21/05/2013

satya 2




herzog: marc anthony, do you see a whole universe in this one single drop of water?

marc: i cannot hear what you say for the thunder of what you are


werner herzog - short dialoge from the documentary "the white diamond"

12/05/2013

marguerite yourcenar - sadhana 3



excertos do caderno de notas: "meditações num jardim"

(surgem na forma de exortação - o "outro", a quem se dirigem, assume o lugar de "alter-ego" da autora)
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aconselho-te a orar todas as manhãs ao despertares, e à tua maneira

dessa forma, sairás mais facilmente do sonho, se te for necessário

as minhas orações variam

acontece-me por vezes repetir a frase admirável do salmo: "este dia é um dia que o senhor fez"

pode também ser bom orar pelas criaturas que morreram ou sofreram enquanto dormias

quanto às "boas intenções", desconfia desses pavimentos escorregadios

coloca-te, antes, num estado em que não te sejam necessárias boas intenções
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fora destas ("boas intenções") considerar a simples reafirmação de propósitos, a recitação, por exemplo, dum sutra budista que tenhas adaptado à tua medida e para teu uso: "por muitas que sejam as minhas más inclinações vou combatê-las; por muito difícil que seja o estudo vou dedicar-me a ele; por muito inacessível que seja a sabedoria vou tentar atingi-la; por inumeráveis que sejam as criaturas no universo vou trabalhar para as salvar"

repete por vezes, ao longo do dia, separadamente, quando a ocasião surgir, uma ou outra destas afirmações

mas não recites nada mecanicamente, de pernas cruzadas no teu tapete

nem sempre és digna de formular tais afirmações, não ganhas nada em fazê-lo caso elas provenham da fadiga, da distracção ou apenas da superfície dos lábios

que elas se encontrem sempre, porém, impressas em ti
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disciplina do despertar

é belo sair do sono tal como saímos dum banho e realizarmos desde logo exercícios de maleabilização

que estes não degenerem, porém, numa exibição de rígida disciplina ou numa rigorosa domesticação de ti própria: se estiveres demasiado cansada para te pores de cabeça para baixo, renuncia à ideia - o teu corpo sabe melhor que tu o que lhe convém

em caso de doença ou fadiga extrema, algumas escolas recomendam a execução mental de exercícios físicos, com resultados notáveis

não julgues, porém, que estes exercícios mentais sejam isentos de esforço
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as pretensões dos yogins são extravagantes

mesmo que não o fossem, não te diriam respeito, de qualquer das formas: não te cabe esperar que "siddhis" sejam alcançados por via dos teus modestos esforços de principiante

não obstante, eles têm razão quando afirmam que qualquer indivíduo que se submeta, ainda que brevemente e com frágeis resultados, àqueles métodos físicos e mentais, será profundamente transformado por eles, pela descoberta da possibilidade de um equilíbrio mais seguro, pela tomada de consciência de forças para lá de si próprio

se se revela suficiente para chegar a este nível tão modesto, mas definitivamente adquirido, dedicar todas as manhãs alguns minutos à prática de exercícios psíquicos durante alguns anos, onde não poderá chegar aquele que lhes consagre uma boa parte da sua vida?

o yoga assemelha-se ao piano, onde não fazes mais que ir descodificando timidamente uma página de bach e, mesmo essa, numa versão simplificada, o que é já, aliás, uma grande conquista

sem tão pouco pretender com isto negar a existência de virtuosos
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no teu caso, e contrariando opiniões mais autorizadas, sugerir-te-ía que desconfiasses dos gurus

primeiro porque existem poucos e aqueles que se encontram acessíveis são, de nove em dez, charlatões ou medíocres

com excepção de que o acaso da vida te proporcione encontrar um mestre admirável, trabalha só

fazes as tuas orações sozinha, donde, podes também exercitar-te a sós

nestas práticas que ultrapassam a inteligência, tal como a inteligência é vulgarmente entendida, ela própria permanece, porém, o teu agente de controlo

não esqueças que um professor é também um espectador e que facilmente um desejo de performance e elementos de vaidade entram em jogo

mantém presente igualmente a noção do antagonismo quase inevitável entre mestre e discípulo

caso o teu mestre seja um oriental, pensa também na possibilidade de mal entendidos raciais e culturais, por muito boa vontade que adivinhemos, de parte a parte, no sentido de os contornar

na leitura dos textos e no estudo, a própria reflexão tem poder de afastar estes equívocos, os quais, frequentemente, no contacto directo, facilmente te podem trazer distracções irritantes

evita também a fácil - ainda que ligeira - ponta de exotismo que se pode insinuar em tudo isto

poupa-te, por fim, à desilusão face à prática ou ao estudo que te pode derivar do facto de ouvires um swami da moda que não está mais próximo de patanjali que um qualquer capucho estaria de francisco de assis, a tentar explicar de forma rudimentar os textos em causa, reduzindo-os a receitas infalíveis e obtusas, ou a debitar alguns lugares comuns que supõe adaptados à tua mentalidade "europeia" e "moderna"

à falta de melhor, cultiva-te a sós, tal como, na falta de um bom jardineiro, podes cuidar a sós do teu jardim
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praticar não significa imitar, dia após dia, flexão a flexão, posições sagradas que não tenham sentido para ti, nem recitar mantras impronunciáveis sem ressonância no mais profundo de ti próprio

tentar, no entanto, por uma vez praticá-los, por uma vez dizê-los, revelou-te músculos que não tinhas consciência de possuir, abriu-te portas
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qualquer exercício executado de forma puramente mecânica é destrutivo, mesmo que, inicialmente, os resultados possam parecer brilhantes
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sadhana constante, escuta perene

no jardim, as clematites, frágeis em petite plaisance, crescem vigorosamente pelo muro de pedra

saindo pela pequena porta junto ao portão da lua, saúdo o buda de bronze que ali se encontra

este toca a terra com uma das mãos e repousa a outra no seu manto monacal

desde que vim morar aqui fui mudando a minha forma ritual de lidar com ele: inicialmente colocava-lhe na mão uma pequena moeda de cobre, um pouco como a miúda que vi uma vez atirar uma moeda à fonte, e como eu própria fiz, em águas puras, em roma, inglaterra ou thingvellir na islândia

depois, por desagrado com a ideia da moeda, comecei a colocar uma flor ou uma folha, não colhida por mim (igual relutância em fazê-lo) mas apanhada de entre as que encontrava caídas na terra

hoje não havia nenhuma

não esquecer porém que somos simultaneamente aquele que oferece, a oferenda e aquele a quem tudo é oferecido

- e porque não mencionar aqui, tendo-me embrenhado um pouco mais profundamente no bosque, a satisfação de urinar? - o meu corpo sábio liberta-me deste líquido supérfluo, que escorre, tépido, por cima das agulhas de pinheiro, espécie de oferenda à terra à qual pertencerei um dia

... noção do quanto estes jardins tão belos, estas estátuas sentadas ou erguidas sob enormes árvores, saem dos poços de petróleo da família rockefeller, são o fruto duma concorrência selvagem; o quanto esta paz é produto do delírio de locomoção que contamina a terra

porém este canto de riqueza espiritualizou-se em parte, como a dos médicis ou a dos farnèse, convertida em mármore e manuscritos antigos

há que saber aceitar este pouco de bem que nasce do mal

seja como for, tentei descrever aqui esta manhã sem sombra

nirvana é samsara
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epílogo

esta tarde, sentada na varanda onde se tinha deitado sobre uma chaise-longue, quase escondida debaixo de um cobertor e tremendo de febre ouvi-a murmurar distintamente a palavra: "epílogo"

porquê epílogo? - perguntei, no tom mais brando e confluente possível com o dela

não sei. há a palavra prólogo. há a palavra epílogo

e foi tudo - voltou a caír no mesmo estado de semi-sonolência



trad. e adap. - nc