02/06/2014

o sadhaka secreto - 3



prosseguimento da transcrição adaptada de o aprendiz secreto de antónio ramos rosa - ver introdução em abril / 2014 (o sadhaka secreto 1)


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21.

a prática da postura é também uma construção do corpo

o sadhaka sai de si para entrar em si

a relação das forças com o mundo altera-se a partir do ponto cego em que a visão se gera, até aos campos em que a luz se ordena na sua lisa e pura tranquilidade

sadhana é, assim, criar o espaço da união originária em que o tempo e o ser se reúnem como a vibração única de um arco entre o visível e o invisível

mas se o sadhaka é o homem que trabalha sob o signo do uno, a sua matéria prima é a dispersão e o caos, o vazio e o obscuro, o informe e o opaco

ele não recusa nem nega essa matéria, porque ela é a substância mais densa da sua prática e porque é nela que o ser aguarda a possibilidade de inaugurar uma forma nupcial que pertença tanto ao espaço da realidade exterior como à densidade obscura da sua essência íntima

o ser é, assim, a prática de si mesmo a partir de um ser que ainda não é e que tende permanentemente a ser

como o sadhaka não se separa dessa matéria, toda a sua postura é uma incessante imersão na nebulosa interior e ao mesmo tempo a transformação radical desse fundo obscuro que nunca perde completamente a sua obscuridade ao transformar-se no volume final das formas exteriores

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22.

o sadhaka sente como ninguém a inexistência de indícios divinos tanto na realidade exterior como no seu íntimo

é na mais completa solidão que se inicia a sua prática diária para ir ao encontro de um desconhecido que não requer nada mas a que a postura se destina e que na postura se actualiza

esse desconhecido é a ausência interminável do ser, o seu espaço interior infinitamente aberto dentro de si

este espaço é o incessante e dinâmico abismo da consciência e ora desce até ao fundo tenebroso ora ascende verticalmente como a afirmação absoluta do instante de afirmação e da afirmação do instante

o sadhana reflecte este movimento pendular e a sua euritmia espacial liga a profundidade abismal à transparência ilimitada da claridade diurna

assim o olhar percorre a sua própria dimensão fracturada e una e a sua pulsação é a palavra que a abre a partir desse fundo obscuro da visão e da obscuridade indefinida do corpo

todavia, é sobretudo a ausência que determina o sadhana e a sua continuidade intermitente entre o excesso e a carência do desejo

as configurações instantâneas nunca revelarão a face desconhecida nem exibirão o que na ausência tem o seu lugar sem nunca o ter

o espaço do sadhana vibrará no entanto como se o ser desconhecido estremecesse na luz da afirmação instantânea e instantaneamente soberana

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23.

em cada gesto que faz, o sadhaka sente o vazio vertiginoso que o antecede e o repentino assombro que ele suscita

esse vazio é o tempo na sua inicial formação e o elemento necessário à aparição das imagens do real

assim, o sadhana deverá integrar o momento que o antecede, como um gesto amante se dirige ao futuro corpo amado envolto na penumbra ofuscante da criação

o fulgor e a flexibilidade do asana dependerão desta condição inicial da sua aparição

todo o sadhana será o movimento que se reflecte e se reconstitui na correspondência com o tremor do desejo perante o vazio que é o tempo da sua génese e do seu instantâneo percurso

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24.

ao fim de cada sadhana diário, ao crepúsculo, o sadhaka sobe a uma torre de pedra para meditar um pouco

a plenitude da tranquilidade é perfeita nos campos fulvos e ondulados em redor, cobertos de ervas altas, de flores e arbustos, e marginados por um riacho sob a penumbra verde de um arqueado tecto de folhagem

dir-se-ía que o olhar do sadhaka encontrou o ser em extensão, o ser que se oferece, no seu mutismo eloquente, e ao mesmo tempo se guarda no mesmo espaço do seu tranquilo esplendor

a meditação não é mais do que a contemplação de uma matéria que contém em si o excesso da sua energia calma e a densidade materna que envolve todas as interrogações e torna supérfluo e intruso o pensamento

por isso o sadhaka se integra na paisagem e, reflectindo-a, não a elabora nem a altera

toda a sua vida está intacta e plenamente segura na indistinção entre o seu íntimo e a túmida e fresca serenidade da paisagem que o envolve

a realidade exterior passou a ser a matéria mais íntima e mais pura da relação total e, inversamente, o contemplador converteu-se num elemento da paisagem que, a partir dela própria, a vê nela se vê

esta circularidade é a mais harmoniosa manifestação do uno e o alvo da construção será criar o espaço mais propício à sua tranquila fulguração

não há segredo mais supremo nem mais simples do que esta relação vital entre o corpo e o espaço, entre o alento e a paisagem, entre o olhar e o ser

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25.

ha momentos em que o fulgor da tarde é tão sedoso e tranquilo que o sadhaka suspende o seu trabalho

as árvores e os muros têm então a vagarosa tranquilidade solar que é como um ébrio recolhimento do ser na matéria silenciosa das pedras, dos troncos e das folhas

a luz estende a sua toalha fulva e serena sobre um planeta árido e maciço e toda a sua energia se volve uma respiração homogénea e discreta, misteriosamente cálida

é este o momento em que o segredo da terra se alia à evidência do intacto e a plenitude solar se tinge de uma presença oculta que está tanto sob as aparências do mundo como no coração do sadhaka

esta concordância produz o acorde único do ouro que flui entre uma nascente e um túmulo, entre a carência e a plenitude de uma vida solar

este fermento de pura unidade conservá-lo-á o sadhaka nas suas veias e dar-lhe-á a inspiração pausada e leve dos movimentos corporais que tornarão o seu asana uma morada viva em suas presenças luminosas e claras

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26.

todo o sadhana é feito a partir de uma diferença essencial e o seu objectivo é desenvolvê-la em todos os planos até alcançar a semelhança com o incomparável inerente ao movimento do asana e por isso mesmo oculto e inacessível

o sadhana é, assim, o percurso de uma diferença até ao reconhecimento da identidade dessa diferença

este movimento não é horizontal mas circular, uma vez que cada gesto do sadhaka reúne em si a matéria árida e informe e o impulso formador que se origina no dinamismo genético do incomparável

cada instante do sadhana  propõe a semelhança de uma identidade inicial filha da diferença e, sem o revelar, consuma a violência fulgurante do incomparável

a infinidade do sadhana concentra-se em cada momento do asana, porque a energia do ser está toda dirigida para o único ponto de aplicação em que o desejo se actualiza e se inaugura na liberdade da sua inocência descoberta

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27.

uma das condições indispensáveis do sadhana é a ingenuidade da disposição que torna o corpo leve e aberto em consonância com a luminosa vibração do espaço e a sequência fluvial do tempo

à medida que progride, o sadhaka sente que todos os seus gestos vão erguendo um corpo natural e vivo com a mesma substância que os campos de árvores e o rio que flui à beira do asana

a diferença que no entanto subsiste entre a realidade natural e a realidade construída é absorvida pelo ardor do sadhana que a transforma numa nova semelhança e num caminho para a unidade real

mas esta transformação é interminável porque é o processo de uma unificação infinita e incessante

o que determina a continuidade do sadhana é esse intervalo insuperável entre a prática e o mundo e dentro do próprio espaço do mundo

o sadhana é o movimento pelo qual a realidade se integra no processo de transformação unitária e ao mesmo tempo a diferença de um instante em que o real se cinde na sua reflexão actualizante e deste modo cria a possibilidade da união iminente e sempre imanente ao trabalho corporal

por isso o asana ficará sempre inacabado e todas as suas vertentes apontarão para os campos inúmeros do possível e para esse rio que em torno dela será sempre a proposição de um mundo em que a unidade se consuma na sua própria origem e no seu fluxo permanente

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28.

o sadhana não deve sobrepôr-se ao que ele deve suscitar

evitando o excesso formal e a arbitrariedade das formas, o sadhaka procurará a pureza e a flexibilidade das linhas, o rigor e o despojamento de uma linguagem aberta ao mistério vivo do real

o ar será o elemento preponderante do sadhana e todos os enigmas e segredos vibrarão como se fossem massas de ar de uma virgindade inicial e de uma ebriedade pura

a inspiração é uma embriaguez aérea que não turva o olhar nem faz pesar a mão

a cada movimento, o corpo recebe o que ele próprio produz com a ingenuidade viva e a leve integridade de um ser aberto à novidade do mundo

eis porque o início é permanente através de todas as lacunas e de todas as paragens

longe de ser uma adequação formal, o gesto construtivo inventa uma semelhança no impulso que o lança para o futuro e assim é a si próprio e à sua origem que retorna, criando a relação viva com o mistério real através da sua juvenil autonomia

o mundo surge então como criação do mundo e a inocência do ser manifesta-se na sua integridade como a pulsação da liberdade de um corpo que regressou a si próprio no movimento que o abriu à plenitude do espaço

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29.

o sadhaka está dentro de uma parede diáfana, entre dois vazios

a sua solidão não tem nome, a sua impotência corresponde ao mutismo absoluto de uma matéria rígida e opaca

este emparedamento é uma protecção que lhe retira a possibilidade de um gesto construtivo e o separa do tumulto agressivo das circunstâncias quotidianas

o que poderia levá-lo a romper esse muro de vidro é a sua concentração num ponto em que a negação do exterior se pode converter na comunicação com o mundo

todas as imagens que nascem do silêncio têm a fertilidade tranquila a que elas estão ligadas

uma analogia estabelece-se entre as aparições que se elevam sobre a brancura do solo e as formas e estruturas do sadhana que se erguem segundo o princípio da máxima economia e da perfeição aliada à imperfeição nativa

as linhas dir-se-ía que estremecem e seguem a mão frágil e delicada que as traçou

é neste convívio com a sua própria criação que o sadhaka encontra a palpitação primeira dos corpos e do seu próprio corpo

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30.

por vezes o sadhaka senta-se, sob a folhagem de um plátano, contemplando ao longe os pequenos montes de um azul ténue ou abandonando o olhar à tranquila e cintilante fluência do riacho que circunda o corpo

a larga e fresca delícia do sossego é tão grande que ele se demora na contemplação sem pensar, como se se sentisse ele próprio um elemento da paisagem em que a consciência seria totalmente receptiva e aberta aos estímulos dos brilhos, formas, cores, odores e eflúvios

poderia ficar assim longo tempo, imerso na totalidade viva do instante, sentindo-se limpo e novo e possuído de uma leveza aérea e subtil

é então que adormece e sonha com voluptuosas figuras que nascem de um magma vermelho para onde retornam silenciosas e nuas

quando acorda, a frescura do mundo inunda-o e deslumbra-o

recomeça então o trabalho numa disposição leve e volúvel, nutrido pela energia renovada pela contemplação e pelo sono

os asana que modela e coloca formando pilares, colunas, arcos ou paredes possuem as formas vivas de um corpo flexível e voluptuoso, animado pelos elementos, imprevisível e puro, suave e impetuoso como os gestos do desejo

mas a paisagem não é o modelo do sadhana que se inspira na imaginação aberta e autónoma, livremente desencadeada a partir das impulsões vitais e das nebulosas incandescentes do desejo

a água e o fogo ondulam nas colunas, a terra afirma-se na densidade dos pilares, o ara dança na leveza das volutas, o sol transparece e fulgura nas paredes, o asana, todo ele, é uma epifania dos elementos e das forças da natureza

embora destituído de figuras, o asana é uma figuração imaginária que corresponde às pulsões mais arcaicas do corpo dando-lhes a forma livre e harmónica de um templo consagrado à totalidade de um instante de criação absoluta