07/02/2011

yoga tântrico de cachemira






(inspirado em baret, eric – “le yoga tantrique du cachemire”; tradução, adaptação e acréscimos livres por nc)

yoga – harmonização do organismo com as correntes profundas da existência

no sentido clássico, o yoga é a arte de morrer para si mesmo

sacrifício: oferecer o que não somos àquilo que somos realmente

“yoga é a arte de parar”

miguel fraile

a arte do yoga, na tradição shivaíta de cachemira consiste na arte de escutar. escutar as diferentes modificações psico-sensoriais no corpo nas diversas situações da vida quotidiana

da leitura de um livro não deve ficar mais que um “perfume” que podemos encontrar a cada actualização no momento. o objectivo último do livro/informação espiritual é a sua total dissolução

as referências “objectivas” do estudante foram estimuladas durante toda a sua vida: ele vê-se a si próprio desta ou daquela forma, a partir desta ou daquela referência, situa-se num “devir”, utiliza artifícios mentais como compensação de uma ausência profunda

na prática do yoga ele vai dar consigo numa situação, ou, mais precisamente, numa “não-situação” onde nada é estimulado. para tudo o que ele pretenda agarrar, irá sentir o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. cada vez que ele tentar compreender, a relatividade e a limitação do entendimento mental ser-lhe-á sugerida. em cada um dos seus esforços ele irá sentir duma forma cada vez mais clara que jamais a actividade pode conduzir à não-actividade. toda esta rede de segurança que o envolvia tende a desestruturar-se até ao ponto em que a motivação, o ardor de querer dar um passo em frente vai dissolver-se, não por vontade ou esforço mas como resultado de uma visão clara

estar aberto sem objectivar nenhuma direcção. com a actividade mental apaziguada ficamos abertos ao desconhecido. tornamo-nos então receptivos para um passo atrás que não realizamos, antes permitimos que se dê em nós

a abordagem corporal separada duma tradição (a palavra tradição no sentido daquilo que aponta para a verdade, espelhando-a) quando visa apenas a expressão de um corpo mais competitivo ou de uma mente com esta ou aquela qualidade mais proeminente é uma forma de sacrilégio. a abordagem corporal ou o trabalho psicológico têm valor apenas enquanto veículos para a colocação da estrutura do ser em estado receptivo para que este possa acolher o pressentimento daquilo que está além do físico e do mental. caso contrário dá-se uma contracção, uma redução

procurar a todo o custo, através de uma disciplina, ultrapassar todos os antagonismos do corpo e da mente é violência. só uma tomada de consciência sem volição pode verdadeiramente libertar uma tensão, não uma intervenção arbitrária baseada na intenção. a vida é sensorial. ela pode exprimir-se livremente logo que a ideia de ser uma pessoa, uma entidade autónoma, deixa de vir restringi-la, bloqueá-la. o pensamento é defesa. a sua utilização abusiva atenua-se grandemente com a eclosão da sensibilidade. a sombra não pode encontrar a luz. é a luz que ilumina a vida. a vontade de se elevar, por via do pensamento, até à origem do corpo e do mental é uma afronta, como a de um pintor que quisesse reproduzir exactamente a natureza substituindo-se a ela. a nossa receptividade torna possíveis todas as expressões, como celebração da nossa natureza profunda

a arte de celebrar a nossa verdadeira natureza através de uma atitude corporal ritual, asana, é muito pouco conhecida. o mais frequente no ocidente e mesmo na índia dos nossos dias é encontrarmos a prática das posturas reduzida a uma ginástica mais ou menos inteligente. tentamos impôr ao corpo um esquema exterior, arbitrário, pensando assim purificá-lo. esta atitude “liberal” que consiste em imaginar poder ir do “menos” no sentido do “mais”, não passa de violência, busca de segurança, permanecendo sempre no domínio da memória e do que já é conhecido. a arte de cachemira, inversamente, reconhece a anterioridade do arquétipo sobre o corpo. não se trata, portanto, de manter esta ou aquela postura numa dimensão relativa mas sim de tomar consciência de todas as limitações e bloqueios, da falta de sensibilidade que nos habita e mascara a nossa real corporalidade. cada postura abre uma porta sobre níveis de percepção mais agudos onde se torna possível pressentir claramente certas expressões subtis da consciência

assim, antes de abordar a postura clássica, passamos primeiro por múltiplas posturas intermédias que decompõem aquela. a criatividade do momento, canalizada através de gestos tradicionais, acarretará um “esvaziamento” profundo de todas as articulações, de todas as defesas, até que a transparência natural do corpo possa ser reencontrada

“evoquemos o espaço vazio no nosso próprio corpo, simultaneamentee em todas as direcções”

vijnana bhairava tantra

do ponto de vista desta transparência, o corpo subtil, corpo de energia livre do esquema corporal, pode então ser pressentido na sua glória. este corpo subtil, vibração receptiva, totalmente unificado com o ambiente circundante, vai antecipadamente, sem a participação do corpo físico, assumir a postura pretendida. esta tomada da postura apenas pelo corpo vibratório é uma arte de grande subtileza e exige uma total abdicação de toda a intenção de “fazer”. muitas “idas e vindas” serão provavelmente necessárias para consumir a memória das diferentes defesas associadas a este movimento. logo que a postura subtil começa a poder ser mantida com clareza, sem referência à corporalidade, aí então, e apenas aí, o corpo físico, envolto nessa vibração desperta, poderá “deslizar” para a postura. a corporalidade, livre de reacção, poderá assim, imersa no arquétipo, abrir-se multidimensionalmente. o corpo, nas suas modalidades física e subtil, tornar-se-á então oferenda à nossa verdadeira natureza

“o corpo, nas suas formas subtil e grosseira, que todos os seres consagram como “sujeito”, é a oblação que o grande yogi realiza no fogo da consciência”

kshemaraja, shivasutravimarshini

a postura desenha-se, portanto, num corpo completamente vazio, vago, disponível. cada postura tem o seu tempo próprio, necessário à sua realização. importa sublinhar a importância de, quando o corpo se encontra preparado para tanto, permanecer o tempo suficiente nas posturas para que os aspectos tamásicos, rajásicos e mesmo sátvicos se reabsorvam na escuta profunda

o corpo não está no exterior. ele é consciência. importa que não nos limitemos ao corpo. a fisicalização é expressão do plano de fundo da consciência. daí deriva a importância da atenção à sensorialidade, como primeiro passo. como via para o pressentimento daquilo que ela mesma oculta.

há apenas uma verdadeira “crise” (de tomada de consciência espiritual): quando nos damos conta de que tudo o que fazemos, tudo o que pensamos provém da nossa memória, que tudo o que encontramos é passado, que não conseguimos ter o mínimo pensamento criativo. experimentamos então o pressentimento profundo de que aquilo que procuramos não está na situação, não está na percepção. constatamos que a única coisa que podemos fazer é olhar em frente. tudo o que pensamos está à nossa frente. tudo que podemos realizar está à nossa frente e no entanto apercebemo-nos de que conseguimos unicamente projectar o conhecido, a memória. o novo, a liberdade, não pode estar na projecção. a crise emerge da evidência de que não conseguimos pensar senão o velho apesar de ser o novo que procuramos. damo-nos conta de que toda a nossa vida, todas as nossas acções, são empreendidas constantemente na tentativa de encontrar esse novo, de encontrar o “não desejo”, mas na verdade apenas conseguimos repetir os esquemas que reproduzem os erros passados. o nosso questionamento não consegue ir mais além. o pensamento não possui, por definição, os elementos para atingir o não-pensamento. a experiência desse momento na vida é verdadeiramente uma crise, um choque. começamos a ver claramente aonde não queremos ir. não sabemos onde queremos ir mas vemos de uma forma cada vez mais clara onde não se encontra aquilo que procuramos. é um choque profundo.

quando encontramos uma arte tradicional, acontece uma transposição para outros domínios da vida. essa transposição não se ensina. ela é aparentável à inteligência que vai pouco a pouco imiscuir-se em todas as actividades. a arte do shivaísmo de cachemira é a arte de escutar, que se transpõe virtualmente sem limites. este processo pode levar algum tempo, visto que existem por vezes nós muito profundos no corpo e no psiquismo. os nós superficiais, periféricos, apagam-se rapidamente. os nós mais marcados poderão manter uma certa opacidade durante bastante tempo, até que se manifeste um verdadeiro pressentimento

no entanto, o despertar, a expansão, a reabsorção de elementos subtis, não são etapas duma qualquer progressão mas modalidades livres da consciência una e eterna

“na sua realidade, a consciência, samvit, é vibração, spanda. essa vibração contém em si movimento de alguma ordem. se se tratasse duma progressão da sua própria essência para outra coisa, essa vibração não seria mais que um simples movimento e não acrescentaríamos “de alguma ordem”. mas se, pelo contrário, essa vibração não fosse um movimento, ela não existiria. chamamos portanto vibração a essa dinâmica da própria essência, processo desprovido de qualquer noção de progressão, idêntico ao encantamento”

abhinavagupta, paratrimshikavivarana

(ideia de onda e partícula na física sub-atómica)

tudo é energia: actividades físicas e mentais. ou estas energias são dirigidas para o mundo exterior da temporalidade ou a sua maturação acarreta uma reorquestração profunda. esta orientação não se processa como nos yama e niyama (regras e abstinências) da índia mas como consequência de termos visto claramente que aquilo que procuramos não se encontra no mundo fenomenal

tomar notas durante uma sessão acentua a conceptualização, suprimindo a possibilidade de entrar em contacto com o que está por trás. não faremos então mais que repetir conceitos, elementos técnicos fixos. contrariamente, se nos deixarmos transportar pelo instante, toda a memória se dissipa e reencontramos, durante a prática, o perfume da nossa abertura. aquilo que é esquecido devia sê-lo e nessa não memorização da técnica a intuição faz-nos descobrir possibilidades bem além daquilo que foi ensinado. o objectivo, se assim se pode dizer, é a escuta e não o que vamos encontrar nessa escuta. a sessão de yoga impôe-se, inesperada, como celebração da nossa abertura

descoberta dos elementos sólidos, líquidos, gasosos no corpo. abrir-se, igualmente, aos antecedentes do corpo, permitir que se actualizem o passado mineral, vegetal, animal. numa atenção não implicada, as memórias não psicológicas vão emergir, de forma não conceptual mas sensorial. essas percepções vão-se revelar de uma riqueza insuspeitada, no respeitante à nossa vida esquemática quotidiana. pelo abandono e receptividade elas revelam o seu segredo, reabsorvendo-se no plano de fundo

o que nos importa finalmente não é a percepção mas aquilo para o que ela aponta: a consciência. a atenção corporal aos elementos grosseiros e subtis não é mais que um pretexto para o pressentimento da nossa verdadeira natureza

“o sistema ensina que atingimos o “sujeito último e verdadeiro” dirigindo a nossa investigação a uma impressão do azul, de prazer, etc. muito claramente manifesta |à consciência, até à fonte do conhecimento: o objectivo último de qualquer tomada de consciência específica é o repouso sobre a sua própria essência, o “eu” (“soi”, “self”). é a experiência do “eu” na sua liberdade.”

abhinavagupta, ishvarapratyabhijnavimarshini

o ponto de partida para um esvaziamento real é a aceitação sem restrições da sensação de não esvaziamento, das tensões. entregar-se totalmente à sensação que se apresenta, sem querer mudá-la. visualizar, memorizar ou projectar um corpo hipotético é um distanciamento. há que apenas sentir, constatar

(porém)

o corpo é defesa, encerramento: nunca pôr a tónica nas suas restrições. não procurar soltar o que quer que seja mas sublinhar a sensibilidade táctil á superfície da pele. mais cedo ou mais tarde essa sensibilidade irá tornar-se um formigueiro seguido de irradiação

uma postura abordada de forma correcta permite a dissolução de certos registos cerebrais. só uma grande disponibilidade e atenção conduz a essa libertação. inversamente, na prática com esforço, no sentido de tentar obter resultados, há o risco da repetição regular das mesmas tensões que acarreta a sensação do corpo denso e pesado pela manhã. é frequente projectarmos reacções que se gravam em nós durante o movimento. ainda antes de dar início ao gesto, certas regiões do corpo fixam-se por antecipação. é muito importante conseguirmos detectar este fenómeno em nós. captamos a sugestão de desenvolver esta ou aquela atitude e o próprio corpo tende a repetir as tensões memorizadas. a abordagem da postura por via de uma sensibilidade desperta, assegurando que a sensação e a substância mantêm a sua amplitude e vazio originais, permite que a postura seja nova a cada dia, sem repetição. a postura permanecerá o desconhecido que nós deixamos de impregnar com preconceito

ouvimos dizer que existe a possibilidade de um outro tipo de funcionamento psíquico para lá do que é estritamente baseado na memória. mas este não pode ser pensado, apenas podemos manter-nos disponíveis para ele

reconhecer a verdade torna possível uma escuta total. ter a convicção de que aquilo que fundamentalmente procuramos não se encontra na percepção em si, ou no objecto. a acalmia efectiva que daqui resulta permite uma utilização mais racional da corporalidade. uma abertura que não se projecta, deixa que o nosso organismo se torne verdadeiramente receptivo. sem nada a reivindicar ou defender, o corpo torna-se aquilo que sempre foi, abertura multidimensional. a prática das posturas e do pranayama destina-se, nada mais nada menos que a estimular essa receptividade

a verdadeira alegria/exaltação não deriva daquilo que é visto, ouvido ou percepcionado, mas da nossa receptividade ao ambiente

é fundamental encontrar em nós essa atitude de “ter as mãos vazias”

como na música, temos que aprender a escutar o corpo sem nada saber. ser completamente como uma criança que acabou de nascer. escutar o instante. não há nada a modificar. observamos apenas aquilo que se passa.

quando olhamos verdadeiramente, quando deixamos que uma percepção ocorra em total liberdade, ela própria conduz-nos à origem de todas as percepções, ao silêncio. a nota, o som, a palavra, são experiência directa do silêncio. o som não é exterior ao silêncio.

“utilizar palavras que irradiem silêncio. o silêncio que permite ouvir aquilo que não pode ser dito”

(nc)

qualquer arte tradicional aponta para o silêncio. para o verdadeiro músico, a música encontra-se entre as notas; a melodia do yogi está entre a expiração e a inspiração

"a pausa natural entre a expiração e a inspiração sintoniza-nos e remete-nos para o fundo de silêncio sobre o qual elas são acidentes. o dinamismo da acção inteligente combinado com o abandono, num corpo desperto e numa mente atenta, permitem-nos regressar à vastidão do espaço vazio, pura potência, em que estes acontecem"

(nc)

na leitura de um texto como o “vijnana bhairava” acontece por vezes após uma frase, ou uma estrofe particularmente bela, uma sensação de saciedade acompanhada de uma vibração, instante fecundo que lembra o espaço entre a expiração e a inspiração. este texto é inspirado pelo “plano de fundo”. apesar da sua antiguidade, não foi grandemente manipulado e transporta ainda um perfume das suas origens. não se trata de um texto a estudar com o objectivo de dele retirar informações ou conclusões. devemos procurar abordá-lo como a um poema, sem razões ou metas. uma estrofe habitada pela evidência é mágica. se não colocarmos a tónica no sentido ou na beleza formais, mas mais no seu sabor, ele evoca a nossa liberdade. na sua reassimilação consciente inscreve-se a reminiscência do silêncio que o engendrou, silêncio que podemos reviver por identificação. um texto “em segunda mão”, pensado, mesmo quando de grande qualidade, não consegue dissolver-se assim. deixa-nos sempre numa estimulação, numa actividade mental, mesmo que purificada. mas se acolhermos essa vibração que fica após a reassimilação do que foi lido, ela dissemina-se por si própria seguindo as suas vias. após ter purificado a nossa cerebralidade reabsorver-se-á ela própria, no vosso olhar. ela é a porta para o silêncio

durante a meditação é possível sentir este movimento. pelo facto de deixarmos a percepção livre e de o desejo de agarrar não encontrar mais eco, sentimos o brilho, a acentuação e a reabsorção, por exemplo, perante uma questão ou dúvida

a questão não formulada transforma-se em oferenda à nossa verdadeira natureza. uma questão conceptualizada e expressa é sempre, de alguma maneira, uma fuga à nossa intimidade. a verdadeira questão surge da resposta, que pré-existe em nós, e a sua resolução deriva da nossa abertura a que ela seja reassimilada. colocar uma questão indica que já possuímos a intuição da resposta

quando afirmamos: “o meu corpo está preso, condicionado!” tal significa que existe em nós já um perfume do incondicionado o qual, num “contraste figura-fundo” nos permite percepcionar o condicionamento. para a tradição de cachemira, condicionamento e incondicionamento são designados poeticamente como o “jogo de deus” (leela), que se perde e reencontra. a percepção aponta para o que está por trás da percepção. mais tarde ou mais cedo, tomamos consciência que a nossa vida aparentemente separada do todo é uma expressão da liberdade desse mesmo todo e dela indissociável

“a nossa natureza conhece-se a ela própria por ela própria. é ela que, na sua unidade essencial, através de perguntas e respostas, é contemplada como “eu”. essa natureza de ser cria o encantamento que se exprime sob a forma de perguntas e respostas”

abhinavagupta, paratrimshikavivarana

quando entendemos de onde provém a necessidade de compreender, dá-se uma clarificação. querer compreender é restringir o ilimitado às nossas próprias limitações. é um refúgio que nos faz permanecer sempre no quadro daquilo que é conhecido. não podemos compreender o desconhecido, o novo. a acumulação de um saber, de noções sobre uma tradição, provém do medo e mantém-nos sempre na insegurança. é fundamental darmo-nos conta de que o essencial nunca pode ser compreendido

quanto mais aprofundamos a prática do pranayama mais podemos sentir o imenso espaço do não conceptual. apercebemo-nos então que todo o impulso no sentido de querer apreender a nossa vivência dum ponto de vista conceptual não faz mais que entravá-la

importa ver claramente que aquilo que verdadeiramente procuramos não reside num estado. toda a actividade física ou mental é referenciada a um estado, a uma situação. esta expressão de energia acontece diante de nós. o que é que acontece quando nos apercebemos que qualquer actividade só pode orientar-se para o futuro?

queremos ver a verdade como quem quer ver um elefante côr de rosa. qualquer movimento, qualquer direcção só pode afastar-nos dele (como o animal que tenta alcançar a sua própria cauda). aquilo que procuramos está por trás de nós e não pode ser visto, encontrado, compreendido, pensado

“what you are looking for is what is looking"

wei wu wei

este pressentimento concretiza-se naturalmente em nós. se resisitirmos à mania de querer exprimir as nossas interrogações e vivermos a ausência de resposta, as questões não formuladas remetem-nos para a sua origem. a origem da questão é a resposta

a memória pessoal é um instrumento de defesa. recapitular o passado, projectar o futuro, derivam do medo, da recusa da entrega ao instante

todas as actividades conscientes ou inconscientes do nosso organismo tendem a criar uma pseudo-segurança. quando este facto é claramente discernido, a memória torna-se funcional, não psicológica

o passado e o futuro aparecem no instante presente, eles (só) existem aqui e agora. nessa abertura, a evidência de que qualquer situação é insegurança permite a actualização do pressentimento do “último”. a sua consciencialização, liberta de toda a pretensão de ser isto ou aquilo, provém directamente da interrogação profunda, do “quem sou eu?” não tanto enquanto questão formulada mas como intensidade multidimensional

é essa interrogação, sem questionador nem questão, livre de toda e qualquer formulação, que interpela o nosso ser, libertando-o do mundo fenomenal. os acontecimentos surgem segundo leis próprias e sentimo-nos cada vez mais no mundo mas não deste mundo. essa situação de autonomia clarifica as múltiplas situações de vida. como numa grande angular, o objecto é visto claramente mas ao mesmo tempo muito distante. quanto mais essa autonomia afectiva se vai aprofundando, mais é possível sentir uma adequada concretização do nosso potencial. as nossas particularidades, as nossas qualidades intrínsecas, bloqueadas pelas escolhas e opiniões pessoais, libertam-se progressivamente e encontram a sua perfeita e harmoniosa expressão nos ritmos do universo. o nosso corpo, o nosso psiquismo, fundem-se no ambiente sem que nada reste que possam chamar “eu”. aí, os nossos pés, mãos, fígado, cérebro, tal como o nosso capital afectivo e intelectual não têm nada de “pessoal”. as expressões do corpo e do psiquismo, apreendidas a partir desse espaço livre aparecem como celebração da nossa liberdade fundamental, a qual, não obscurecida pela agitação do eu, vai permitir aclarar-lhe as particularidades. a nossa real individualidade pode enfim revelar-se, única entre todas, livre de escolhas, servidora do “último”

o “prana” é um com a consciência. é o primeiro reflexo da consciência. o corpo não é mais que uma concretização do sopro. um grande mestre de cachemira disse um dia que “o corpo é um sopro do si mesmo (self)”. a ideia não podia ser melhor expressa

antes da criação do corpo há centros energéticos em actividade cujas ramificações se vão densificar e concretizar, tornando-se naquilo a que chamamos “corpo”. no regresso duma postura, habitada pela forma e vibração certas, permitimos que os elementos posteriores a esses centros sejam reabsorvidos

cada centro reabsorve as sonoridades e os ritmos que lhe correspondem até ao arquétipo, ao âmago da postura, que se refere directamente à consciência. a própria postura engendra esse processo de reintegração no qual todos os balbuciamentos da consciência no espaço-tempo têm a oportunidade de reencontrar a sua essência. a poesia indiana formula esta ideia afirmando que shiva criou o mundo adoptando posturas, arquétipos fundamentais subjacentes a todas as espécies. ao deixarmos que a postura se recolha à sua origem arquetípica, entramos em comunhão com o seu criador, shiva, a consciência

obviamente que sob um ponto de vista metafísico esta ideia não tem qualquer sentido. não podemos reintegrar aquilo que nunca abandonámos, mas se pressentimos a energia como expressão da consciência, dá-se uma aparente emissão e uma aparente reabsorção

ao nível subtil, um objecto não é mais que energia apontando para a sua reabsorção. a consciência está para lá da energia, que não é mais que um acidente.

“embora afirmemos que a consciência é necessariamente distinta do sopro, do corpo, da inteligência, na realidade não o é. a consciência permanece entretecida naqueles, sem a qual eles não existiriam. o divino substancializador nunca é atingido pela diferenciação dos estados”

abhinavagupta, tantraloka

quando um objecto, uma situação, uma pessoa, funcionam em relação com o seu ambiente com base numa clara consciência da sua fonte, eles são movimento, fluidez, alimentados, sustentados pela constante tomada de consciência do plano de fundo

quando uma situação é isolada do seu contexto e não se referencia fielmente à sua origem, torna-se densa, limitada, não mais alimentada pela energia cósmica. ela perde a sua vitalidade, razão de ser, torna-se uma caricatura. o conflito resulta apenas dessa separação. a ideia duma entidade separada cria esse isolamento. em vez de ser alimentada pelo universo inteiro, ela é sustentada por energias limitadas, por referências ou projecções. quando permitimos uma expressão plena e total deixamos o nosso ponto de vista fragmentado. aquilo que nos parecia um conflito é, visto na sua totalidade, não conflitual

a abordagem tântrica consiste na realização no mundo fenomenal do pressentimento daquilo que não é fenomenal. trata-se de um pressentimento profundo que pode traduzir-se em todas as expressões, sejam corporais ou mentais. na sua autenticidade ele influencia a maneira de respirar, de dormir, a maneira como entramos e saímos do estado de vigília e de sono profundo. ele clarifica o espaço entre dois pensamentos, entre duas percepções, a forma como nos alimentamos, a nossa maneira de viver. em suma, todas as expressões da vida se referem ao tantrismo

celebrar em nós a criação do mundo e a sua reabsorção onde estamos, numa atenção liberta de qualquer finalidade. o pranayama não visa nenhum resultado. ele é unicamente uma celebração

deixar a sensação nas narinas tornar-se vasta, imensa, como se aspirássemos o ar trinta centímetros à frente do nariz e o expulsássemos a partir da mesma distância por trás da nuca. sentir a abertura e acalmia dos orifícios. se não forçarmos o ritmo natural, constataremos que as narinas não se dilatam na inspiração nem na expiração. o aspecto “animal” da respiração vai-se atenuando e tornamo-nos conscientes das correntes de energia

importa darmo-nos conta do sentido sagrado do pranayama. entregar-nos à expiração sem a empurrar… ir com ela. sentir que esvaziamos o corpo das suas obstruções. é o conhecido, a memória, que eliminamos. permitir que o repouso subsequente consista numa verdadeiro abandono/entrega. sem nos precipitarmos para a inspiração, darmo-nos a essa pausa. a inspiração surge naturalmente, sem necessidade. os diferentes tempos aparecem, numa atenção receptiva, como os ritmos cósmicos que fazem e desfazem os mundos. o sopro sacraliza o corpo. sem pressa! a aprendizagem do pranayama é gratuita. não esperar nada! ser apenas escuta. descobrir a nossa própria sensibilidade, natural. esta arte, esta subtileza, tal como é ensinada em cachemira, é ilimitada. alguns elementos aqui sugeridos não são mais que um fragmento. iremos aprender muitos outros. um dia todos esses fragmentos se reunirão, sem esforço. a riqueza da criação é infinita e todos os seus aspectos são sustentados pela energia, pelo sopro, pelo prana. há que descobri-la!

“a inspiração abre acesso à pura consciência, a retenção mantém o estado de pura consciência, a expiração dissolve a diversidade”

abhinavagupta, tantraloka


num pranayama bem executado, o diafragma é mobilizado simultaneamente com grande doçura e rigor

num movimento consciente, procuramos ao máximo dissociar a actividade muscular organicamente necessária daquela que decorre de compensações que se colam à volta, por falta de sensibilidade

tornar o movimento do diafragma independente do dos músculos abdominais (atitude abdominal como a da mão que segura um pássaro bébé)

ficar sempre aquém do limite de capacidade da caixa toráxica e de retenção (sem esforço, fadiga, stress interno)

desta forma, quando a inspiração termina, acontece uma sensação de repouso. sentimo-nos como sentados num sofá confortável. devemos entregar-nos a esse repouso. na verdade, nada é retido (nem ar). deste repouso extravasará uma irradiação, um calor, que se distribuirá por todo o corpo, depois, eventualmente, por regiões específicas. quando a expiração sobrevém, partimos dessa disseminação prolongando-a além dos limites do próprio corpo, envolvendo todo o espaço circundante

na índia colocamos uma vela acesa à frente das narinas procurando manter a mesma inclinação da chama durante toda a expiração

visualizamos uma ânfora grande a três metros à frente, atrás, à esquerda e direita de nós e respiramos como se a cada vez a enchêssemos e esvaziássemos de ar

a própria verticalidade é resultado de uma entrega e desprendimento. há que não tentar fabricá-la, de uma forma “vitoriana”. por fim, esquecer a postura! não ser mais que escuta, olhar sem intenção

as mãos, os pés e a boca são, juntamente com os órgãos dos sentidos, as zonas onde a “preensividade”, o “querer agarrar”, se encontram mais infiltrados. o esvaziamento profundo das mãos pés e boca conduz a um grau profundo de vácuo, que se repercute na totalidade do corpo. pode ser a fonte de um descondicionamento no nosso organismo

é essencial que a tónica não seja posta na percepção mas no espaço onde a percepção ocorre. o esclarecimento das diferentes facetas da existência, nesse espaço que não é mais que pura escuta permitirá uma orientação correcta. o trabalho corporal é uma das múltiplas expressões possíveis desse olhar livre. através dele podemos aperceber-nos da constante reactividade em que vivemos. por via duma grande sensibilidade corporal. apercebemo-nos imediatamente da nossa reacção, da nossa defesa. dá-se uma deslocação de energia. em vez de nos situarmos na reacção, situamo-nos no espaço. a reacção, vista e aceite como tal, afunda-se por falta de combustível, numa escuta livre de expectativas

o condicionamento orgânico não é um problema. que o nosso corpo tenha dois braços e duas pernas em vez de cauda ou barbatanas é uma questão puramente funcional. tudo isto está gravado nos nossos cérebros antigos. o corpo e o psiquismo não são mais que limitações. as funções mentais dependem a cem por cento da nossa sensorialidade e são restringidas pela limitação das nossas percepções. é por isso que uma abordagem progressiva é vã: o que é limitado não pode apreender o ilimitado. a limitação é um objecto. sentimos o corpo, em pé, sentado, deitado, sobre a cabeça, etc. mas nós mesmos somos sempre presença.

esta “presença” recorrentemente referida ao longo deste texto como o “plano de fundo” (“arrière-plan”) não sendo nomeável (tal como a noção de “tao” não o é) pode ser “apontada” como aquilo que jamais esquecemos e que tão pouco podemos “pensar” (no sentido de captar conceptualmente). tudo o que podemos esquecer não é o “plano de fundo”. há algo em nós que nunca podemos esquecer nem agarrar. mais íntimo que o nosso bater do coração. no sufismo diz-se que nos é mais próximo que a nossa veia jugular

a compreensão intelectual, o sentimento de paz interior ou de plenitude derivam desse plano de fundo, não conduzem a ele

um diálogo fecundo permite percepção de que a vida em todas as suas manifestações se refere ao que está por trás da vida e que esse plano de fundo somos nós, numa noção de identidade, se assim lhe podemos chamar, ilimitada e não condicionada pela auto-conceptualização do “eu”

neste sentido a prática do yoga é um acto de celebração e gratidão: oferecemos o nosso corpo, respiração, sentimento e pensamento à sua origem, como forma de agradecimento pela consciência da possibilidade de nos exprimirmos fenomenalmente

a natureza do corpo é sensibilidade. todo o corpo, os órgãos, os músculos, os ossos, tecidos, são sensibilidade: eles podem ser habitados conscientemente. se não os sentimos é porque há restrição. então, interrogamos em nós a restrição. não há nada a fazer para sentir. é muito importante compreendermos que se nos sentamos para sentir o corpo não estamos na atitude adequada. é o corpo que nos visita. nós permanecemos sempre passivos. é a sensação que vem ao nosso encontro, nós nunca vamos na sua direcção. é a mão que nos visita na nossa escuta. é a escuta que escolhe apresentar-se à sua maneira. se quisermos impôr um esquema, dizemos “estou a sentir a mão e depois isto e aquilo…” mas entramos num processo muito superficial

o corpo habita a nossa abertura, não está no exterior

no sentido último da palavra, a energia (como consciência) é absolutamente não corporal. ela não é mensurável sequer pelos instrumentos da acupunctura ou outros

a visão do condicionamento é a liberdade. importa “virar a cabeça”, olhar para trás. quando deixamos de atender àquilo que não somos, fica apenas aquilo que somos. deixamos de pôr a tónica na percepção. permanece apenas o espaço onde a percepção se apresenta. quando olhamos em frente ficamos colados. é atrás, não à frente que há descoberta. olhamos sempre para a frente e assim apenas projectamos os nossos pensamentos, o passado

olhamos para trás porque o olhar genuíno é pura abertura. senão, olhar é violência. um verdadeiro olhar não olha. é o objecto que nos olha. quando vamos a um museu é o quadro que nos olha não o inverso. é igualmente possível olhar para um crocodilo mantendo, simultaneamente, o olhar na parte de trás da cabeça. não se trata sequer de uma vontade. no início, olhamos “por trás”. depois, deixa de ser necessária essa intencionalidade. um objecto pode exprimir-se. ele pode constituir-se como uma torrente, que entra em nós. para tanto, importa sentir uma enorme quietude nos olhos

o pranayama espiritual provém do silêncio e não comporta elaborações complexas sobre a inspiração, a retenção ou a expiração que no limite passam completamente a segundo plano. atendemos constantemente apenas ao silêncio após a expiração. quando este silêncio toma corpo dentro de nós, a própria inspiração o irradia e permanecemos nele

se houvesse um objectivo no yoga, seria o de aprender a pôr a tónica na não percepção. a percepção não é o que verdadeiramente interessa e o que captamos através dela tão pouco. essa não valorização permite que o espaço vazio entre as percepções se revele

não se trata, porém, de um estado. este pressentimento entre os estados é o que em sânscrito designamos como turya. quando ele se concretiza, o silêncio do não-pensamento permanece na própria actividade do pensamento. a não acção impregna a acção. chamamos-lhe "turyatitta".