03/10/2011

eric baret - le sacre du dragon vert

(traduzido e adaptado por nc)

o sagrado é uma não experiência, na origem de todas as experiências. não é possivel fazer a experiência do sagrado, porque ele é a essência profunda das coisas. podemos fazê-lo com o não sagrado, não com o sagrado

podemos apenas ver o que é profano em nós, a intenção, a avidez, tudo o que se situa na progressão, mas não aquilo que é fundamental, o que é sagrado, porque esta qualidade não é um objecto de experiência, é a própria luz que preside a todas as experiências

daí que não possamos de facto dizer: "eu sei, eu conheço!". inversamente, quando dizemos "não sei, não conheço" referimo-nos a esse conhecimento profundo que nunca poderá ser objectivado

dizer "eu sei" é um insulto ao sagrado porque este não pode ser alvo de um conhecimento objectivo. a devoção é uma expressão do sagrado mas não um meio de acesso a ele. se tivermos pressentido intimamente o silêncio, as expressões deste repercutem-se em nós de forma mais directa e clara. no plano fenomenal, sentiremos, como é natural, que certas formas de expressão reflectem mais directamente esse silêncio que outras. há músicas, locais e seres, que nos permitem indubitavelmente pressentir mais o silêncio. podemos considerar como sendo uma forma de devoção, o nosso apreço e simpatia por esses locais, pessoas, músicas, mas ela dirige-se na verdade ao que subjaz a esses elementos

mais que respeitar os objectos, há que respeitar a origem profunda deles

não se trata de uma relação pessoal: quando ficamos maravilhados por um templo, uma música, uma obra de arte, o que verdadeiramente nos toca é aquilo que pressentimos por trás deles. um professor que nos toca surte esse efeito em nós não pela sua verdade mas pela verdade que transparece dele. na índia, quando veneramos os pés de um guru, não nos inclinamos perante um mestre mas perante a verdade e, lá, essa atitude justifica-se, inclinarmo-nos perante sri nisargadatta maharaj, ananda moyi, gopinath karivaj, fazia sentido. em contrapartida, quando encontrei o meu mestre, jean klein, na europa, esboçar esse gesto teria sido deslocado. a expressão do respeito depende do contexto em que vivemos. o verdadeiro respeito é a identidade, sentirmo-nos "um" com o que respeitamos

nesse ponto, tudo se torna o nosso mestre, todas as percepções podem ser sentidas como prolongamentos da consciência: tudo o que vemos, ouvimos, tocamos, não é mais que isso. a certa altura, a devoção que tínhamos por um mestre, por um templo, por um deus, por uma música, desembaraçar-se-á de qualquer objectividade; essa devoção estender-se-á, então, a todos os seres, todos os deuses, em todos os sentidos, visto que, a um nível de profundo, não há diferença que os separe

neste sentido, o verdadeiro sentimento de "respeito" é sempre pela vida, pelo silêncio que se pressente em tudo, não pelas coisas em si mesmas. tudo o que nasce, morre. quando respeitamos uma forma, não é a forma em si que respeitamos, mas o que a envolve, o que é eterno. o respeito dirige-se, unicamente, a esse pressentimento do silêncio. por extensão, naturalmente, respeitamos todas as formas de expressão do mundo: animais, vegetais, humanas. elas são prolongamentos da vida - ou tratamos o nosso vizinho como nosso mestre, humildemente, ou, em caso contrário, algo não se encontra ainda estabilizado em nós

é nessa humildade, de que fala maître eckhart, que podemos aperceber-nos de que todos os nossos empreendimentos nos reconduzem à origem da acção, à carência fundamental que procuramos compensar. mas o que provém da insuficiência, permanece na insuficiência. frequentemente, o movimento pseudo-espiritual traduz-se pela tentativa de aumentar capacidades físicas, psíquicas ou outras, ao sabor da cultura em que ocorre. essa dilatação, apresentada como expressão do essencial, reconduz sempre a um estado de carência

na escuta de que falamos, vamo-nos apercebendo do quanto funcionamos como uma máquina, como um sistema. porém o não saber não antecipa um saber, não projecta um saber, não é mais um meio para. fica apenas um olhar de espanto em que o que chamamos mundo, corpo, deixam de decorrer de explicações. é o corpo que se revela em nós. essa humildade é a base de toda a percepção

manifesta-se uma energia de celebração, não uma energia de desenvolvimento

há uma altura na vida em que começa a eclodir uma maturação no ser humano que o leva a pressentir que aquilo que ele procura profundamente não consiste em experiências com que ele possa envolver-se ou de onde ele possa retirar-se, pela tomada de consciência de que aquilo que ele é pertence à não experiência, ao plano de fundo sobre o qual se inscrevem todas as experiências

acontece um olhar que não olha. todas as percepções apontam para esse olhar. a verdadeira orientação parte da convicção profunda de que aquilo que procuramos não se encontra num plano objectivo. físico ou emocional: que acontece quando não fazemos nada, somos nada? - o corpo, até então constantemente alvo de abuso, começa a falar. para que ele o faça temos que guardar silêncio. a emoção fundamental exprime-se, liberta da restrição de ser associada a uma pessoa. o pensamento proveniente do coração só se torna acessível pela liberdade face à nossa própria emotividade

o pensamento não intencional, o pensamento que provém do silêncio verdadeiro, é a adoração, é por isso que tantos intérpretes de diferentes tradições escreveram orações, mesmo mestres não dualistas como shankaracharya ou abhinavagupta

do ponto de vista da índia tradicional, um ser sensato não se refere à imagem de uma pessoa - é uma das virtudes fundamentais daquele país. nas nossas sociedades modernas (em que a própria índia se tem vindo a tornar) um homem de valor é aquele que é capaz de ganhar fortunas, é a ele que pedimos conselhos e que é visto como um ser amadurecido. no oriente antigo, um homem sábio é um homem livre de si próprio. daí que, na arte tradicional, possamos observar a representação de um rei a inclinar-se perante um asceta

há, sim, mestres de artes, que são uma outra coisa. se quisermos aprender canto, há que fazê-lo com um professor. o mesmo se passa com o yoga e com a meditação, no sentido clássico. mas se nos referirmos a ser profundamente aquilo que somos, isso não está ligado às diferentes vibrações do cérebro, à meditação, ao corpo, ao pensamento, ao que podemos fazer ou não fazer; aí, não há mestre. há mestres de técnica mas não há mestres do ser

num certo sentido, um mestre autêntico pode ser reconhecido pela sua "ausência", não pela sua presença

o desaparecimento físico e depois psíquico, do mestre, é a sua última dádiva

aquilo que podemos observar, face a um ser humano livre de qualquer imagem de si próprio é a sua própria restrição. o simples facto de nos encontrarmos com alguém livre coloca-nos ostensivamente perante a nossa não liberdade

pela mesma ordem de ideias, subtilmente, sofrer, ser vítima de o que quer que seja, é uma pretensão, uma aquisição, uma história. quando sofremos, sentimo-nos alguém, sentimo-nos como sendo qualquer coisa de moral, de honorável

ao invés, quando deixamos uma carência viver-se em nós completamente, sem a compensar, habitar ou exprimir sequer, ela remete-nos sempre para a plenitude. na abertura, é difícil ficarmos muito tempo no sentimento de que nos falta o que quer que seja...

há, sobretudo, que sabermos calar-nos, parar de ouvir o nosso alarido interno. as outras vozes são bem vindas. mas, na maior parte do tempo, apenas ouvimos o que supomos ser a nossa voz, aquela que nos torna a vida difícil e nos gera sofrimento. calando-nos, começamos a poder ouvir todas as outras vozes, é maravilhoso! para isso, antes de mais, temos que para de nos dizer coisas!

na sua maior parte, os seres humanos passam os dias a contarem-se a si próprios as suas histórias: as suas gloriosas vitórias passadas ou futuras ou, alguns, mais pessimistas, auto-relatando-se os seus dramáticos fracassos do passado bem como a probabilidade da sua repetição no futuro; mas vai dar ao mesmo, estamos constantemente a palrar para connosco próprios! nalguns países as pessoas não só se fazem estas narrativas como, ainda por cima, passam o tempo a olhar para si próprias! quando entramos numa casa damos com quarenta e cinco fotografias dos seus proprietários: pequenas, grandes, de todas as épocas do ano, do serviço militar, do casamento, do baptismo e de outros rituais satânicos, em esplendorosos quadros de prata, em forma de coração... é espantosa, esta necessidade constante de auto-confirmação fisionómica, reveladora de um enorme medo...

é esta voz que há que calar

toda a fisiologia mística tende, por facilidade, a ser descrita como se estivesse situada no interior do corpo, mas esses esquemas derivam duma má formulação, ou de uma formulação que deve ser entendida num plano simbólico. os centros de energia, os pontos vitais, não se encontram no interior do corpo, embora, por facilidade pedagógica sejam analogicamente descritos dessa forma. inversamente, é o corpo que se situa no interior desses centros. a energia está constantemente em difusão, o corpo não a poderia jamais conter

nesse sentido, a primeira coisa a aprender no yoga é, por apuramento de sensibilidade, libertar o fluxo respiratório do aparente invólucro corporal em que ele se processa: o corpo é que se encontra na respiração quando esta é percepcionada num sentido não estritamente fisiológico

por outro lado, há que evitar tornarmo-nos demasiado românticos relativamente aos hipotéticos significados das doenças, dos cansaços... é plausível que a nossa maneira de viver vá criando antagonismos que, mais tarde, venham a converter-se numa doença, mas há pessoas que nunca estão doentes e, nelas, essa forma de saúde funciona como um mecanismo de defesa e uma perda de sensibilidade. nem sempre a doença é sinal de conflito. pode sê-lo, de facto, mas não forçosamente em todos os casos. evitemos as generalizações sobre a doença, é preferível largar as conceptualizações sobre este assunto

importa escutar a doença sensorialmente e não seguir pelas "boas intenções" de dizer "aceito". aceitar uma doença é um conceito, com poder de ressonância muito limitado (como todos) mas sentir profundamente a região do corpo que está afectada, sem pretender mudá-la, apenas travar conhecimento com ela, pode conduzir-nos a uma grande inteligência, apenas acessível quando não tocamos nas coisas, quando nos permitimos ser apenas "olhar atento". esse olhar, em si mesmo, faz-nos naturalmente encontrar o médico ou terapeuta adequados, que não se situam, eles sequer, fora dele

duma maneira geral, nem chegamos a sentir a doença, para a maior parte das pessoas ela é uma ideia, expressa na afirmação "estou doente", resultando numa fuga à verdadeira sensação

geralmente, quando a dor se aproxima, há uma série de tensões musculares que se reúnem para a combater ou atenuar, de forma que aquilo que sentimos acaba por ser a reacção à dor, só muito raramente a dor em si

o desequilíbrio é um equilíbrio que se busca a si próprio, é um equilíbrio em movimento. podemos conceder-nos a possibilidade de observar esse desequilíbrio sem fazer nada, sem intervir ou pretender reequilibrar o que quer que seja, ou seja, sem violência

quando falamos de um desequilíbrio verdadeiramente profundo, trata-se, na verdade, de um equilíbrio que está a criar-se, portanto há que sustentar este desequilíbrio, acompanhá-lo, deixar que ele se exprima completamente e, mais cedo ou mais tarde, ele acabará por reintegrar o equilíbrio. um pedagogo ou um terapeuta têm, fundamentalmente, um papel de acompanhantes do desequilíbrio até à sua reabsorção, sem pretenderem eliminar o que quer que seja, senão entram num saco sem fundo

ao fim e ao cabo, originalmente, na índia, aquilo a que chamamos yoga não é mais que isto: aprender a sentir, a escutar, a tocar, a saborear, sem tocar no que sentimos, sem abocanhar o que saboreamos. nesse instante a sensação adquire um imenso poder, ela pode, finalmente, libertar-se

sempre que um acontecimento não corresponde ao nosso plano para o mundo, começamos a pensar - e deixamos de escutar

é quando nos sabemos livres do corpo que podemos a trabalhar o corpo, antes disso não é possível

chega uma altura na vida em que se impõe naturalmente a convicção de que o amanhã não vai ser melhor que o hoje e aí, por fim, confrontamo-nos, não conceptualmente, com o instante presente. se essa convicção for de facto uma impressão última, incontornável - ter como absolutamente adquirido que o que quer que façamos iremos permanecer no mesmo marasmo, nada nem ninguém nos poderá tirar dali - quando nos permitimos impregnar totalmente por essa visão cataclísmica em toda a sua extensão, sem qualquer esperança de vir a saír dali, então poderá acontecer qualquer coisa. porém, o que fazemos habitualmente é considerar que "as coisas até não vão assim tão mal" e caímos no adiamento. há, portanto, que ir um pouco mais longe no desespero... ele chegará, de qualquer maneira, mais tarde ou mais cedo...