07/10/2012

marguerite yourcenar - "sadhana" - 1


fragmentos de marguerite yourcenar (ou outros, por ela citados) sobre a "prática" (sadhana) nas múltiplas variantes do termo, a que se dedicou

(leitura, escrita, investigação, yoga, meditação, oração, jardinagem...)

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essa força que passa através de mim

tudo se obtém pela disciplina
nada se obtém pela disciplina

criar, à força de disciplina, momentos em que ela deixa de nos ser necessária

aceitar ser mais que si próprio. depois, integrar este acréscimo na etapa seguinte

estar pronto, a cada minuto, para a completa entrega

para lá da dor e da alegria, a dignidade de ser

(sources II)
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devemos manter-nos calmos perante a passagem do tempo, seguros de que no momento em que as condições adequadas tiverem sido criadas, a realização sobrevirá - por uma outra via, talvez.

quando? - passar-se-ão possivelmente, várias vidas... há que permanecer totalmente indiferente ao facto.

os "deuses" da via mágica e iniciática não se dão àqueles que a eles se dirigem, mas aos que permanecem imóveis a aguardá-los, inacessíveis a qualquer impaciência ou esperança que seja, como se não quisessem saber deles.

"não devo dirigir-me aos deuses são eles que devem vir a mim" (plotino)

julius evola - "le yoga de la puissance"

"e, ao mesmo tempo, o que evola se esquece de dizer, todo o ardor e todo o trabalho incessante, como se cada momento contasse!"

comentário de marguerite yourcenar (sources II)
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dou uma enorme importância a essa base não mental - o que não significa desligada do espírito - que não depende das nossas fórmulas intelectuais, que é o nosso corpo, a nossa fisiologia, o nosso comportamento em geral, tudo aquilo que tendemos a esquecer demasiado pela inteligência

(entrevista com carl gustav bjurstrom, suécia, 1968)
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a única satisfação emocional que nos traz o passado, como, aliás, o presente, é o facto de nos demonstrar, geração após geração, a coragem e a boa vontade humanas no esforço por reparar - ou, pelo menos, melhorar um pouco - o estado das coisas

nunca triunfantes mas também nunca completamente vencidas ou desencorajadas

enquanto satisfação emocional ou imaginativa, é escasso. mas não é pela obtenção de satisfações emocionais ou imaginativas que estudamos história, ou, de resto, o que quer que seja


... mas não amamos a vida por aquilo que ela nos traz, amamo-la porque a amamos...

(entrevista de rádio com patrick rosbo, janeiro 1971)
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“ouk mathein alla pathein” – não instruir-se mas sofrer, suportar…” - é uma divisa alquímica muito bela, "anima ignea", uma alma de fogo, o fogo alquímico, o fogo que não queima, o fogo subtil...

(entrevista com francesca sanvitale, RAI, 1987)
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quanto mais vou envelhecendo eu própria, mais constato que a infância e a velhice não só se reunem como são os dois estádios mais profundos em que nos é dado viver (...) e todo o intervalo entre eles parece um tumulto vão, uma agitação vazia, um caos inútil, pelo qual nos perguntamos porque tivemos que passar

("arquivos do norte")
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quanto às traduções, enfim, que alguém tenha escrito versos belíssimos, comoventes, sobre a vida, a morte, o amor, a política, ou que tenha sido eu a escrevê-los, francamente não vejo grande diferença, apenas exprimimos qualquer coisa que devia ser expressa, é tudo

(entrevista com bernard pivot, "apostrophes", mount desert island, 1979)
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acredito bastante no valor dessa espécie de humildade perante o que é expresso e penso que o estilo, quando é bom, provém daí. o "autor" apaga-se totalmente e ao apagar-se reencontra-se, ou seja, reencontra aquilo que realmente queria dizer

(entrevista com dominique willems e hilde smekens, televisão flamenga, 1971)
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escrever: tem qualquer coisa de pousar as mãos sobre as coisas, tacteando

("les yeux ouverts - entrevistas com matthieu galey)
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fui-me apercebendo progressivamente de que a forma mais profunda de acesso a um ser continua ainda a ser o escutar da sua voz, compreender o próprio canto de que ele é feito (...) procurar ouvir, fazer silêncio em si próprio, para escutar o que adriano poderia ter dito, ou o que zenão poderia ter dito, nesta ou naquela circunstância, sem lhe introduzir nada de seu, pelo menos conscientemente, ao nutrir os seres da sua própria substância - como os nutriríamos da nossa carne, que não é de todo o mesmo que alimentá-los da nossa pequena personalidade, dos tiques que nos fazem "nós"

("les yeux ouverts" - entrevistas com matthieu galey)
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trata-se, em suma, de nos aproximarmos o mais possível da expressão verídica de uma experiência. a maneira mais simples de dizer as coisas parece-me sempre a melhor e é raramente a primeira

para mim, "a obra ao negro" é escaldante, de um calor insuportável, mas quando relatamos coisas que nos perturbam exprimimo-las discretamente

a busca de um "outro" que possa sustentar a imagem que fazemos de nós próprios para lograr a criação de um casal modelo está de tal forma impregnada de vaidade e intuito de posse que me parece frágil como ideal humano. uma atenção ardente por outro ser humano, porém, parece-me constituir uma atitude essencial

(entrevista com jean-claude texier, "la croix", 1971)
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yeats dizia: corrijo a mim próprio, ao corrigir os meus livros

(entretien avec jean-louis ferrier, christiane collange, matthieu galey, l'express, 1968)

- poderíamos dizer o mesmo sobre "asana" / posturas de yoga -
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tenho uma grande admiração pela vida contemplativa mas, enfim, nenhuma necessidade de me retirar para algum lugar, podemos contemplar num autocarro

(entrevista com jacques chancel, mount desert island, 1979)
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já se sentiu tentada pela religião budista?

frequentemente, sim, mas acabei por finalmente concluir que ela não precisava de ainda mais uma seguidora. temia também o risco de exotismo tão comum nestas adesões oficiais. tal como acontece com tantos cristãos, inscritos nos registos do cristianismo, que não brilhavam em virtudes cristãs, há também muitos budistas que poderíamos dispensar... as verdadeiras adesões provêm do coração e não se excluem sequer umas às outras

(entrevista com jacques chancel, mount desert island,1979)
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a falta de ardor - fico impressionada com o facto e creio que, frequentemente, a própria violência lhe corresponde em proporção

porque há poucas pessoas com vontade de fazer apaixonadamente qualquer coisa - a violência torna-se um derivativo

("les yeux ouverts" - entrevistas com matthieu galey)
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a palavra "felicidade" não tem em mim um peso significativo. não penso nela. suponho que para a maior parte das pessoas ela signifique "fazer o que queremos". ela traduz uma certa facilidade, por exemplo, a famosa "doce vida" que tayllerand situava no século XVIII, ou o período que as pessoas que viveram a primeira grande guerra identificavam com a época imeditamente anterior a ela... mas há muito de miragem na palavra "felicidade". o hipotético valor da felicidade é um sub-produto. ela consiste simplesmente em fazer mais ou menos o que estávamos destinados a fazer

(entrevista com jacques chancel, mount desert island,1979)