11/11/2011

clarice lispector - água viva (excertos)

(selecção e adaptação por nc)

é com uma alegria tão profunda. é uma tal aleluia. aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica, porque ninguém me prende mais. tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. estou tentando captar a dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque tornou-se um novo instante-já que também não é mais. cada coisa tem um instante em que ela é. eu quero apossar-me do "é" da coisa. e quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já

só no ato do amor - pela límpida abstração de estrela do que se sente - capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si: no amor, o instante de impessoal jóia refulge no ar, glória estranha de corpo, matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes - e o que se sente é ao mesmo tempo que imaterial tão objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no alto

alegria, alegria é matéria de tempo e é por excelência o instante

e no instante está o é dele mesmo. quero captar o meu é. e canto aleluia para o ar assim como faz o pássaro. e meu canto é de ninguém. mas não há paixão sofrida em dor e amor a que não se siga uma aleluia

escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. é também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. não se compreende música: ouve-se

ouve-me então com teu corpo inteiro

quando vieres a me ler perguntarás porque não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. é agora que sinto necessidade de palavras - e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. a palavra é a minha quarta dimensão

vejo que nunca te disse como escuto música - apóio de leve a mão na eletrola e a mão vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouço a eletricidade da vibração, substrato último do domínio da realidade, e o mundo treme nas minhas mãos

e eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de sentido. e se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já

lê, então, o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba, lê o que agora se segue: "com o correr dos séculos perdi o segredo do egito, quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ação energética dos elétrons, prótons, neutrons, no fascínio que é a palavra e a sua sombra" - isso que acabei de te escrever é um desenho eletrônico e não tem passado ou futuro: é simplesmente já

ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra. meu corpo incógnito te diz: dinossauros, ictiossauros e plessiossauros, com sentido apenas auditivo, sem que por isso se tornem palha seca e sim úmida. não pinto ideias, pinto o mais inatingível "para sempre". ou "para nunca", é o mesmo. antes de mais nada, pinto pintura. e antes de mais nada te escrevo dura escritura. quero como poder pegar com a mão a palavra. a palavra é objeto? e aos instantes eu lhes tiro o sumo de fruta. tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida

o instante é semente viva

a harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio. sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real

ainda tenho medo de me afastar da lógica porque caio no instintivo e no direto, e no futuro: a invenção do hoje é o único meio de instaurar o futuro. desde já é futuro, e qualquer hora é marcada. que mal, porém, tem eu me afastar da lógica? estou lidando com a matéria prima. estou atrás do que fica atrás do pensamento. inútil querer me classificar, eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo. é um estado de contato com a energia circundante e estremeço

uma espécie de doida, doida harmonia

fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem - fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância

esta é a vida vista pela vida. posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa

quero escrever-te como quem aprende

fotografo cada instante. aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra. não quero perguntar por que, pode-se perguntar sempre por que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim. e depois saberei como pintar e escrever, depois da estranha mas íntima resposta. ouve-me, ouve o silêncio

o que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa

comecei estas páginas também com o fim de preparar-me para pintar. mas agora estou tomada pelo gosto das palavras e quase me liberto do domínio das tintas: sinto uma voluptuosidade em ir criando o que te dizer, vivo a cerimônia da iniciação da palavra e meus gestos são hieráticos e triangulares

então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. uma vez que pescou a entrelinha, poder-se-ía, com alívio, jogar a palavra fora. mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. o que salva então é escrever distraidamente

não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. eu não: quero é uma verdade inventada

como o andar de uma negra pantera lustrosa que vi e que andava macio, lento e perigoso - escrevo-te porque não me entendo. mas vou me seguindo. elástica. é um tal mistério essa floresta onde sobrevivo para ser

há muita coisa a dizer que não sei como dizer. faltam as palavras. mas recuso-me a inventar novas. as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. e o que é proibido eu adivinho. se houver força. atrás do pensamento não há palavras: é-se

e sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico, fantástico e gigantesco: a vida é sobrenatural. e caminho segurando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa. caminho até o limite do meu sonho grande. vejo a fúria dos impulsos viscerais: vísceras torturadas me guiam. não gosto do que acabo de escrever - mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu

e respeito muito o que eu me aconteço

minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço

estou sendo antimelódica. comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários. para onde vou? e a resposta é: vou

quando eu morrer então nunca terei nascido e vivido: a morte apaga os traços de espuma do mar na praia

agora é um instante

já é outro agora

e outro. meu esforço: trazer agora o futuro para já

mais que um instante, quero o seu fluxo - o que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha

ouve-me, ouve meu silêncio. o que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. quando digo "águas abundantes" estou falando da força de corpo nas águas do mundo. capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. lê a energia que está no meu silêncio. ah! tenho medo de deus e do seu silêncio

sou-me

mas há também o mistério do impessoal que é o "it". eu tenho o impessoal dentro de mim e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou um impessoal de caroço seco e germinativo. meu pessoal é húmus na terra e vive do apodrecimento. meu "it" é duro como uma pedra-seixo

a prece profunda é uma meditação sobre o nada. é o contacto seco e eléctrico consigo, um consigo impessoal

a verdade está em alguma parte. mas, inútil pensar. não a descobrirei e, no entanto, vivo dela

tenho certo medo de mim, não sou de confiança e desconfio do meu falso poder

esta é a palavra de quem não pode. não dirijo nada. nem as minhas próprias palavras. mas não é triste: é humildade alegre. eu, que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. e estremece em mim o mundo

estou livre? tem qualquer coisa que ainda me prende. ou prendo-me a ela? também é assim: não estou toda solta por estar em união com tudo. aliás, uma pessoa é tudo. não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo

esta palavra a ti é promíscua? gostaria que não fosse, eu não sou promíscua. mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro

na hora de pintar ou escrever sou anônima. meu profundo anonimato que nunca ninguém tocou

e ninguém é eu. ninguém é você. esta é a solidão

nunca é o impossível. gosto de nunca. também gosto de sempre. que há entre nunca e sempre que os liga tão indiretamente e intimamente?

no fundo de tudo há a aleluia

minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. a impressão é que estou por nascer e não consigo

ouço o ribombo oco do tempo. e o mundo, surdamente, se formando. se eu ouço, é porque existo antes da formação do tempo. "eu sou" é o mundo. mundo sem tempo. a minha consciência agora é leve e é ar. o ar não tem lugar nem época. o ar é o não-lugar onde tudo vai existir. o que estou escrevendo é música do ar. a formação do mundo. pouco a pouco se aproxima o que vai ser. o que vai ser já é. o futuro é para a frente e para trás e para os lados. o futuro é o que sempre existiu e sempre existirá. mesmo que seja abolido o tempo? o que estou te escrevendo não é para se ler - é para se ser

a coragem de viver: deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em silêncio

calo-me

bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. mas ainda mais atrás há o coração batendo

assim, o mais profundo pensamento é o coração batendo

que música belíssima ouço no profundo de mim. é feita de traços geométricos se entrecruzando no ar. é música de câmara. música de câmara é sem melodia. é modo de expressar o silêncio. o que te escrevo é de câmara

não tenho estilo de vida: atingi o impessoal, o que é tão difícil. daqui a pouco, a Ordem vai me mandar ultrapassar o máximo. ultrapassar o máximo é viver o elemento puro. tem pessoas que não aguentam: vomitam

mas eu estou habituada ao sangue

arrepio-me toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. os bichos me fantasticam. eles são o tempo que não se conta. pareço ter certo horror daquela criatura viva que não é humana e que tem meus próprios instintos embora livres e indomáveis

animal nunca substitui uma coisa por outra

não humanizo bicho porque é ofensa - há de respeitar-lhe a natureza - eu é que me animalizo. não é difícil e vem, simplesmente. é só não lutar contra, e é só entregar-se

não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. eles às vezes chamam do longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. é o chamado

nada existe de mais difícil do que entregar-se ao instante. esta dificuldade é dor humana. é nossa. eu me entrego em palavras e me entrego quando pinto

mesmo para os descrentes há o instante do desespero, que é divino: a ausência do deus é um ato de religião

estou cansada. meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo

você há de me perguntar porque tomo conta do mundo. é que nasci incumbida

não vê que isto aqui é como filho nascendo? dói. dor é vida exacerbada. o processo dói. vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. é o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar. e o sangue agradece. respiro, respiro. às vezes não aguento a força da inspiração. então pinto abafado

é tão bom que as coisas não dependam de mim

mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas - nunca o ato de entrega se fará. tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e, sobretudo, a incompreensão. e quem sou eu para ousar pensar? devo é entregar-me. como se faz? sei porém que só andando é que se sabe andar e - milagre - se anda

como te explicar? vou tentar. é que estou percebendo uma realidade enviesada. vista por um corte oblíquo. só agora pressenti o oblíquo da vida. antes só via através de cortes retos e paralelos. não percebia o sonso traço enviesado. agora adivinho que a vida é outra. que viver não é só desenrolar sentimentos grossos - é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição

a vida oblíqua é muito íntima, não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta

sim a vida é muito oriental

só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. é como saber arrumar flores num jarro: uma sabedoria quase inútil. essa liberdade fugitiva de vida não deve jamais ser esquecida: deve estar presente como um eflúvio

viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto

lembrar-se com saudade é como se despedir de novo

só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. e está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência

a vida oblíqua? bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha

nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo

vivo de um segredo que se irradia em raios luminosos que me ofuscariam se eu não os cobrisse com um manto pesado de falsas certezas

eu vivo de lado - lugar onde a luz central não me cresta. e falo bem baixo para que os ouvidos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir

mas conheço também outra vida ainda. conheço e quero-a e devoro-a truculentamente. é uma vida de violência mágica. é misteriosa e enfeitiçante. nela as cobras se enlaçam enquanto as estrelas tremem. gotas de água pingam na obscuridade fosforescente da gruta. nesse escuro as flores se entrelaçam em jardim feérico e úmido. e eu sou a feiticeira dessa bacanal muda. sinto-me derrotada pela minha própria corruptibilidade. e vejo que sou intrinsecamente má. é apenas por pura bondade que sou boa. derrotada por mim mesma. que me levo aos caminhos da salamandra, gênio que governa o fogo e nele vive. e dou-me como oferenda aos mortos. faço encantações no solstício, espectro de dragão exorcizado

minha anarquia obedece subterraneamente a uma lei onde lido, oculta, com astronomia, matemática e mecânica. a liturgia dos enxames dissonantes dos insetos que saem dos pântanos nevoentos e pestilentos. insetos, sapos, piolhos, moscas, pulgas e percevejos - tudo nascido de uma corrupta germinação malsã de larvas. e minha fome se alimenta desses seres putrefatos em decomposição. meu rito é purificador de forças. mas existe malignidade na selva. bebo um gole de sangue que me plenifica toda. ouço címbalos e trombetas e tamborins que enchem o ar de barulhos e marulhos abafando então o silêncio do disco do sol e seu prodígio. quero um manto tecido com fios de ouro solar

o sol é a tensão mágica do silêncio

na minha viagem aos mistérios ouço a planta carnívora que lamenta tempos imemoriais: e tenho pesadelos obscenos sob ventos doentios. estou encantada, seduzida, arrebatada por vozes furtivas. as inscrições cuneiformes quase ininteligíveis falam de como conceber e dão fórmulas de como se alimentar da força das trevas. falam das fêmeas nuas e rastejantes. e o eclipse do sol causa terror secreto que, no entanto, anuncia um esplendor do coração. ponho sobre os cabelos o diadema de bronze

e na minha noite sinto o mal que me domina. o que se chama de bela paisagem não me causa senão cansaço. gosto é das paisagens de terra esturricada e seca, com árvores contorcidas e montanhas feitas de rocha e com uma luz alvar e suspensa. ali, sim, é que a beleza recôndita está. sei que também não gostas de arte. nasci dura, heróica, solitária e em pé. e encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. a feiúra é o meu estandarte de guerra. eu amo o feio com um amor de igual para igual. e desafio a morte. eu - eu sou a minha própria morte. e ninguém vai mais longe. o que há de bárbaro em mim procura o bárbaro cruel fora de mim. vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. sou uma árvore que arde com duro prazer. só uma doçura me possui: a conivência com o mundo. eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. é o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar, comiseravelmente, o sacrifício da noite

equilíbrio perigoso, o meu, perigo de morte de alma. a noite de hoje me olha com entorpecimento, azinhavre e visgo. quero dentro desta noite que é mais longa que a vida, quero, dentro desta noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva. quero a seguinte palavra: esplendidez, esplendidez é a fruta na sua suculência, fruta sem tristeza. quero lonjuras. minha selvagem intuição de mim mesma. mas o meu principal está sempre escondido

sou implícita. e quando vou me explicitar perco a úmida intimidade

a ventania me chama. sigo-a e me estraçalho. se eu não entrar no jogo que se desdobra em vida perderei a própria vida num suicídio da minha espécie. protejo com o fogo meu jogo de vida. quando a existência de mim e do mundo ficam insustentáveis pela razão - então me solto e sigo uma verdade latente - será que eu reconheceria a verdade se esta se comprovasse?

é a luz secreta de uma sabedoria da fatalidade: a pedra fundamental da terra

no meu mundo pouca liberdade de ação me é concedida. sou livre apenas para executar os gestos fatais

estou me fazendo, eu me faço até chegar ao caroço

de mim no mundo quero te dizer da força que me guia e me traz o próprio mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e das curvas que são organicamente ligadas a outras formas curvas. meu grafismo e minhas circunvoluções são potentes e a liberdade que sopra no verão tem a fatalidade em si mesma. o erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência de minha voz

eu te escrevo com minha voz

estou sentindo o martírio de uma inoportuna sensualidade. de madrugada acordo cheia de frutos

quem virá colher os frutos de minha vida? senão tu e eu mesma? porque é que as coisas um instante antes de acontecerem parecem já ter acontecido? é uma questão de simultaneidade do tempo. e eis que te faço perguntas e muitas estas serão

porque sou uma pergunta

atrás do pensamento atinjo um estado. recuso-me a dividi-lo em palavras - e o que não posso e não quero exprimir fica sendo o mais secreto dos meus segredos. sei que tenho medo de momentos nos quais não uso o pensamento. é um momentâneo estado difícil de ser alcançado, e que, todo secreto, não usa mais as palavras com que se produzem pensamentos. não usar palavras é perder a identidade? é se perder nas essenciais trevas daninhas?

perco a identidade do mundo em mim e existo sem garantias. realizo o realizável mas o irrealizável eu vivo e o significado de mim e do mundo e de ti não é evidente. é fantástico, e lido comigo nesses momentos com imensa delicadeza. deus é uma forma de ser? é a abstração que se materializa na natureza do que existe? minhas raízes estão nas trevas divinas. raízes sonolentas. vacilando nas escuridões

e eis que sinto que em breve nos separaremos. minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. agora sei - sou só. eu e a minha liberdade que não sei usar. grande responsabilidade da solidão

quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama

quanto a mim, assumo a minha solidão. que às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor

e a dor, silêncio

guardo o seu nome em silêncio

preciso de segredos para viver

para cada um de nós e - em algum momento perdido na vida - anuncia-se uma missão a cumprir? recuso-me, porém, a qualquer missão

não cumpro nada, apenas vivo

é tão curioso e difícil substituir agora o pincel por essa coisa estranhamente familiar mas sempre remota, a palavra. a beleza extrema e íntima está nela. mas é inalcançável - e quando está ao alcance eis que é ilusório porque, de novo, continua inalcançável. evola-se da minha pintura e destas minhas palavras acotoveladas um silêncio que também é como o substrato dos olhos

há uma coisa que me escapa o tempo todo. quando não escapa, ganho uma certeza: a vida é outra. tem um estilo subjacente

escrevo-te em desordem, bem sei. mas é como vivo. eu só trabalho com achados e perdidos

sim, o que te escrevo não é de ninguém. e essa liberdade de ninguém é muito perigosa. é como o infinito, que tem cor de ar

vou te dizer uma coisa: não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. eu pinto um "isto". e escrevo um "isto" - é tudo o que posso. inquieta. os litros de sangue que circulam nas veias. os músculos se contraindo e retraindo. a aura do corpo em plenilúnio

parambólica - o que quer que queira dizer essa palavra. parambólica que sou

não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs

eu sou uma cadeira e duas maçãs

e não me somo

tente entender o que pinto e o que escrevo agora. vou explicar: na pintura, como na escritura, procuro ver estritamente no momento em que vejo - e não ver através da memória de ter visto num instante passado

o instante é este

o instante é de uma iminência que me tira o fôlego. o instante é, em si mesmo, iminente. ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante

foi assim que vi o portal de igreja que pintei. você discutiu o excesso de simetria. deixa eu te explicar: a simetria foi a coisa mais conseguida que fiz. perdi o medo da simetria depois da desordem da inspiração. é preciso experiência ou coragem para revalorizar a simetria, quando facilmente se pode imitar o falso assimétrico, uma das originalidades mais comuns. minha simetria nos portais da igreja é concentrada, conseguida, mas não dogmática. é perpassada pela esperança de que duas assimetrias encontrar-se-ão na simetria. esta como solução terceira: a síntese. daí talvez o ar despojado dos portais, a delicadeza de coisa vivida e depois revivida, e não um certo arrojo inconsequente dos que não sabem

não, não é propriamente tranquilidade o que está ali

há uma dura luta pela coisa que apesar de corroída se mantém de pé. e nas cores mais densas há uma lividez daquilo que mesmo torto está de pé. minhas cruzes são entortadas por séculos de mortificação. os portais já são um prenúncio de altares? o silêncio dos portais. o esverdeamento deles toma um tom do que estivesse entre vida e morte, uma intensidade de crepúsculo

e nas cores quietas há bronze velho e aço - e tudo ampliado por um silêncio de coisas perdidas e encontradas no chão da íngreme estrada. sinto uma longa estrada e poeira até chegar ao pouso do quadro. mesmo que os portais não se abram. ou já é igreja o portal da igreja, e diante dele já se chegou?

mas agora estou interessada pelo mistério do espelho

procuro um meio de pintá-lo ou falar dele com a palavra. mas o que é um espelho? não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? espelho não é coisa criada e sim nascida? não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é o espelho. como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que para o vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. e mal posso falar, de tanto silêncio desdobrado em outros

espelho? esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. e é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. ver-se a si mesmo é extraordinário. como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. do deserto também voltaria vazia, iluminada e translúcida, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho

a sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. espelho é luz. um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo

tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado e ele cresce assim como água se derrama

o que é um espelho? é o único material inventado que é natural. quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da sua própria imagem - esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa. para isso há de surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. corpo da coisa

ao pintá-lo precisei de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas:

viu o espelho propriamente dito

e descobriu os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro bloco de gelo. espelho é frio e gelo. mas há a sucessão de escuridões dentro dele - perceber isto é instante muito raro - e é preciso ficar à espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. com cores de preto e branco recapturei na tela sua luminosidade trêmula. com o mesmo preto e branco recapturo também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. é preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se se recriasse a violenta ausência de gosto da água

não, eu não descrevi o espelho - eu fui ele. e as palavras são elas mesmas, sem tom de discurso

bem sei que terei que parar. não por falta de palavras mas porque estas coisas e sobretudo as que só penso e não escrevi - não se dizem. vou falar do que se chama a experiência. é a experiência de pedir socorro e o socorro ser dado. talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. eu pedi socorro e não me foi negado. senti-me então como se eu fosse um tigre com flecha mortal cravada na carne que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem teria coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. e então há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão perigoso como criança. e, aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, arranca a flecha fincada

e o tigre? não se pode agradecer. então eu dou umas voltas vagarosas em frente à pessoa e hesito. lambo uma das patas e depois, como não é a palavra que tem então importância, afasto-me silenciosamente

o que sou neste instante? sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na húmida e escura madrugada. há muito já não sou gente, quiseram que eu fosse um objeto. sou um objeto. objeto sujo de sangue. sou um objeto que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. ela exige. o mecanicismo exige e exige a minha vida

mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto que seja um objeto que grita. há uma coisa dentro de mim que dói. ah como dói e como grita pedindo socorro. mas faltam lágrimas na máquina que sou, sou um objeto sem destino. sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano. o que me salva é grito. eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento

sou um objeto urgente

agora - silêncio e leve espanto

porque às cinco da madrugada de hoje, 25 de julho, caí em estado de graça

foi uma sensação súbita mas suavíssima. a luminosidade sorria no ar: exatamente isto. era um suspiro do mundo. não sei explicar, assim como não se sabe contar sobre a aurora a um cego. é indizível o que me aconteceu em forma de sentir: preciso depressa de tua empatia. sinta comigo. era uma felicidade suprema

mas se você já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte

o estado de graça de que falo não é usado para nada

é como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe e existe o mundo

nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão leve. é uma lucidez de quem não precisa mais adivinhar: sem esforço, sabe. apenas isto: sabe. não me pergunte o quê, porque só posso responder-te do mesmo modo: sabe-se

e há uma bem aventurança física que a nada se compara, o corpo se transforma num dom. e se sente que é um dom porque se está experimentando, em fonte direta, a dádiva de repente indubitável de existir milagrosamente e materialmente

tudo ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação matemática das coisas e da lembrança das pessoas, passa-se a sentir que tudo o que existe respira e exala um finíssimo resplendor de energia. a verdade do mundo, porém, é impalpável

não é, nem de longe, o que mal imagino deve ser o estado de graça dos santos. este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. é apenas a graça de uma pessoa comum que a torna de súbito real porque é comum e humana e reconhecível

as descobertas, nesse sentido, são indizíveis e incomunicáveis. e impensáveis. é por isso que na graça eu me mantive sentada, quieta, silenciosa. é como numa anunciação. não sendo, porém, precedida por anjos. mas é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo

depois, lentamente, saí. não como se tivesse estado em transe - não há nenhum transe - sai-se devagar, com um suspiro de quem teve tudo como o tudo é. também já é um suspiro de saudade. pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma, quer-se mais e mais. inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente

essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação da palavra, fui logo depois procurar no dicionário a palavra "beatitude" que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma... fala em felicidade tranquila - eu chamaria, porém, de transporte ou de levitação. também não gosto da continuação no dicionário que diz: "de quem se absorve em contemplação mística". não é verdade: eu não estava, de modo algum, em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se num cinzeiro

vi quando começou e me tomou. e vi quando se desvaneceu e terminou. não estou mentindo. não tinha tomado nenhuma droga e não foi alucinação. eu sabia quem era eu e quem eram os outros

mas agora quero ver se consigo prender o que me aconteceu usando palavras. ao usá-las estarei destruindo um pouco o que senti - mas é fatal. vou chamar o que se segue de "à margem da beatitude". começa assim, bem devagar:

quando se vê. o acto de ver não tem forma - o que se vê às vezes tem forma, às vezes não. o ato de ver é inefável. e, às vezes, o que é visto também é inefável. e é assim certa espécie de pensar-sentir que chamarei de "liberdade" só para lhe dar um nome. liberdade mesmo - enquanto ato de percepção - não tem forma. e como o verdadeiro pensamento se pensa a si mesmo, essa espécie de pensamento atinge seu objetivo no próprio ato de pensar. não quero dizer com isso que é vagamente ou gratuitamente. acontece que o pensamento primário - enquanto ato de pensamento - já tem forma e é mais facilmente transmissível a si mesmo, ou melhor, à própria pessoa que o está pensando; e tem por isso - por ter forma - um alcance limitado. enquanto o pensamento dito "liberdade" é livre como ato de pensamento. é livre a um ponto que ao próprio pensador esse pensamento parece sem autor

o verdadeiro pensamento parece sem autor

e a beatitude tem essa mesma marca. a beatitude começa no momento em que o ato de pensar liberou-se da necessidade de forma. a beatitude começa no momento em que o pensar-sentir ultrapassou a necessidade de pensar do autor - este não precisa mais pensar e encontra-se agora perto da grandeza do nada. poderia dizer do "tudo". mas "tudo" é quantidade, e quantidade tem limite no seu próprio começo. a verdadeira incomensurabilidade é o nada, que não tem barreiras e é onde uma pessoa pode espraiar seu pensar-sentir

essa beatitude não é em si leiga ou religiosa. e tudo isso não implica necessariamente no problema da existência de um deus, estou falando é que o pensamento do homem e o modo como esse pensar-sentir pode chegar a um grau extremo de incomunicabilidade - que, sem sofisma ou paradoxo, é, ao mesmo tempo, para esse homem, o ponto de comunicabilidade maior. ele se comunica com ele mesmo

dormir nos aproxima muito desse pensamento vazio e, no entanto, pleno. não estou falando do sonho que, no caso, seria um pensamento primário. estou falando em dormir. dormir é abstrair-se e espraiar-se no nada

acabou-se agora a cena que minha liberdade criou

estou triste. um mal estar que vem de o êxtase não caber na vida dos dias. ao êxtase devia se seguir o dormir para atenuar a sua vibração de cristal ecoante. o êxtase tem que ser esquecido

e deus é uma criação monstruosa. eu tenho medo de deus porque ele é total demais para o meu tamanho

e também tenho uma espécie de pudor em relação a ele: há coisas minhas que nem ele sabe

eu, que sou doente da condição humana, eu me revolto: não quero mais ser gente. quem? quem tem misericórdia de nós que sabemos sobre a vida e a morte quando um animal - que eu profundamente invejo - é inconsciente da sua condição? quem tem piedade de nós? somos uns abandonados? uns entregues ao desespero? não, tem que haver um consolo possível. juro: tem que haver

ah! viver é tão desconfortável. tudo aperta: o corpo exige, o espírito não pára, viver parece ter sono e não poder dormir - viver é incômodo. não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito

morrer deve ser uma muda explosão interna. o corpo não aguenta mais ser corpo

eu não tenho é coragem de dizer a verdade que nós sabemos. há palavras proibidas

mas eu denuncio, denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer - e respondo a toda essa infâmia com, exatamente, isto que vai agora ficar escrito - e respondo a toda essa infâmia com a alegria. puríssima e levíssima alegria. a minha única salvação é a alegria. uma alegria atonal dentro do "it" essencial. não faz sentido? pois tem que fazer, porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas - porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável

estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. como resposta. amor impessoal, amor.- é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina

e a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. viver é isto: a alegria. e conformar-me não como vencida mas num allegro com brio

tudo acaba mas o que te escrevo continua. o que é bom, muito bom. o melhor ainda não foi escrito. o melhor está nas entrelinhas

quer ver como continua? esta noite - é difícil te explicar - esta noite sonhei que estava sonhando. será que depois da morte é assim? o sonho de um sonho de um sonho de um sonho?

aquilo que ainda vai ser depois - é agora. agora é o domínio de agora. e enquanto dura a improvisação eu nasço

e eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero - eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. fui ao encontro de mim. calma, alegre, plenitude sem fulminação. simplesmente eu sou eu. e você é você. é vasto, vai durar

o que te escrevo é um "isto", não vai parar: continua

olha para mim e me ama. não: tu olhas para ti e te amas. é o que está certo

o que te escrevo continua e estou enfeitiçada

03/10/2011

eric baret - le sacre du dragon vert

(traduzido e adaptado por nc)

o sagrado é uma não experiência, na origem de todas as experiências. não é possivel fazer a experiência do sagrado, porque ele é a essência profunda das coisas. podemos fazê-lo com o não sagrado, não com o sagrado

podemos apenas ver o que é profano em nós, a intenção, a avidez, tudo o que se situa na progressão, mas não aquilo que é fundamental, o que é sagrado, porque esta qualidade não é um objecto de experiência, é a própria luz que preside a todas as experiências

daí que não possamos de facto dizer: "eu sei, eu conheço!". inversamente, quando dizemos "não sei, não conheço" referimo-nos a esse conhecimento profundo que nunca poderá ser objectivado

dizer "eu sei" é um insulto ao sagrado porque este não pode ser alvo de um conhecimento objectivo. a devoção é uma expressão do sagrado mas não um meio de acesso a ele. se tivermos pressentido intimamente o silêncio, as expressões deste repercutem-se em nós de forma mais directa e clara. no plano fenomenal, sentiremos, como é natural, que certas formas de expressão reflectem mais directamente esse silêncio que outras. há músicas, locais e seres, que nos permitem indubitavelmente pressentir mais o silêncio. podemos considerar como sendo uma forma de devoção, o nosso apreço e simpatia por esses locais, pessoas, músicas, mas ela dirige-se na verdade ao que subjaz a esses elementos

mais que respeitar os objectos, há que respeitar a origem profunda deles

não se trata de uma relação pessoal: quando ficamos maravilhados por um templo, uma música, uma obra de arte, o que verdadeiramente nos toca é aquilo que pressentimos por trás deles. um professor que nos toca surte esse efeito em nós não pela sua verdade mas pela verdade que transparece dele. na índia, quando veneramos os pés de um guru, não nos inclinamos perante um mestre mas perante a verdade e, lá, essa atitude justifica-se, inclinarmo-nos perante sri nisargadatta maharaj, ananda moyi, gopinath karivaj, fazia sentido. em contrapartida, quando encontrei o meu mestre, jean klein, na europa, esboçar esse gesto teria sido deslocado. a expressão do respeito depende do contexto em que vivemos. o verdadeiro respeito é a identidade, sentirmo-nos "um" com o que respeitamos

nesse ponto, tudo se torna o nosso mestre, todas as percepções podem ser sentidas como prolongamentos da consciência: tudo o que vemos, ouvimos, tocamos, não é mais que isso. a certa altura, a devoção que tínhamos por um mestre, por um templo, por um deus, por uma música, desembaraçar-se-á de qualquer objectividade; essa devoção estender-se-á, então, a todos os seres, todos os deuses, em todos os sentidos, visto que, a um nível de profundo, não há diferença que os separe

neste sentido, o verdadeiro sentimento de "respeito" é sempre pela vida, pelo silêncio que se pressente em tudo, não pelas coisas em si mesmas. tudo o que nasce, morre. quando respeitamos uma forma, não é a forma em si que respeitamos, mas o que a envolve, o que é eterno. o respeito dirige-se, unicamente, a esse pressentimento do silêncio. por extensão, naturalmente, respeitamos todas as formas de expressão do mundo: animais, vegetais, humanas. elas são prolongamentos da vida - ou tratamos o nosso vizinho como nosso mestre, humildemente, ou, em caso contrário, algo não se encontra ainda estabilizado em nós

é nessa humildade, de que fala maître eckhart, que podemos aperceber-nos de que todos os nossos empreendimentos nos reconduzem à origem da acção, à carência fundamental que procuramos compensar. mas o que provém da insuficiência, permanece na insuficiência. frequentemente, o movimento pseudo-espiritual traduz-se pela tentativa de aumentar capacidades físicas, psíquicas ou outras, ao sabor da cultura em que ocorre. essa dilatação, apresentada como expressão do essencial, reconduz sempre a um estado de carência

na escuta de que falamos, vamo-nos apercebendo do quanto funcionamos como uma máquina, como um sistema. porém o não saber não antecipa um saber, não projecta um saber, não é mais um meio para. fica apenas um olhar de espanto em que o que chamamos mundo, corpo, deixam de decorrer de explicações. é o corpo que se revela em nós. essa humildade é a base de toda a percepção

manifesta-se uma energia de celebração, não uma energia de desenvolvimento

há uma altura na vida em que começa a eclodir uma maturação no ser humano que o leva a pressentir que aquilo que ele procura profundamente não consiste em experiências com que ele possa envolver-se ou de onde ele possa retirar-se, pela tomada de consciência de que aquilo que ele é pertence à não experiência, ao plano de fundo sobre o qual se inscrevem todas as experiências

acontece um olhar que não olha. todas as percepções apontam para esse olhar. a verdadeira orientação parte da convicção profunda de que aquilo que procuramos não se encontra num plano objectivo. físico ou emocional: que acontece quando não fazemos nada, somos nada? - o corpo, até então constantemente alvo de abuso, começa a falar. para que ele o faça temos que guardar silêncio. a emoção fundamental exprime-se, liberta da restrição de ser associada a uma pessoa. o pensamento proveniente do coração só se torna acessível pela liberdade face à nossa própria emotividade

o pensamento não intencional, o pensamento que provém do silêncio verdadeiro, é a adoração, é por isso que tantos intérpretes de diferentes tradições escreveram orações, mesmo mestres não dualistas como shankaracharya ou abhinavagupta

do ponto de vista da índia tradicional, um ser sensato não se refere à imagem de uma pessoa - é uma das virtudes fundamentais daquele país. nas nossas sociedades modernas (em que a própria índia se tem vindo a tornar) um homem de valor é aquele que é capaz de ganhar fortunas, é a ele que pedimos conselhos e que é visto como um ser amadurecido. no oriente antigo, um homem sábio é um homem livre de si próprio. daí que, na arte tradicional, possamos observar a representação de um rei a inclinar-se perante um asceta

há, sim, mestres de artes, que são uma outra coisa. se quisermos aprender canto, há que fazê-lo com um professor. o mesmo se passa com o yoga e com a meditação, no sentido clássico. mas se nos referirmos a ser profundamente aquilo que somos, isso não está ligado às diferentes vibrações do cérebro, à meditação, ao corpo, ao pensamento, ao que podemos fazer ou não fazer; aí, não há mestre. há mestres de técnica mas não há mestres do ser

num certo sentido, um mestre autêntico pode ser reconhecido pela sua "ausência", não pela sua presença

o desaparecimento físico e depois psíquico, do mestre, é a sua última dádiva

aquilo que podemos observar, face a um ser humano livre de qualquer imagem de si próprio é a sua própria restrição. o simples facto de nos encontrarmos com alguém livre coloca-nos ostensivamente perante a nossa não liberdade

pela mesma ordem de ideias, subtilmente, sofrer, ser vítima de o que quer que seja, é uma pretensão, uma aquisição, uma história. quando sofremos, sentimo-nos alguém, sentimo-nos como sendo qualquer coisa de moral, de honorável

ao invés, quando deixamos uma carência viver-se em nós completamente, sem a compensar, habitar ou exprimir sequer, ela remete-nos sempre para a plenitude. na abertura, é difícil ficarmos muito tempo no sentimento de que nos falta o que quer que seja...

há, sobretudo, que sabermos calar-nos, parar de ouvir o nosso alarido interno. as outras vozes são bem vindas. mas, na maior parte do tempo, apenas ouvimos o que supomos ser a nossa voz, aquela que nos torna a vida difícil e nos gera sofrimento. calando-nos, começamos a poder ouvir todas as outras vozes, é maravilhoso! para isso, antes de mais, temos que para de nos dizer coisas!

na sua maior parte, os seres humanos passam os dias a contarem-se a si próprios as suas histórias: as suas gloriosas vitórias passadas ou futuras ou, alguns, mais pessimistas, auto-relatando-se os seus dramáticos fracassos do passado bem como a probabilidade da sua repetição no futuro; mas vai dar ao mesmo, estamos constantemente a palrar para connosco próprios! nalguns países as pessoas não só se fazem estas narrativas como, ainda por cima, passam o tempo a olhar para si próprias! quando entramos numa casa damos com quarenta e cinco fotografias dos seus proprietários: pequenas, grandes, de todas as épocas do ano, do serviço militar, do casamento, do baptismo e de outros rituais satânicos, em esplendorosos quadros de prata, em forma de coração... é espantosa, esta necessidade constante de auto-confirmação fisionómica, reveladora de um enorme medo...

é esta voz que há que calar

toda a fisiologia mística tende, por facilidade, a ser descrita como se estivesse situada no interior do corpo, mas esses esquemas derivam duma má formulação, ou de uma formulação que deve ser entendida num plano simbólico. os centros de energia, os pontos vitais, não se encontram no interior do corpo, embora, por facilidade pedagógica sejam analogicamente descritos dessa forma. inversamente, é o corpo que se situa no interior desses centros. a energia está constantemente em difusão, o corpo não a poderia jamais conter

nesse sentido, a primeira coisa a aprender no yoga é, por apuramento de sensibilidade, libertar o fluxo respiratório do aparente invólucro corporal em que ele se processa: o corpo é que se encontra na respiração quando esta é percepcionada num sentido não estritamente fisiológico

por outro lado, há que evitar tornarmo-nos demasiado românticos relativamente aos hipotéticos significados das doenças, dos cansaços... é plausível que a nossa maneira de viver vá criando antagonismos que, mais tarde, venham a converter-se numa doença, mas há pessoas que nunca estão doentes e, nelas, essa forma de saúde funciona como um mecanismo de defesa e uma perda de sensibilidade. nem sempre a doença é sinal de conflito. pode sê-lo, de facto, mas não forçosamente em todos os casos. evitemos as generalizações sobre a doença, é preferível largar as conceptualizações sobre este assunto

importa escutar a doença sensorialmente e não seguir pelas "boas intenções" de dizer "aceito". aceitar uma doença é um conceito, com poder de ressonância muito limitado (como todos) mas sentir profundamente a região do corpo que está afectada, sem pretender mudá-la, apenas travar conhecimento com ela, pode conduzir-nos a uma grande inteligência, apenas acessível quando não tocamos nas coisas, quando nos permitimos ser apenas "olhar atento". esse olhar, em si mesmo, faz-nos naturalmente encontrar o médico ou terapeuta adequados, que não se situam, eles sequer, fora dele

duma maneira geral, nem chegamos a sentir a doença, para a maior parte das pessoas ela é uma ideia, expressa na afirmação "estou doente", resultando numa fuga à verdadeira sensação

geralmente, quando a dor se aproxima, há uma série de tensões musculares que se reúnem para a combater ou atenuar, de forma que aquilo que sentimos acaba por ser a reacção à dor, só muito raramente a dor em si

o desequilíbrio é um equilíbrio que se busca a si próprio, é um equilíbrio em movimento. podemos conceder-nos a possibilidade de observar esse desequilíbrio sem fazer nada, sem intervir ou pretender reequilibrar o que quer que seja, ou seja, sem violência

quando falamos de um desequilíbrio verdadeiramente profundo, trata-se, na verdade, de um equilíbrio que está a criar-se, portanto há que sustentar este desequilíbrio, acompanhá-lo, deixar que ele se exprima completamente e, mais cedo ou mais tarde, ele acabará por reintegrar o equilíbrio. um pedagogo ou um terapeuta têm, fundamentalmente, um papel de acompanhantes do desequilíbrio até à sua reabsorção, sem pretenderem eliminar o que quer que seja, senão entram num saco sem fundo

ao fim e ao cabo, originalmente, na índia, aquilo a que chamamos yoga não é mais que isto: aprender a sentir, a escutar, a tocar, a saborear, sem tocar no que sentimos, sem abocanhar o que saboreamos. nesse instante a sensação adquire um imenso poder, ela pode, finalmente, libertar-se

sempre que um acontecimento não corresponde ao nosso plano para o mundo, começamos a pensar - e deixamos de escutar

é quando nos sabemos livres do corpo que podemos a trabalhar o corpo, antes disso não é possível

chega uma altura na vida em que se impõe naturalmente a convicção de que o amanhã não vai ser melhor que o hoje e aí, por fim, confrontamo-nos, não conceptualmente, com o instante presente. se essa convicção for de facto uma impressão última, incontornável - ter como absolutamente adquirido que o que quer que façamos iremos permanecer no mesmo marasmo, nada nem ninguém nos poderá tirar dali - quando nos permitimos impregnar totalmente por essa visão cataclísmica em toda a sua extensão, sem qualquer esperança de vir a saír dali, então poderá acontecer qualquer coisa. porém, o que fazemos habitualmente é considerar que "as coisas até não vão assim tão mal" e caímos no adiamento. há, portanto, que ir um pouco mais longe no desespero... ele chegará, de qualquer maneira, mais tarde ou mais cedo...

18/09/2011

eric baret - le seul désir / dans la nudité des tantra

(tradução e adaptação por nc)


algumas palavras do vigário de thuringe, prior de erfurt, meister eckhart, dirigidas por este aos seus "filhos espirituais" que lhe colocavam todo o tipo de questões quando se reuniam para a refeição da noite

(citado por eric baret)

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os homens dizem: "gostaria tanto de viver a piedade e o fervor que os outros parecem viver, estar em paz com deus como os outros estão, ser verdadeiramente pobre". ou, ainda: "o que quer que eu faça e onde quer que eu esteja, nunca estou satisfeito. gostaria tanto de estar longe de casa, dos meus afazeres, num mosteiro ou num local recolhido..."

na verdade, tudo isto és tu e nada mais, a tua própria vontade, que segues constantemente mesmo sem te dares conta disso. quer o admitas quer não, nunca um descontentamento surge em ti que não seja criação tua

entendamo-nos bem: fugir disto, dirigirmo-nos àquilo, evitar estas ou aquelas pessoas, buscar um modo ou uma ocupação, não é mais que a tua agitação. a causa das tuas dificuldades não está nas coisas, mas em ti nas coisas. donde, olha primeiro para ti e larga-te! na verdade, enquanto não te libertares do teu querer, podes fugir à vontade, mas encontrarás obstáculos e inquietudes por todo o lado

buscar o que quer que seja nas coisas exteriores, a paz, um local de retiro, a sociedade dos homens, uma forma de actuar, nobres escritos, o exílio, a pobreza ou o abandono de tudo e todos, qualquer que seja a suposta grandeza que aí adivinhemos, tudo isto é nada, conta para nada, não nos dá nada - muito menos a paz. uma busca deste teor não conduz a parte nenhuma: quanto mais buscamos desta maneira, menos encontramos o que quer que seja; uma vez tomado um caminho falso, não fazemos mais que afastar-nos, mais e mais, a cada dia

que fazer então? antes de mais, abandonar-se a si próprio e, por extensão, abandonar todas as coisas. na realidade, aquele que renuncia a um reino, que pretende largar o mundo mas conservando-se a si próprio, não renuncia a nada. mas o homem que renuncia a si próprio, o que quer que mantenha, honras, riquezas ou outras, renunciou a todas elas

olha, vê e, aí onde te encontras, renuncia a tudo. eis o mais elevado

dá-te conta de que jamais alguém se abandonou o suficiente ao ponto de não encontrar ainda mais por onde se abandonar. começa, portanto, por aí, morrendo para a acção, é lá que encontrarás a verdadeira paz, em nenhum outro sítio

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saber que a paz não se encontra no mundo mas no olhar de paz que mantemos sobre o mundo (...) que a alegria nunca é para amanhã: ela é hoje ou não será nunca


jacques lusseyran "o mundo começa hoje"

não há criatividade senão na ausência de intenção, na ausência de expectativa. qualquer projecto tem como consequência reter-nos na memória e, aí, deixa de acontecer acção, apenas reacção. passa a haver só repetição. viver sem projecto é ser criativo, pela tomada de consciência de não haver nada a cumprir, nada em que se tornar, apenas presença, de instante a instante

sobre o desejo:

o problema não está no desejo mas nas histórias que construímos em torno dele. quando o desejo se liberta das imagens que lhe colamos, permanece um verdadeiro desejo: o desejo da vida

a vida contém demasiado movimento para que possamos pensá-la, é demasiado bela para que sobre ela façamos projectos. todos os projectos são medíocres. querer este homem, esta mulher, esta religião... porquê privarmo-nos do resto? há que querer tudo! querer coisas específicas é perder o todo, o desejo específico impede a criatividade, a criatividade está no não-desejo - é aí que ela vem ao nosso encontro!

um pintor que quer pintar não consegue pintar. mas ele pode colocar-se em estado de disponibilidade. nessa disponibilidade, da intuição, surge a execução da pintura. querer ser criativo é uma falta de criatividade, significa querermos separar-nos do universo para sermos criativos! querer ser criativo é uma falta de escuta. o querer bloqueia a criatividade

quando deixamos de pensar, recebemos algo que nos ultrapassa. quando pensamos, quando tentamos ser criativos, apenas repetimos tudo aquilo que já sabíamos

o poeta é alguém que sabe calar-se. nesse silêncio, ele ouve a poesia e escreve o que escuta. a criatividade nasce do silêncio, não vem do pensamento

a obra de arte é, por si própria. porque ela provém da própria criatividade, ela situa-se além da compreensão. querer compreender um objecto artístico é permanecer na memória e reduzi-lo às categorias do conhecido. não há que compreender a pintura, a música, a dança, a arquitectura, elas provêm de além do pensamento e irradiam humildade

da mesma forma, a vida é uma obra de arte em que todas as possibilidades se apresentam - sem técnica! a técnica não é mais que memória. darmo-nos conta, a cada instante, de que estamos constantemente no exercício da técnica, que procuramos vencer na vida, que tentamos ser criativos. sem mais, de forma clara, sem juízo, constatar que estamos permanentemente em pretensão, a saber o que é certo e errado, e que nem sequer conseguimos ser de outra maneira

a vida é emoção. viver essa emoção de foma clara. nós não estamos na emoção, é ela que acontece em nós. deixar a tristeza, o medo, a avidez, o desejo, visitarem-nos. eles são carícias, algo se liberta por via deles. mas sem técnica, projecto, futuro
apercebermo-nos de que estamos constantemente a impor ao nosso corpo, ao nosso psiquismo, ao que nos rodeia, uma ideia - "seria melhor assim" - ver a nossa postura de ditadores. quando deixamos o nosso psiquismo e o nosso meio ambiente ser o que são, eles revelam-se e surge uma clareza, surge acção. diferente de ter medo e pretender deixar de ter medo, sentir-se agitado e querer estar tranquilo, por aí fora - porque aqui começamos a tentar valer-nos da técnica e entramos no projecto, no adiamento, na projecção da memória e do conhecido no futuro

sobre a cidadania:

quando deixo de carregar às minhas costas com as chaves para o mundo, quando deixo de transportar as soluções para a vida do vizinho ou para o ambiente, ou para o governo, para o corpo, para o psiquismo, fico disponível para o que se me apresenta aqui, no imediato: a clareza

dela deriva, naturalmente, uma utilização funcional do nosso organismo. não um uso para qualquer coisa mas por qualquer coisa, agente, não objectivo. impossível a noção de um fim, o "fim" é a vida, a cada instante, sem escolha, sem técnica. estamos condenados a ser felizes... agora! - não no futuro, quando se reunirem as condições que constantemente reeditamos e enunciamos como necessárias

quando vivemos na intenção, não podemos ocupar-nos da nossa família. ocupamo-nos apenas de nós próprios, servindo-nos da nossa família para tentarmos garantir a nossa segurança. utilizamos a nossa mulher para obtermos prazer, os filhos para nos sentirmos felizes, o trabalho para encontrarmos uma identidade. não realizamos a actividade de que o país, por hipótese, necessita, ocupamos a função que convém ao nosso esquema. não fazemos o que é correcto para com a nossa mulher, fazemos o necessário para que a nossa mulher faça o que nós queremos. não agimos com os nossos filhos duma forma justa, empurramo-los para o "sucesso" (nos nossos moldes) porque isso nos satisfaz pessoalmente. a acção que emana do dinamismo duma personalidade nunca é funcional, ela traduz-se na manipulação auto-gratificante da realidade ao redor num controlo e cobrança constantes. a realidade torna-se, assim, um instrumento para satisfazer o próprio, para garantir segurança

a profissão, o casamento, a casa, vividos como um casaco adequado: quando o tamanho e o corte do casaco são os correctos, não sentimos que o trazemos vestido, se alguma zona dele "se manifesta", não devemos comprá-lo. o mesmo para um trabalho, o nosso local de residência...

a aprendizagem faz-se por mimetismo e essa via tende a traduzir-se em competência. por extensão, quando fazemos bem qualquer coisa, sentimo-nos contentes e, geralmente, acabamos por conseguir financeiramente sustentar-nos com essa actividade. podemos colocar-nos questões vocacionais mais ou menos estéreis e periféricas mas o que aprendemos por convivência pode bastar a uma vida laboral funcional

numa sociedade como a nossa em que aprendemos tardiamente o nosso trabalho, as capacidades ficam limitadas, duma forma geral, ao plano técnico e conceptual. aí, incapazes de exprimir o que quer que seja de criativo, podemos tornar-nos agentes imobiliários, terapeutas, homens políticos ou gurus...

mas, ainda aqui, o problema é essencialmente de natureza psicológica: num espírito livre de preconceitos, se nos sentirmos músicos e tivermos que trabalhar numa fábrica, permaneceremos músicos pelo coração, agindo como operários, sem qualquer contrariedade

em termos práticos, quanto mais vamos ficando livres da ficção de nos julgarmos qualquer coisa de objectivo, mais haverá facilidade de adaptação a qualquer cenário particular - não exigimos ao nosso trabalho que seja agradável. encaramo-lo duma maneira funcional. nesse instante, dá-se uma descompressão. e porque ela ocorre, a complexidade, a beleza, a justificação profunda do nosso trabalho naquele momento - que, até então, por preconceito, julgávamos medíocre e desinteressante - vai apresentar-se. então, podemos subsistir felizes em qualquer actividade. o nosso corpo poderia preferir deitar-se mais cedo, trabalhar menos, mas não há ali um problema. não há conflito psicológico, não há patologia. pode haver conflitos funcionais mas sem ramificações psicológicas. eles não existem fora do instante imediato e não deixam traços no nosso psiquismo, deixa de haver a possibilidade de nos sentirmos sufocados pelo ambiente ao redor

regressando ainda ao exemplo do casaco: não o devemos sentir, não devemos sentir psicologicamente o nosso trabalho, ou o nosso cônjuge ou a nossa casa, não devemos sentir nada! quando não sentimos mais nada psicologicamente, aí sentimos verdadeiramente!

sobre o silêncio:

não podemos dizer o que é o silêncio. mas podemos afirmar que o silêncio é aquilo que queremos profundamente, aquilo de que sentimos nostalgia. as nossa tentativas no sentido de obter isto ou aquilo, na verdade, testemunham, de facto, essa nostalgia do silêncio

todos os desejos são uma nostalgia da ausência de desejo, ausência esta que é uma outra forma de designar o silêncio, a tranquilidade profunda

no plano relativo, o silêncio mental é um reflexo do verdadeiro silêncio

esse silêncio último pode ser vivido em simultâneo à actividade mental

da mesma forma, o mental pode estar silencioso e o silêncio profundo permanecer desconhecido

nesse sentido, o silêncio mental, o silêncio do mundo, não são temáticas do shivaísmo cachemiriano - como uma porta, o silêncio mental abre para qualquer coisa, mas não é a porta que nós procuramos

isso sobre o que o silêncio mundano pode abrir não é uma mulher, nem um automóvel vermelho, nem mesmo o silêncio, nem mesmo a felicidade: não há palavras que o descrevam! não provém mais da inactividade que da actividade mental, mas este pressentimento reflecte-se num espírito tranquilo. o espírito tranquilo não cria o silêncio mas torna-se-lhe disponível, e o êxtase que este recebe dele preenche-o mais do que qualquer objecto

a poesia conduz a esse silêncio, tal como a música, a arquitectura, o teatro, mais que quaisquer explicações, discursos ou afirmações

por ser difícil pressentir este reflexo num espírito agitado, pode até afirmar-se como apropriada a atitude de disponibilização do corpo e do espírito. não que isto seja necessário, mas tal pode impôr-se, isento de qualquer intenção de apropriação na investigação da disponibilidade mental e corporal

a sensorialidade é o que vai mais longe no pressentimento do silêncio. o aroma da terra, os uivos dos coiotes no novo méxico, o som de uma serpente a deslizar na areia, a visão de uma pedra ou de um caixote de lixo, a sensação da água a escorrer na pele, conduzirão sempre ao silêncio mais que qualquer reflexão alguma vez o permitiu. aí não há senão abertura. uma discussão não pode conduzir ao silêncio. ela pode, na melhor das hipóteses, como acontecia com sócrates, levar a uma percepção dos limites do mental. quando o mental constata os seus limites, torna-se mera função

todas as compreensões fazem referência àquilo que a pessoa já sabe. pouco a pouco, o mental vai perdendo a sua pretensão de compreender o que o ultrapassa. damo-nos conta de que não podemos pensar um ser humano, não podemos pensar a verdade, não podemos pensar a alegria, não podemos pensar um fio de erva. aí, o mental perde a sua pretensão e transforma-se num instrumento, como as pernas. quando temos necessidade de discriminar, servimo-nos do pensamento. mas deixamos de utilizar o mental em busca da verdade

eis a marca de uma verdadeira inteligência: utilizar o pensamento apenas para aquilo em que ele é necessário. a busca da verdade não tem qualquer conexão com a reflexão. o pensamento serve, ao fim e ao cabo e apenas, para exprimir os seus próprios limites

no mesmo sentido, as vias progressivas põem a tónica na ideia de permanecer aberto. a via directa, porém, dirige-se à abertura, sem mais. a abertura não depende do facto de se estar ou não aberto. quando a abertura é pressentida, estamos passivos e ela prevalece. tornar-se aberto é uma actividade. qualquer intenção de abertura fixa a pessoa na ideia de estar ou tornar-se aberta: o ser aberto, o yogi, o sábio! - todos estes esforços nos distanciam da abertura, que é não ser. na via directa, não é colocada nenhuma ênfase no facto de ficar aberto, mas sim na própria abertura: nesta perspectiva, o yoga é uma expressão da liberdade, não um meio para a atingir

no momento em que me apercebo de que começo a pretender que sei o que é melhor, há que aperceber-me igualmente, desde logo, de que é impossível sabê-lo, que não posso saber o que é melhor para mim, para os meus filhos, para o que me rodeia, para o mundo. não posso saber se a paz ou a guerra, a saúde ou a doença, os aparentes sucessos ou derrotas são ou não convenientes ao que está à minha volta. no instante em que essa evidência me surge há tranquilidade, há ressonância com o que está ali, no imediato. é um não-projecto. o projecto é apenas aquilo que acontece ali, no instante. pressentir-se sem projecto, eis o que podemos chamar meditação

em contrapartida, querer sentar-se para ficar tranquilo quando alimentamos um sem número de projectos para os nossos filhos, para a nossa saúde, para o nosso corpo, é impossível. é inútil dar-se ares de tranquilidade. não "acomodemos" a meditação. evitar a mania de meditar todos os dias a certa hora. é um insulto! é um pouco como se nos propuséssemos amar o nosso filho todos os dias de tal a tal hora. ou meditamos ou não meditamos. amamos ou não amamos. não são actividades!

levantar-se de manhã e ir meditar não tem qualquer sentido excepto se o fizermos como quem vai à casa de banho: fazemo-lo sem qualquer veleidade de nos iluminarmos com o procedimento mas simplesmente porque nos é natural, como lavar os dentes, passar água pela cara, etc, atitudes comuns da vida quotidiana

o jean klein dizia que meditar voluntariamente é como querer não apanhar o combóio: se não queremos apanhar o combóio, não há nada a fazer para isso, simplesmente não o apanhamos, não nos dirigimos à estação à hora certa para o deixar ir!

isto lembra-me um amigo meu que se tornou um guru famoso e sobre quem um outro amigo comentava: "eu sinto que ele atingiu um certo silêncio mas o silêncio não o atingiu a ele!" o que me soou particularmente inspirado como apontamento sobre esse amigo "iluminado" - se meditamos com um objectivo, com um horário, poderemos lograr alguma forma de silêncio mas o silêncio provavelmente não nos tocará jamais

sentarmo-nos em silêncio simplesmente pela alegria de nos sentarmos em silêncio! - na índia, todas as noites ou todas as manhãs, as pessoas procedem a rituais à frente das suas casas. se lhes perguntarmos porque o fazem, elas não entendem sequer a pergunta. fazem-no porque há que fazê-lo, está na natureza das coisas fazerem-no. não há qualquer razão para limpar um templo ou uma igreja, para dançar ou praticar yoga: é a vida que faz como que sintamos o impulso de limpar o templo, de praticar yoga ou outra arte qualquer, casarmos, divorciar-nos... não há nada de intrínseco ali, não nos traz nada. faz-se pela alegria de viver. familiarizemo-nos com esta capacidade de agir sem razão...

meditar intencionalmente pode separar-nos da verdadeira meditação que são, ao fim e ao cabo, momentos involuntários na vida em que somos simplesmente, convidados ao silêncio

na verdade a pesquisa impõe-se, o pressentimento da beleza e da perfeição buscam-se a si próprios, por si próprios, sem terem que ser promovidos

num certo plano, podemos afirmar que a prática do yoga prepara o corpo para que ele possa suportar a explosão da visão, mas sem tal se constitua como um objectivo - não é um processo cumulativo mas um estado de admiração perante a exaltação da sensibilidade e as impensáveis possibilidades sensoriais que, por sua vez, vão cedendo lugar a uma admiração sem objecto. esquecer o que se admira, sem mais espaço sequer para um sujeito admirador. o brilho do encantamento consome, como chama, todas as formas. e isso... somos nós!

toda a nossa actividade física e psicológica é um dado à partida. aquilo que parece um desenvolvimento voluntário é, na verdade, uma concretização inevitável. um atleta de corrida não se torna um grande campeão por se ter intensamente treinado todos os dias. ele correu todos os dias por ser um grande campeão e esse tornou-se naturalmente o fio condutor da sua expressão. qualquer outro poderia ter seguido o mesmo programa de treino sem contudo lograr tornar-se um grande campeão

é a emoção de base que cria a expressão. não é a actividade que cria a qualidade. a qualidade precede a actividade. somos músicos e, depois, aprendemos música. aprender música não gera grandes músicos. possivelmente o músico não sabe disso no início...

o que fazemos é a expressão do que é potencial em nós. o que fazemos não cria o potencial

quanto mais nos situamos no não projecto, mais activos ficamos. ter um projecto é uma forma de passividade. torna-nos repetitivos. deixamos de ver tudo o que não seja o nosso projecto. o mesmo para a reactividade: ela é passiva, é a repetição constante do mesmo esquema

o alcoolico não saboreia o vinho. quando temos necessidade de qualquer coisa, não conseguimos verdadeiramente saboreá-la. para saborear o vinho há que estar livre do vinho. aí, por fim, deixamos o vinho falar

se dermos uma iguaria especial a alguém esfomeado, essa pessoa não vai tomar-lhe o gosto, vai engolir. é o facto de não necessitarmos de comer que nos faz conseguir saborear

da mesma forma, quando não temos necessidade de tocar ou de sermos tocados é que podemos, verdadeiramente, tocar e ser tocados. caso contrário, o contacto fica na pele, não passa dali, não é um verdadeiro toque. quando as mãos estão livres, tocamos de outra forma

na prática do yoga, há que estar livre do corpo para começar verdadeiramente a trabalhar o corpo, sem projecto, sem direcção, sem objectivo

na vida, não esperar nada do que acontece, pela compreensão profunda de que o que procuramos não está no que acontece. o que procuramos é o que somos. não podemos encontrá-lo num automóvel, num marido, numa criança, num corpo, numa religião, ou seja, deixamos de utilizar a beleza da vida para nos encontrarmos nela. quando paramos de tentar utilizar a situação para nos encontrarmos, ficamos disponíveis à situação, podemos funcionar harmoniosamente com os acontecimentos da vida

não podemos passar a vida a mudar o nosso modo de funcionamento. actuamos de acordo com aquilo que se nos apresenta, na legalidade, na ilegalidade... de qualquer forma a vida não se situa aí, trata-se apenas de um uniforme. não podemos passar a vida a mudar de vestimentas a ver se ficamos melhor como santos, ou demónios, ou isto ou aquilo. o traje que trazemos é o certo e, ao apercebermo-nos do facto, deixamo-lo estar. até pode ser que ele mude, pelos acasos da existência. mas deixamos de nos ocupar com a ideia de nos tornarmos ricos se somos pobres ou vice-versa. se o acaso da vida decidir de outra maneira, vamo-lo acompanhando

sempre que se nos impõe mudar de aparência há que fazê-lo! mas a certa altura deixamos de ter tempo ou disponibilidade para sermos outra coisa que não aquilo que somos a cada instante. não temos tempo para nos tornarmos outros, deixa de ser estimulante ir por aí. conservamos as maleitas, as manias, tudo o que nos caracteriza. e damo-nos conta de que as nossas limitações não nos limitam, o nosso contexto não tem eco sobre nós. é nesse sentido que é possível afirmar que há que deixar que existam criminosos, padeiros, sem-abrigo, etc. no sentido de não ficar colado à sua "farda"

no plano humano, a criminalidade destina-se a seres de excepção. é dífícil, como é difícil lidar com as acções na bolsa. exige resistência neurológica e um psiquismo de grande qualidade. pouca gente consegue arriscar com facilidade a sua vida como o soldado, o nadador salva-vidas ou o bombeiro. pouca gente tem a capacidade de pegar numa arma perante um polícia armado. o que tão pouco significa que haja que o fazer para demonstrar o que quer que seja. trata-se apenas da constatação da necessidade de características inatas que não se encontram em toda a gente

na verdade, aquilo que fazemos, tal como aquilo que pensamos, não tem a mínima importância, o que nos permite, precisamente, a certa altura, deixar de perder tempo a ocupar-nos disso! aí, o que é orgânico apresenta-se-nos. sermos budistas, ateus, casados, viúvos, pobres, padeiros ou outra coisa qualquer não tem qualquer importância. a ressonância do essencial não se encontra aí. e quando essa ressonância é percebida, ela manifesta-se também nesses planos, mas não a conseguimos fazer derivar dessas actividades. há que aceitar o nosso terreno. não em forma de resignação mas de acolhimento, viver verdadeiramente com aquilo que se nos apresenta

há pessoas que não conseguem suportar a autoridade e vivem fora da lei. é assim, tão simples quanto isso. não ficam excluídos da tranquilidade última, pelo facto. uns conseguem seguir as leis, outros não. não há sequer escolha ou mérito aqui no meio, é puramente biológico

e isto, por todas as vias: darmo-nos conta, a certa altura, de que aquilo a que chamávamos "prazer egoísta" acaba por ser, como tudo o resto, busca da felicidade e que nada é prazer egoísta. todas as formas de busca do prazer provêm da aspiração à tranquilidade, as diferenças são formais e secundárias. ir dançar, ir à igreja assaltar um banco ou ir praticar yoga, provém da mesma motivação: a busca da tranquilidade. certas actividades parecem mais profundas e adequadas que outras mas tudo isso são aparências. fazer por ganhar muito dinheiro ou procurar ser um grande yogi vai dar ao mesmo (e, às vezes, até coincide!)

26/08/2011

jacques lusseyran - jeremy

a primeira figura com que me deparo, à minha frente, é um velho. e não podem imaginar o quão feliz isso me torna.

não sei se haverá graça maior do que encontrar uma pessoa verdadeiramente velha, ou seja, feliz. é uma dádiva rara visto que, para muitos, a idade acaba por não ser mais que a adição vazia e degradante de anos físicos. mas quando uma pessoa idosa é feliz, ela torna-se tão poderosa que nem precisa de falar: onde ela chega... cura! aquele que neste momento surge na minha memória é assim. chama-se jeremy regard.

não fui eu que lhe atribui este nome. ele pertence-lhe. quantos romancistas gostariam de o ter inventado?

na verdade, gostaria de usar de bastante modéstia ao descrevê-lo - pelo grande que ele era, parecendo, no entanto, tão insignificante. a passagem dele pela minha vida foi tão breve - apenas umas semanas - que já nem consigo lembrar-me do seu corpo. recordo vagamente um homem vigoroso, direito, compacto. sim, um homem pequeno, do ponto de vista da estatura física. não consigo ver-lhe a cara. acho que nunca me interroguei sobre ela, mesmo na época. via sempre uma outra que me parecia muito mais real.

conheci-o em janeiro de 1944, em plena guerra, na alemanha, quando me encontrava num campo de concentração, tinha então dezanove anos. ele era um dos seis mil franceses que foram chegando a buchenwald entre 22 e 26 de janeiro. mas não se assemelhava a nenhum deles.

tenho que me deter aqui, por instantes, porque acabei de escrever a palavra "buchenwald". vou escrevê-la com frequência. mas não esperem uma descrição dos horrores da deportação. eles foram reais e não são agradáveis de enunciar. para termos o direito de falar deles seria necessário sermos "xamãs" - e não apenas do corpo. contentar-me-ei, portanto, com o indispensável, o cenário geral.

referir-me-ei mesmo, por vezes, à deportação, duma forma que poderá soar escandalosa a alguns, ou seja, paradoxal: direi em que é que ela foi positiva, que riquezas ocultas continha.

este tema é recorrente na minha vida pela relevância que assumiu nela, constituindo-se como um sótão transbordante de dor e alegria, de perguntas e respostas.

o jeremy tanbém não falava de campos de concentração, mesmo quando se encontrava lá. não ficava com o olhar agarrado ao fumo que saía dos fornos crematórios nem aos mil e duzentos prisioneiros aterrorizados do bloco 57. ele olhava através disso. no início, não sabia quem ele era. falavam-me do "sócrates".

os meus vizinhos, que eram numerosos, pronunciavam este nome, perfeitamente inesperado, no meio do frio e do medo daquele formigueiro em que todos deambulávamos. "o sócrates disse...", "o sócrates riu-se...". o sócrates estava por ali, um pouco mais adiante, do outro lado desta pequena multidão de homens rapados. eu não entendia porque é que toda aquela gente chamava alguém sócrates. mas tinha vontade de o conhecer.

um dia, por fim, vi-o - quer dizer, devo tê-lo visto, posto que, para dizer a verdade, não guardo memória do nosso primeiro encontro.

só sei que esperava um interlocutor eloquente, de raciocínio brilhante, um metafísico sagaz, um qualquer filósofo de moral triunfante. mas não foi nada disso que encontrei.

ele era simplesmente um soldador duma pequena vila situada aos pés das montanhas de jura. tinha vindo parar a buchenwald por razões que tinham tão pouco a ver com o que de essencial guardo dele que nunca as conheci nem o interroguei sobre elas. o nome dele não era "sócrates", como já sabem, era jeremy, e nunca entendi porque é que este nome não bastava aos seus companheiros.

a história de jeremy era a de um soldador proveniente de uma zona específica do mundo, uma vila em frança. ele adorava referi-lo, entre sorrisos francos. relatava-o de forma simples, tal como qualquer comerciante falaria do seu negócio. e, aqui ou ali, podia discernir-se a prresença de uma segunda forja, uma forja do espírito.

sim, disse "espiritual". sei que esta palavra se foi deteriorando, por excesso de uso, mas tomem-na aqui como verdadeira e plena.

ouvi o jeremy contar que havia homens que vinham à sua loja não apenas pelos seus cavalos ou carruagens mas por eles próprios. vinham para regressarem "ferrados" e renovados, para levarem para casa um pouco da vida de que careciam e que encontravam, transbordante, irradiante e delicada na forja do "pai" jeremy.

naquela altura eu era estudante. praticamente nunca tinha tido contacto com homens assim, eles não são do estilo com que nos cruzamos nas universidades. eu pensava que quando um homem era sábio o explicitava, especificando como e porquê, em articulação com que escola de pensamento. eu pensava, acima de tudo, que para ser sábio havia que pensar, e pensar de forma bem rigorosa.

fiquei de boca aberta perante o jeremy, porque ele não pensava. ele contava histórias, quase sempre as mesmas, abanava os ombros, parecia fazer-nos sentir trespassados por seres invisíveis. tinha sempre o nariz em cima do óbvio, do imediato, do que estava à mão. se se referia à felicidade de um vizinho quando este saía da sua loja, era como se falasse de uma verruga ou de um caroço que tivesse sido removido. observava, com os seus olhos, as coisas do espírito, tal como os médicos observam os micróbios nos seus microscópios. não fazia distinções. e quanto mais eu o observava a fazer isto, menos sentia o peso do ar à minha volta.

fui encontrando pela vida seres surpreendentes, seres cujos gestos e palavras eram tão impactantes que, na sua presença, sentia necessidade de baixar os olhos. o jeremy não era assim, de todo! não estava ali para nos estimular.

não foi sequer a curiosidade que me impeliu para ele. eu precisava dele tal como um homem que está a morrer de sede necessita de água. como todas as coisas importantes, esta era básica, elementar.

ainda consigo ver o jeremy a circular pelas nossas casernas. formava-se um espaço entre nós. ele parava em qualquer lado e, imediatamente, os homens apertavam o círculo, deixando, no entanto, um pouco de espaço à sua volta. tratava-se de um movimento completamente instintivo que não pode ser justificado apenas pela noção de respeito. nós recuávamos mais como alguém que dá uns passos atrás para deixar espaço livre para quem trabalha.

notem que nós éramos mais de mil homens nestes barracões, dos quais pelo menos uns quatrocentos se encontravam muito desconfortáveis. lembrem-se de que estávamos todos profundamente e permanentemente amedrontados. não pensem em nós, naquela situação, como indivíduos, mas como uma massa protoplásmica. na verdade, estávamos colados uns aos outros. os únicos movimentos que fazíamos eram empurrar, agarrar, separar, torcer. donde, podem entender melhor o encanto (para não dizer o "milagre") desta pequena distância, do círculo de espaço que se mantinha em torno do jeremy.

ele não era ameaçador, não era austero, não era, sequer, eloquente. mas estava ali, e isso era tangível. sentia-se como uma mão no ombro, uma mão que inspira respeito, que nos traz a nós próprios quando sentimos que estamos prestes a desaparecer.

sempre que ele aparecia, o ar tornava-se respirável: eu levava com uma lufada de vida na cara. talvez isto não fosse um milagre mas era, pelo menos, um grande evento, do qual apenas ele era capaz. a passagem do jeremy pelo átrio das casernas era isso: uma respiração. na minha memória, consigo acompanhar, com nitidez, o trilho de luz e claridade que ele deixava por entre a multidão.

eu não entendia, na altura, quem ele era, mas conseguia, seguramente, vê-lo. e esta imagem começou a trabalhar, dentro de mim, até que se acendeu como um archote. eu não sabia quem ele era porque ele não dizia.

havia uma história a que ele voltava frequentemente, sobre a seita dos cientologistas cristãos a que ele tinha pertencido. ele tinha mesmo estado na américa uma vez, para conhecer os seus pares. esta aventura, bastante invulgar para um soldador de jura, intrigou-me mas não me esclareceu. trazia mais um véu de mistério à sua pessoa. e era tudo. o jeremy por si, sem histórias, era o que verdadeiramente me importava.

terei que me desculpar por usar tantas imagens associadas a actos simples como comer, respirar... quando me sentia tentado a fazê-lo o jeremy proibia-mo. ele sabia muito bem o quanto as ideias podiam impossibilitar a vida

ele era um verdadeiro trabalhador manual e sabia que em buchenwald não conseguiríamos sobreviver com base nas ideias que tínhamos de buchenwald. ele dizia isto; dizia, mesmo, que muitos de nós morreriam por causa delas. e não estava enganado.

eu sabia de muitos homens que tinham morrido porque tinham sido assassinados por outros. por esses, nada mais havia a fazer senão orar. mas conheci também muitos outros que morreram muito depressa, como moscas, por pensarem que se encontravam no inferno. era desses assuntos que o jeremy falava.

era necessário haver ali um homem com as qualidades de simplicidade e clareza de visão susceptíveis de o levarem às profundezas da realidade, por forma a permitir-lhe ver o fogo e para lá do fogo. era necessário mais que a simples esperança.
era necessário ver.

o jeremy via. havia um espectáculo perante os seus olhos, mas não era aquele a que nós assistíamos. não era o nosso buchenwald, o buchenwald das vítimas. não era uma prisão, ou seja, um lugar de fome, agressões, morte, revolta, em que outros homens, os maus, tinham cometido o crime de nos colocarem. para ele não havia nós, os inocentes, e o outro, o grande e anónimo Outro, com chicote e voz atormentadora - "o carrasco".

como é que eu sabia disto? - é legítimo que perguntem - visto o jeremy quase não se pronunciar sobre estas questões. sem sombra de dúvida, dir-vos-ei que existe em certos seres - como existia nele - uma qualidade de inteireza e rectidão tão apurada que a sua forma de olharem para as coisas se comunica por si, é-nos dada, ao menos por instantes. e nesse espaço, o silêncio é então mais verdadeiro, mas exacto que as palavras.

quando o jeremy vinha ter connosco ao bloco 57, no meio daquele pequeno halo de espaço, o que nos dava era claridade. era uma transbordância de visão, uma nova visão. e era por isso que todos nos aproximávamos dele.

mas sobretudo não fiquem com a ideia de que o jeremy nos consolava. no ponto a que já tínhamos chegado, qualquer consolação teria sido mera fantasia, uma escarnecedora e perversa história para adormecer crianças. não nos encontrávamos no país das maravilhas e se fôssemos suficientemente loucos ou incautos para acreditar nisso um segundo que fosse, o despertar subsequente teria sido deveras amargo.

o discurso do jeremy era duro. mas a sua expressão era delicada, sem volubilidade. tinha uma voz suave, gestos claros e incisivos, decorrentes da prática da sua arte, uma tranquilidade natural. era um "tipo porreiro", garanto-vos, não um profeta.

ele era tão pouco um profeta, gerava tão pouco alarido à sua volta que não sei quantos, da dúzia de homens que sobreviveram àqueles dias do inverno de 1944 na caserna 57, se lembrarão dele hoje em dia. gostaria de não ser o único a conservar esta memória.

não se notava nada de especial no jeremy, nenhum traço invulgar. não empunhava a bandeira de nenhum credo particular, excepto a referência ocasional à cientologia cristã. mas na época, para mim e para outros homens franceses que ali estavam, esta expressão assumia apenas um ressonância bizarra.

nós dirigíamo-nos ao jeremy como a uma nascente, nem nos perguntávamos porquê. não pensávamos nisso. naquele oceano de raiva e sofrimento existia aquela ilha: um homem que não gritava, que não pedia ajuda a ninguém, que se bastava a si próprio.

um homem que não sonhava: isso era, talvez, o mais importante de tudo. todos nós ali éramos sonhadores: sonhávamos com mulheres, filhos, casas, até mesmo com as misérias de outros tempos que tínhamos a fraqueza de classificar como "liberdade". não estávamos em buchenwald. não queríamos ter nada a ver com buchenwald. e cada vez que voltávamos, buchenwald estava ali, intacto, e doía.

o jeremy não se desiludia. para que havia de sonhar? quando o víamos chegar, com a sua imensa serenidade, tínhamos vontade de gritar, "fecha os olhos! - ver isto queima!" - mas o grito ficava nas nossas gargantas porque, comprovadamente, os seus olhos estavam solidamente fixados na nossa desgraça e não pestanejavam. ele não aparentava sequer a atitude de quem transporta consigo um grande fardo, um ar de herói. ele simplesmente não tinha medo, tão naturalmente quanto nós estávamos aterrorizados.

"para quem sabe ver, as coisas são sempre apenas como são", dizia ele. no início eu não entendia. chegava a sentir uma espécie de indignação. "o quê?! - buchenwald como a vida normal? - impossível!" aquele bando de homens dementes e hediondos, a sombra da ameaça da morte, inimigos por todo o lado, entre os ss, até mesmo entre os próprios prisioneiros, aquele pico de colina contra o céu, denso de fumo, com os seus sete círculos, mais adiante na floresta as vedações eléctricas, tudo isto "o habitual"!? lembro-me da minha incapacidade para aceitar a ideia. as coisas tinham que ser piores ou, senão, ao menos mais belas! até que o jeremy me permitiu ver.

não foi uma iluminação, uma encandeante revelação da verdade, não me parece que tenha havido sequer uma troca de palavras. mas um dia tornou-se-me óbvio, palpável na carne, que o soldador jeremy me tinha emprestado os seus olhos.

com esses olhos eu vi que buchenwald não era único, nem sequer privilegiado, por ser um dos lugares de maior sofrimento humano. vi também que o nosso campo não ficava na alemanha, como pensávamos, no coração de thuringe, dominando o planalto de iena, neste sítio específico e não outro. jeremy ensinou-me, com os seus olhos, que buchenwald estava em cada um de nós, cozido e recozido, acalentado incessantemente, alimentado duma forma horrenda. e que, portanto, podíamos vencê-lo, se o desejássemos com suficiente força e determinação.

"como sempre", explicava-se o jeremy por vezes. ele tinha visto constantemente pessoas a viverem amedrontadas e reféns do mais invencível de todos os medos: aquele que não tem objecto. tinha visto muitas delas a desejarem secretamente e acima de tudo uma coisa: fazerem mal a si próprias. era constante, estava sempre ali, o mesmo espectáculo. acontecia apenas que as condições se tinham, por fim, reunido de forma completa. a guerra, o nazismo, as loucuras da política e dos nacionalismos tinham criado uma obra-prima, uma patologia e uma tragédia perfeitas: o campo de concentração.

para nós, claro, esta era a primeira vez. o jeremy não sustentava a nossa surpresa. dizia que ela não era honesta e que nos fazia mal.

dizia que na vida comum, com olhos de ver, teríamos observado os mesmo horrores. e, mesmo assim, tínhamos logrado ser felizes antes. pois bem! - os nazis tinham-nos dado um terrível microscópio: o campo de concentração. mas isso não era razão para parar de viver.

o jeremy era um exemplo: ele encontrou alegria no seio do bloco 57. ele encontrou-a em momentos ao longo do dia em que nós só encontrávamos medo. e encontrou-a em tal abundância que, quando estava presente, ela acendia-se em nós. sensação inexplicável, incrível mesmo, no sítio onde nos encontrávamos: a alegria a preencher-nos. conseguem imaginar a dádiva que o jeremy nos fez?! não percebíamos mas agradeciamos-lhe, uma e outra vez, constantemente.

que tipo de alegria? aqui vão algumas toscas tentativas de explicação: a alegria de estar vivo neste momento, no seguinte, cada vez que nos tornávamos conscientes do facto. a alegria de sentir a vida dos outros, de alguns dos outros pelo menos, junto a nós, na escuridão da noite. o que é que eu sei, o que é que eu posso dizer mais? não vos chega?

era mais do que suficiente para nós. era uma absolvição, um bálsamo, uma moratória, assim, sem mais nem menos, a uns passos do inferno. eu fiquei a conhecer este estado de espírito através do jeremy. tal como aconteceu com outros, seguramente. a alegria de descobrir que a alegria existe, que está em nós, tal como a vida, sem condições, e que nenhuma condição, mesmo a pior, a pode matar.

tudo isto, dirão, proveio do jeremy porque ele era um homem lúcido. mas eu não disse que ele era lúcido - esta qualidade pertence à inteligência e o jeremy não se sentia em casa no mundo da inteligência. eu disse que ele via. falo-vos dele como uma oração viva.

pessoas mais exigentes poderão argumentar que a fé do jeremy era cega, inquebrantável, sem matizes. que importa! para ele, e para nós através dele, o mundo era salvo a cada segundo. esta benção não tinha fim. e, quando findava, era porque nós tínhamos parado de a ver, porque nós - e não ela - a tínhamos abandonado.

não se trata de grandes palavras. e se, ainda assim, ficarem com essa impressão, é pela minha inépcia para expressá-lo duma forma mais fiel

o jeremy era um homem comum, comum e sobrenatural, apenas isso.

era perfeitamente possível viver ao lado dele durante semanas a fio e nem dar por ele, vendo-o apenas como "um velhote um pouco diferente dos outros". ele não era espectacular como um herói nem chamava por ninguém como os vendedores ambulantes.

o que era sobrenatural nele claramente não lhe pertencia; existia para ser partilhado. o espectáculo, a existir, era para ser encontrado por nós e em nós próprios. tenho uma recordação muito clara de o ter encontrado. apercebi-me um dia, tal como outros, de um pequeno lugar em mim onde eu não tremia, onde não sentia vergonha, onde os agentes da morte eram apenas fantasmas, onde a vida não dependia da presença ou ausência do campo. e devo isso ao jeremy.

transporto este homem nas minhas memórias como se carrega uma imagem abençoada.

e então, como é que ele desapareceu? não faço ideia. seja como for, sem um som, tal como apareceu.

um dia, alguém me disse que ele tinha morrido. isto aconteceu várias semanas após a nossa chegada ao campo. era o que acontecia com os homens naquele sítio. quase nunca sabíamos como. desapareciam em grande número duma assentada: ninguém tinha tempo ou sentia vontade de se debruçar sobre os pormenores do "como" da sua morte. deixávamo-los fundirem-se com a massa dos desaparecidos. havia um fundo consistente de morte em que todos participávamos mais ou menos, nós, os que estávamos vivos. a morte dos outros era de tal forma um assunto nosso que não tínhamos coragem de a olhar de frente.

não me lembro do "como" da partida do jeremy. lembro-me apenas de ele ter vindo ver-me, alguns dias antes, e dizer-me que seria a última vez. sem, de todo, assumir o tom de quem anuncia uma triste ocorrência, sem solenidade. simplesmente - esta era a última vez e por assim ser, ele tinha vindo comunicar-mo.

não creio que me tenha provocado dor, não deve ter sido doloroso. de facto não foi, porque era real e conhecido. ele tinha sido útil. tinha o direito de deixar este mundo, que tinha vivido em pleno.

tenho a plena noção de que me perguntarão: "o que é que vês de tão sobrenatural no teu soldador?!" ele deu-te um exemplo de serenidade numa altura em que essa qualidade era muito difícil de manter. é bom, mas é tudo. a paz interior do jeremy era o resultado de coragem e de uma constituição sólida!".

pois... não concordo! - não faríamos justiça ao valor do jeremy por esta apreciação.

o que chamo "sobrenatural" nele é a capacidade para romper com hábitos de que se foi claramente apercebendo em si. esses hábitos de julgamento que nos fazem classificar qualquer adversidade como "má", ou "infeliz", ou os hábitos de ganância que nos fazem odiar, querer vingar-nos ou, simplesmente, reclamar - outra forma incontornável, mesmo que menor, do ódio. os hábitos do nosso anestesiante egocentrismo que nos faz supor inocentes cada vez que sofremos. ele tinha escapado dessa rede de reacções compulsivas em que todos nos debatemos e era este movimento tão essencial que a resistência ou a boa saúde por si sós não podiam explicar.

ele tinha tocado o mais fundo de si próprio e libertado o sobrenatural ou, se a palavra vos incomodar, o essencial, aquilo que não depende de circunstância alguma, que pode existir em qualquer tempo ou lugar, na dor e no prazer. tinha encontrado a própria fonte da vida. se usei o termo "sobrenatural" foi porque a atitude do jeremy consubstancia a natureza do próprio acto religioso: ali residia a descoberta de deus, em cada pessoa, no mesmo grau, a cada momento, comprovando que o regresso a Ele pode tornar-se uma realidade.

esta era a "boa nova" que o jeremy, à sua maneira, humilde, relatava.

todos ganharíamos imenso se pudéssemos pôr a nossa memória em quarantena, pelo menos a memória banal, mesquinha e atrofiante, que nos leva a acreditar nesta ficção, neste mito: o passado

é essa memória que, de forma súbita e irracional, nos traz uma pessoa ou uma cadeia de acontecimentos que depois se instalam em nós. a imagem inscreve-se no ecran da nossa consciência, espalha-se e, pouco depois, apodera-se de tudo, começa a não existir mais nada senão ela. o movimento mental pára. o presente dispersa-se. os momentos seguintes já não têm poder de nos motivar, deixam de ter qualquer sabor. resumidamente, esta memória segrega melancolia, remorso, todas as formas de tensão e contradição internas.

felizmente, existe a outra memória, aquela a que, para mim, pertence o jeremy.

confesso que este homem me persegue. mas não sob a forma de lembrança. ele entrou na minha carne, nutre-me, continua a operar dentro de mim, mantendo-me vivo. na verdade, passo muito pouco tempo a pensar nele, dir-se-ía que é ele que me pensa.

para vos falar dele tive que vos falar de buchenwald. mas não se confundam: o jeremy nunca esteve "em buchenwald". eu encontrei-o lá em carne e osso. ele tinha um número de identificação. havia mais pessoas, além de mim que o conheciam. mas ele não se encontrava lá daquela maneira particular, exclusiva, individual que a expressão "ter estado em buchenwald" sugere.

a aventura de estar naquele campo foi apenas isso para ele: uma aventura. não lhe dizia respeito, num sentido mais fundamental.

há pessoas de que me lembro deixando simplesmente a "pequena memória" funcionar em mim. e essas pessoas ficam aí, nesse canto do cérebro onde as encontro. mas quando o jeremy fala comigo, fá-lo não tanto a partir do meu passado mas das profundezas do meu presente - ali mesmo: do centro. não o posso deslocar.

no fundo, as pessoas que nos ensinaram alguma coisa são todas assim, porque esta "coisa", este "conhecimento", esta ampliação de presença na vida é-nos facilitada pela noção intrínseca que essas pessoas têm de que nada disso lhes pertence. imaginem o jeremy feliz tal como acontece a qualquer outro ser humano ser feliz: por razões pessoais, devido a uma história de vida diferente das outras, preciosa e especial. pensam que se assim fosse ele teria permanecido na minha vida até hoje?

ele ter-se-ía juntado a esse rol de personagens pitorescas de que todos guardamos memória, figurantes que vão passando no teatro da vida. mas o jeremy não era feliz: ele transbordava plenitude e alegria essenciais. o bem estar de que disfrutava não era dele, ou antes, era dele mas por participação, era tanto dele quanto nosso.

este é o mistério e o poder desses seres que servem algo mais que as suas efémeras e limitadas personalidades: não conseguimos escapar-lhes.


nota: jacques lusseyran ficou cego aos 8 anos fruto de um incidente com um colega de carteira na escola. todo o relato anterior - nomeadamente a referência constante à "visão" - é feito a partir dessa condição. dirigia um dos núcleos da resistência francesa em paris quando foi preso e deportado para buchenwald