto, aparência, ou interacção correctos. em mil e uma formas inesperadas e improváveis o invisível pode manifestar-se. a busca do sagrado é, assim, uma jornada

o sagrado consiste numa transformação, em termos de qualidade, daquilo que originalmente não possui esse traço. o teatro (yoga) é baseado em relações entre e intra seres humanos que, por o serem, são por definição não sagrados. a vida de um ser humano é o visível através do qual o invisível pode aparecer

(porque é que o acto de escrever um poema, ou de assistir a uma peça de teatro ou de ouvir uma canção num momento de profunda crise emocional pode ser tão libertador e balsâmico: permite-nos regressar a uma dimensão intemporal colectiva sagrada em que a nossa dor em vez de nos apartar e fazer sentir isolados nos reconduz à sensação de unidade com a própria condição humana. o mesmo para a alegria ou para o êxtase que quando intimamente partilhados através da celebração pelo acto criativo - ou pela contemplação deste em outrem - simultaneamente se sacralizam e universalizam)

a grande e eterna questão que nos continuamos a colocar é: “como viver?” mas as grandes questões permanecem ilusórias e teóricas se não tiverem uma base concreta para aplicação no terreno. o que é fascinante é que o teatro (yoga) é precisamente o ponto de encontro entre as grandes questões da humanidade – vida, morte – e a dimensão do artesanato, que é muito prática, como na olaria. nas sociedades tradicionais, o oleiro é alguém que procura lidar com as eternas grandes questões ao mesmo tempo que modela a sua obra. esta dupla dimensão é igualmente possível no teatro (yoga): na verdade, é o que lhe dá todo o seu valor

“teatro” (yoga) é uma palavra simultaneamente tão vaga e vasta que a sua evocação ou perde o sentido ou cria confusão porque cada pessoa pode-se-lhe referir em sentidos completamente diferentes. é como falar da “vida”. a palavra é demasiado grande para transportar significado operacional. o teatro (yoga) não tem que ver com construções, textos, actores, estilos ou formas. a essência do teatro (yoga) encontra-se num mistério chamado “o momento presente”

o “momento presente” é espantoso. como o fragmento extraído de um holograma, a sua transparência é enganadora. quando quebramos este átomo de tempo, encontramos a totalidade do universo na sua infinita pequenez

aqui, neste momento, à superfície, nada de especial está a acontecer, eu estou a falar, vocês escutam. mas será esta imagem superficial um reflexo genuíno da nossa realidade presente? claro que não. nenhum de nós sacudiu de repente todo o edifício vivo que cada um é: mesmo que momentâneamente adormecidas, as nossas preocupações, relações, comédias menores assim como profundas tragédias estão todas presentes, como actores aguardando nos bastidores. não só estão aqui as personagens dos nossos dramas pessoais como à semelhança do coro das óperas, multidões de figurantes encontram-se também aptos para entrar a qualquer momento, ligando a nossa história pessoal com o mundo exterior, com a sociedade no seu todo. e dentro de nós, a todo o momento, como num instrumento musical gigante pronto a ser tocado, temos cordas cujos tons, consonâncias e dissonâncias constituem a nossa capacidade para responder às vibrações do mundo espiritual invisível que frequentemente ignoramos mas com quem renovamos o contacto a cada simples respiração

se fosse possível libertar subitamente para o espaço, para a “arena” desta sala, todas as nossas imagens e dinâmicas internas, tal assemelhar-se-ía a uma explosão nuclear, e o turbilhão caótico de impressões seria demasiado poderoso para poder ser absorvido por qualquer de nós. por aqui podemos constatar como um acto de teatro (yoga) acontecendo no verdadeiro presente pode, por esse facto, libertar potenciais colectivos ocultos de pensamento, imagem, sentimento, mito e trauma tão poderosos que podem tornar-se perigosos

“mas os mundos também contemplam a vossa forma temível e poderosa, com muitas bocas e olhos, com muitos ventres, coxas e pés, ameaçadora com dentes terríveis: eles tremem de medo e também eu tremo!

quando observo a tua forma imensa, atingindo o céu, incendiada numa miríade de cores, com bocas escancaradas, olhos enormes e flamejantes, o meu coração vacila de horror: o meu poder foi-se, tal como a minha paz, ó vishnu!

como o grande fogo no fim do tempo, que tudo consome no último dia, assim vejo as vossas vastas bocas e temíveis dentes. onde é que eu estou? onde é que está o meu abrigo? tem piedade de mim, deus dos deuses, refúgio supremo do mundo!”

(“bhagavad gita”)

importa investigarmos com mais cuidado o que queremos significar com o termo “momento”. se pudéssemos penetrar até ao âmago de um “momento”, descobriríamos que ele não contém movimento, consistindo no todo de todos os momentos possíveis e que aquilo que habitualmente designamos como tempo teria desaparecido. mas logo que prosseguimos nos afazeres da nossa vida corrente, “cá fora”, constatamos que cada momento no tempo está relacionado com o que o precedeu e com o que se lhe sucede, numa cadeia interminável. desta forma, numa peça de teatro (sessão de yoga) confrontamo-nos com uma lei inelutável: uma peça (sessão de yoga) é um fluxo, que tem uma linha ascendente e uma queda. para que um momento de profundo significado seja atingido, necessitamos de uma cadeia de instantes que começam num nível simples, natural, conduzem-nos a uma determinada intensidade e nos trazem de regresso. o tempo, que é tantas vezes inimigo da vida, pode tornar-se nosso aliado, se constatarmos como um momento simples pode dar origem a um momento crescente, que nos conduz a um momento de perfeita transparência, antes da queda e regresso a um momento de simplicidade quotidiana

podemos seguir melhor este raciocínio se pensarmos num pescador que constrói a sua rede. à medida que ele vai trabalhando, cuidado e significado estão presentes em cada volta e toque dos seus dedos. ele pega no fio, vai formando os nós, envolvendo o vazio com formas cujos contornos exactos correspondem a funções precisas. mais tarde, a rede é lançada à água, é puxada em várias direcções contra e a favor da maré, em muitos padrões complexos e aleatórios. um peixe é apanhado! um peixe não comestível, ou um peixe vulgar, bom para grelhar, talvez um peixe multicolor, ou um peixe raro, ou venenoso, ou, num momento de graça, um peixe dourado. há no entanto, uma diferença subtil mas fundamental entre o teatro (yoga) e a pesca, que deve ser sublinhada. no caso da rede bem construída, fica ainda assim a dever-se à sorte ou acaso se o pescador apanha um peixe bom ou mau. no teatro (yoga), os que “dão os nós” têm uma influência directa na qualidade do momento que é captado na sua rede sendo portanto responsáveis por ele. é espantoso! o “pescador” pela forma como faz os nós influencia a qualidade do peixe que cai na sua rede!

o primeiro passo é fundamental e muito mais difícil do que parece. surpreendentemente, esta etapa preliminar não recebe o devido reconhecimento

uma plateia (grupo de alunos) pode estar sentada à espera do início duma peça (sessão de yoga) empenhada, interessada, expectante, persuadida de que tem que demonstrar interesse. ela só ficará irresistivelmente interessada se as primeiras palavras, sons e acções da peça (sessão) libertarem bem do fundo de cada espectador (praticante) um primeiro murmúrio relativo aos conteúdos ocultos que irão gradualmente emergir

de onde é que vem o peixe dourado? não sabemos. algures, podemos imaginar, desse oceano colectivo inconsciente mítico cujos limites nunca foram descobertos. e onde é que estamos nós, as pessoas comuns na audiência (na sala de yoga). nós estamos onde estamos quando entramos na sala de espectáculos (sala de yoga), em nós próprios, na nossa vida habitual. desta forma, a construção da rede consiste na criação de uma ponte entre nós e aquilo que habitualmente somos, nas nossa condições normais, transportando o nosso universo quotidiano connosco e um mundo invisível que só se nos pode revelar quando a habitual inadequação perceptiva é substituída por uma mais aguda qualidade de consciência. a rede é feita de de buracos ou nós? esta questão é como um “koan” e para fazermos teatro (yoga) temos que viver com ela sempre

nada na história do teatro expressa tão completamente este paradoxo como as estruturas que encontramos em shakespeare. na essência, o seu teatro é religioso, trazendo o o mundo espiritual invisível ao mundo concreto visível e reconhecível das formas e acções. shakespeare não faz concessões a nenhum dos extremos da escala da natureza humana. o seu teatro não vulgariza o espiritual para o tornar de mais fácil assimilação ao homem comum, nem rejeita a sujidade, a fealdade, a violência, o absurdo e o cómico da condição humana básica. ele flutua sem esforço entre ambos, momento a momento, ao mesmo tempo que num golpe certeiro vai intensificando a experiência em crescendo até que toda a resistência explode e a audiência é desperta para um rasgo de profunda consciência e visão clara sobre a essência da realidade. este momento não se pode perpetuar. a verdade não pode ser definida, nem agarrada, mas o teatro (yoga) é uma máquina que permite a todos os seus participantes saboreá-la no seio de um momento: o teatro (yoga) é uma máquina que nos permite subir e descer os degraus do significado, numa “autêntica experiência de estar vivo “ (joseph campbell)

aqui confrontamo-nos com a verdadeira dificuldade. captar um momento de verdade exige a totalidade dos melhores esforços do actor, encenador e cenógrafo (professor e aluno); ninguém pode fazê-lo sozinho. numa peça (sessão de yoga) não pode haver estéticas ou objectivos em conflito. todas as técnicas artísticas e de construção têm que servir aquilo que o poeta inglês ted hughes chama uma “negociação” entre o nosso nível comum e o plano oculto do mito. esta negociação traduz-se pela articulação do imutável com o mutável do dia a dia, que é precisamente onde a performance (prática de yoga) acontece. na verdade, estamos em contacto com este mundo a cada segundo das nossas vidas, quando a informação registada nas células dos nossos cérebros no passado é reactivada no presente. o “outro mundo”, embora sempre presente permanece invisível porque os nossos sentidos não permitem ter-lhe acesso, mas pode ser apreendido em muitas ocasiões e formas, pela nossa intuição. todas as práticas espirituais se orientam no sentido de nos conduzirem ao “oculto”, a este “mundo invisível”, pela retirada ou desidentificação do mundo das impressões tangíveis e o mergulho na quietude e no silêncio. o teatro (yoga) porém, não é uma disciplina espiritual. o teatro (yoga) é um aliado exterior da via espiritual e existe para proporcionar vislumbres, inevitavelmente de curta duração, de um mundo invisível que impregna a vida quotidiana mas é normalmente ignorado pelos sentidos e pela consciência psíquica comuns

um grande ritual, um mito fundamental, são uma porta, uma porta que não pode ser apenas observada mas vivida, e aquele que consegue ter a experiência dessa porta dentro de si próprio atravessa-a mais intensa e profundamente. neste sentido, o passado não deve ser ignorado de uma forma arrogante. mas, ao mesmo tempo, há que não ser desonesto. se “roubarmos” os rituais e os seus símbolos e tentarmos explorá-los para os nossos próprios e exclusivos fins, não é de admirar que eles percam a sua qualidade e poder, transformando-se em meros objectos decorativos cintilantes e ocos. o desafio do discernimento e da discriminação é constante. em certos casos, um formato tradicional ainda conserva a sua vitalidade; noutros, ele é precisamente o laço mortífero que estrangula a experiência vital. o ponto importante é conseguir rejeitar a “via habitual” sem contudo procurar a mudança pela mudança.
a questão central, então, está na forma, a forma precisa, a forma adequada. não podemos passar sem ela, a vida não pode prescindir dela. mas o que é que significa “forma”? dê eu as voltas que der a esta questão sou sempre reconduzido ao “sphota”, uma palavra originária da filosofia clássica hindu, cujo significado deriva da sua sonoridade – uma ondinha que aparece de repente à superfície na quietude das águas, uma nuvem que surge no céu limpo. uma forma é o virtual que se torna manifesto, o espírito que ganha corpo, o primeiro som, o big bang