12/02/2017

o olho divino



(...) Em face do seu ponto cego ou do olho câmara, o protagonista foi caçado, ou deixou-se caçar. A busca chegou ao seu termo, e o buscante encontrou o buscado que descobriu buscar-se a si mesmo.

Ora, se o vivo é a presa (e se, ao vermos Filme, sentimos que estar vivo é, até certo ponto, sentir-se preso ou perseguido), então a morte em nós é o animal que vence a luta pela vida. É o animal que, não morrendo, nos mata.

Chamo fera ancestral ao animal que nos persegue imemorialmente e que tem sido figurado, desde a pré-história, aparentando-se com o humano e simbolizando aquilo que literalmente nos ultrapassa ou trespassa. A fera representa, no ser humano, aquilo que o excede. E é essa excedência que o homem procura dominar, não menos imemorialmente, a começar pelos rituais de sacrifício. Com o sacrifício - e, sobretudo, com os sacrifícios inseparáveis dos rituais funerários - o homem tenta abater aquilo mesmo que o mata.

Mas Beckett suspende a acção no confronto final - sem que ninguém desfira o golpe mortal: Filme termina quando o baloiçar da cadeira se extingue. Com esta suspensão, Beckett mostra-nos o homem abandonado a si mesmo, convidando-o a renunciar à sua imemorial vontade predadora. Beckett mostra-nos que o destino moderno alterou definitivamente a posição do homem face ao sentido (ou à ausência de sentido) da sua própria vida, obrigando-o a abandonar a sua condição de "caçador de Deus" para assumir a de "presa" (de si mesmo). Tais são os termos exactos de Nietzche quando, num dos seus Ditirambos Dionisíacos, apostrofa uma vez mais Zaratustra:

Ó Zaratustra,
crudelíssimo Nimrod!
Há pouco ainda, caçador de Deus,
rede de agarrar toda a Virtude,
seta do Mal!
Agora -
por ti mesmo perseguido,
presa de ti mesmo,
em ti mesmo afuroado...

Zaratustra, ao deixar de ser identificado com o bíblico guerreiro Nimrod - o "poderoso caçador" que está "diante da face do Senhor" (Gn 10,9) -, deixa de ser identificado com todos os caçadores da história (e da pré-história). Zaratustra - "o sem-deus..." - senta cada ser humano enfim a sós consigo mesmo ou diante de si mesmo. O protagonista de Filme, neste sentido, representa uma espécie de Zaratustra semicego e consciente da cegueira do seu saber (ou da sua ciência).

A presa descobre-se caçada por si mesma - e não há provavelmente versos que melhor definam o destino do homem moderno (claramente denotado com o advérbio "agora"):

Agora -
solitário contigo,
em diálogo com a própria ciência,
entre cem espelhos
falso ante ti mesmo, entre cem lembranças
incerto,
cansado a toda a ferida,
frio a todo o gelo, esganado nos teus próprios baraços
Conhecedor de ti mesmo!
Carrasco de ti mesmo!

(...)

Agora -
entre dois nadas
enroscado,
um ponto de interrogação,
um enigma estafado -
um enigma para aves de rapina...

(Nietzche "Entre Aves de Rapina")

Mas o que o destino moderno põe assim a descoberto é um saber arcaico que não mais pode ser iludido. Um saber de terror feito que é a memória da presa em nós: a memória que se confunde com a própria emergência da espécie humana. Talvez seja necessário precisar que o homem viveu na qualidade de caçador-recolector durante 2 990 000 anos (!), ou seja, durante mais de 99% do tempo de toda a história humana, incluindo o do surgimento da espécie. Se a hominização fosse narrada num filme com a duração de 100 minutos, o homem deixaria de ser caçador apenas nos derradeiros segundos (uma vez que o hominídeo existe há cerca de três milhões de anos)...

O medo da presa - um medo escancarado em todos os olhares de Filme - é o nosso medo ancestral: medo do homem em ser devorado pelo seu próprio vazio. Mas medo também, paradoxalmente, sem o qual não seríamos humanos: seres abertos para a criação e para a auto-destruição, seres dispostos a amar e a matar.

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A selvajaria está em nós. Já o deveríamos saber pelo curso que a história (a pré-história) do Mal encetou até nós.

(A fera - a fera pronta a saltar na selva - é indissociavelmente o ser que nos mata e o ser que nos ama: eis o meu princípio de leitura da extraordinária novela de Henry James, "The Beast in the Jungle")

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Matar (um pouco) a morte - ser imortal - esteve na origem das primeiras imagens. Mas a imagem não mata, como nos ensina o mito de Perseu. A imagem inclui o olhar de presa do seu próprio criador, inclui a provação de uma morte iminente e de uma ressureição imaginária. O homem procura ver a sua morte e ver a sua angústia: procura contemplar-se, como Perseu, num espelho abissal. Se é indubitável que a imagem mantém um vínculo com a caça, convém insistir que o criador volta então a ser um caçado - e que é por isso que a fera ancestral (numa ambiguidade já presente na Medusa) oscila entre a beleza fascinante e o horror da morte.

Jamais suprimiremos aquilo a que Bataille chamava, no léxico do seu comentário sobre Hegel, "o ser natural do homem": "Se o animal que constitui o ser natural do homem não morresse, mais ainda: se ele não tivesse a morte em si como a fonte da sua angústia [Bataille emprega portanto o mesmo termo de Beckett - e de muitos outros...], tanto mais forte que ele a procura, a deseja e por vezes a ela se entrega voluntariamente, não haveria nem homem, nem liberdade, nem história, nem indivíduo."

O "ser natural do homem" é a presa em nós aceitar ser presa, aceitar que, até certo ponto, se está preso, talvez seja esse o princípio paradoxal da libertação humana. Em contrapartida, querer vencer ou capturar a fera - querer ser ontologicamente imune - , eis o princípio do Mal. É diante da iminência do Mal, como diante da possibilidade do Bem, que Beckett nos deixa suspensos. Face ao olho de Filme, que se fechará definitivamente.

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Afrontar com a câmara aquilo que não morre e que nos mata implica dar forma ao olho divino. Talvez tenha sido isso que Beckett sugeriu quando acabou por definir a câmara com a expressão the savage eye - ou, de acordo com a sua própria tradução francesa: l'oeil fauve ("o olho selvagem").

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"O olho selvagem" é o olho divino que a câmara objectiva e que o projector nos devolve. A fera - o animal jamais domesticado (humanizado) - é a mais arcaica figuração do divino.




extraído de:

Tomás Maia

O OLHO DIVINO - Beckett e o Cinema

Sistema Solar (Documenta) 2016