16/06/2011

flight




passa ave, passa e ensina-me a passar

alberto caeiro


ficar no asana como uma ave a planar

christian pisano

fronteira: linha do fim ou do começo?



http://vimeo.com/24802001


josé tolentino de mendonça / maio 2011

(transcrição por nc)


queria evocar uma imagem que penso que todos conhecem, da série "pinturas negras", do pintor francisco goya - aquela imagem, sem título, de um cão que numa colina, do outro lado, apenas tem o focinho de fora, levantado e as imagens do cão e da colina são relativamente baixas no conjunto da pintura e de repente temos uma imensidão de céu, de vazio, de silêncio e a imagem é extraordinariamente enigmática porque não se sabe porque é que o cão está ali, é como se o cão estivesse a farejar, a pressentir, a adivinhar, a rezar o próprio silêncio, o silêncio de deus, o silêncio do mundo, numa atitude de absoluto espanto é um cão metafísico que não deixa de entusiasmar e tocar aqueles que contactam com essa imagem

queria ir buscar essa imagem do cão de goya para pensarmos que, ao contrário dos animais (o cão de goya será uma excepção) aquela imagem marca-nos tanto porque nos projectamos naquela imagética - os animais são capazes de fazer fronteira no território, são capazes de demarcar o seu espaço, de lutar por ele, pacificamente, cordialmente ou, até, com alguma violência ou com grande violência. mas os seres humanos são os únicos animais, as únicas criaturas que dão um sentido diferente à palavra fronteira

"fronteira", etimologicamente, quer dizer "ter diante", "ter defronte", ter um "em frente" e os seres humanos não apenas marcam o território, não apenas estabelecem muros para dizerem "isto é meu!", "isto pertence-me!", não apenas erguemos paredes, e quintais, e sebes, mas nós somos capazes de viver tendo um "defronte" tendo um "diante de nós", tendo algo, ou alguém, que nos olha olhos nos olhos, tendo um tempo que nos transcende e nos interpela, nos interroga, somos aqueles que são capazes, mais profundamente, da expectativa e da espera

em outubro passado, estas conferências foram abertas por frei josé augusto mourão, numa conferência extraordinária que entretanto as irmãs publicaram intitulada "a estética na fronteira da experiência de deus". não sabíamos que no final destas conferências ele já não estaria connosco, ou estaria de outra forma... sabemos, no entanto, que ele continua diante de nós, como "fronteira", como "defronte", como "diante", como desafio e, nesta meditação de encerramento, eu queria pegar no seu testemunho e queria começar onde ele acabou. lendo a conferência do frei josé augusto mourão - "a estética na fronteira da experiência de deus" - constatamos que, no final, ele nos deixa três palavras, que ele não nomeia mas na leitura entendemos que ele está a declinar três nomes, e é em relação a esses três nomes que eu queria articular a minha reflexão de hoje convosco. os nomes são: vigiar, negociar e passar. no fundo em torno a estes três nomes eu queria que pensássemos a questão da fronteira - linha do fim ou linha do começo?

a primeira palavra: a palavra vigiar. diz josé augusto mourão: habitar, permanecer, construir, são apenas estações a meio da viagem. a arte, para pascal, só tem sentido se faz de nós "vigilantes". então, a grande arte não é a habitação, não é a morada, não é termos construído, no aqui e no agora, um espaço nosso, um ponto fixo, um lugar de observação, a verdadeira arte é perceber que a beleza espiritual não se identifica completamente com nenhuma oração, mas alimenta-se dela e conduz-nos a ela. que o olhar do orante não se fixa completamente num ponto do visível mas, pelo contrário, ele aceita que a própria peregrinação é que é o sacramento do invisível. ele não pretende fixar-se numa experiência de deleite mas procura continuamente viver na abertura. e a vigilância é que nos torna nómadas, é que nos torna peregrinos. a primeira atitude é, por isso, a da vigilância - "vigiai!" - os padres do deserto diziam "o maior dos pecados é a distracção", ou então o que dizia abba poemen, "o início de todos os nossos males é não escutarmos!"

a escuta, a vigilância, a atenção, como o início, eu diria, como a fronteira da viagem espiritual autêntica, da viagem humana fecunda, nós somos chamados a uma vigilância, a uma atenção. e essa vigilância é uma forma de resistência. nós vivemos num mundo que nos atropela continuamente pela quantidade e pela velocidade. as imagens que vemos são também imagens que nos devoram, que nos obsidiam, que nos tornam obsessivos delas próprias. e na sobreposição dos próprios discursos, das palavras, dos gestos, tantas vezes não somos capazes de contrariar a banalização. quantos dos nossos gestos são lugares de invenção, quanta da nossa gestualidade dá a ver o inédito, dá a ver aquilo diante do que estamos e não simplesmente o aprendido, e não simplesmente aquilo que já transportamos, aquilo que já visitamos?

num mundo marcado pelo excesso de signos, nós vivemos numa pobreza simbólica. e vivemos numa pobreza simbólica porque perdemos a capacidade de ver. de ver! aquilo que, por exemplo, em alberto caeiro se torna a pedagogia da própria vida. o verbo mais importante é o verbo ver. e para ver não basta olhar, não basta transpor os nossos olhos, a nossa observação, para o outro lado da janela. avisa fernando pessoa: "é preciso não ter filosofia nenhuma", isto é, é preciso uma arte do desaprender, é preciso um desnudamento, é preciso que as nossas armaduras caiam, é preciso o desprendimento daquilo que é o nosso saber, daquilo que é o nosso ver rotineiro, para autenticamente vigiar. só o pobre vigia. só o peregrino vê. só o olhar que não tem defesa é capaz de colher, no instante, a verdadeira presença. porque senão nós andamos nos nosso circuitos sonâmbulos e não temos capacidade de vigiar.

voltar à vigilância, voltar à atenção, voltar àquilo que o automatismo da própria existência como que nos impede, isto é, voltar à vocação do gesto, à vocação da palavra, à vocação do silêncio. e sentir que a vocação do nosso gesto, do nosso silêncio e da nossa palavra é impregnar o mundo de sentido, é entreabrir o mundo. há uma atitude de resistência a uma tomada de decisão que é fundamental no acto de vigiar. vigiar é colocar-se nesta disponibilidade para a surpresa, para aquilo que vem, tendo consciência de que o fundamental da vida não é o que nós adquirimos, não é o que nós fazemos, não é o que nós sabemos, mas é o acto de escuta.

toda a música que nós ouvimos nos preparou, no fundo, para o acto da escuta. toda a poesia que nós lemos, todos os textos que nós estudámos nos prepararam para o acto da leitura. toda a ternura que nós partilhámos, toda a relação em que investimos, todo o amor com que amámos, prepara-nos para o acto de amar, para o acto de acolher.

a vigilância é isso: não o apego ao mapa, mas o amor pela viagem. não temos que estar prisioneiros dos mapas que temos mas temos que nos tornar viajantes, enamorados, vigilantes, amantes, sentinelas. sentinelas! - aquilo a que somos chamados não é a habitar no conforto de uma morada, porque as nossas moradas são relativas e as casas tornam-se prisões, se não temos capacidade de fazer delas pontos de partida e pontos de chegada. as casas e aquilo que elas simbolizam, podem sequestrar-nos, isto é, os pontos imóveis num percurso como o da nossa vida que é, necessariamente, imóvel. por isso, mais do que a morada, nós temos que amar a própria viagem, a própria vigilância, a própria disponibilidade para subir ao nosso telhado, para subirmos aos nossos muros, e aí sermos uma espécie de grandes sensores da história, de novos captadores do real, de alguém que vive numa escuta que não é apenas a escuta do ruído e daquilo que é mais fácil de ouvir em redor de nós mas sermos capazes de uma escuta que atravesse o tempo, que atravesse os séculos, que atravesse a própria paisagem e sintonize com aquilo que verdadeiramente nós temos diante de nós - qual é a nossa fronteira, o que é que nos olha de frente, o que é que temos diante de nós? - e a capacidade de vivermos como sentinelas.

a bíblia, através dos profetas, sobretudo no profeta isaías usa muito a imagem do "sentinela da aurora" - é uma belíssima imagem para descrever a função crente - a função das mulheres e dos homens crentes é serem sentinelas da aurora, isto é, sinalizarem a emergência da luz, o processo de construção, de gestação da própria luz no interior da história

e àquela pergunta que os homens nos fazem: "a que ponto estamos da noite?" - nós temos que ser capazes de ousar uma resposta. a que ponto estou da noite? - no fundo, a grande pergunta que os homens fazem aos crentes é esta - o que é que eu posso esperar? o que é que eu posso esperar? - isto é, a que ponto estou da noite? o que é que vem a seguir? qual é a fronteira? ilumina-me a fronteira!

as mulheres e os homens crentes têm que ser capazes de iluminar a fronteira. e isto só acontece de se de facto ficarmos como sensores, radares, detectores, daquilo que vem. de facto se aceitarmos aquela palavra tão exacta que josé augusto mourão diz: "o mundo não é feito de formas estáveis mas apenas de linhas da frente". o mundo é feito de linhas da frente, numa história de combate e de amor. numa história de resistência e de dádiva. numa história de combate e de dança, e de entrega, e de oferta. mas a vida são linhas da frente e, de facto, se nós pensássemos assim o nosso quotidiano, as nossas vivências, a nossa vida, não enchíamos tanto as horas de pesadelos, de temores, de receios, de medos, de indiferenças, não tínhamos necessidade de nos vestirmos tanto de armaduras, porque percebíamos que a vida é isso: a vida são essas linhas da frente e nós somos os sentinelas. somos as sentinelas!

um dos textos que josé augusto mourão traduziu para português foi a pequena antologia do místico angelus silesius "a rosa é sem porquê". e esse apotegma de angelus silesius que sabemos quase de memória, diz " a rosa é sem porquê, floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos".

na introdução, frei josé augusto mourão tenta reflectir no significado desta expressão - "a rosa é sem porquê". e ele toma para meditar o genitivo "de", na fórmula "a rosa é de..." " a rosa é de ninguém". dizer "a rosa é sem porquê" é dizer "a rosa é de ninguém". mas se nós aceitamos isto, "a rosa é sem porquê", " a rosa é de ninguém". então temos que perguntar, honestamente, "então de que é que vale o genitivo?" de que é que vale este "de", a preposição que assinala o possessivo, que assinala a pertença?

ele diz: aqui, o "de" passa a sinalizar uma cultura nova, que já não é aquela que parece quase obrigatória, que liga o predador e a presa. isto é, quando dizemos: "a rosa é sem porquê" ou "a rosa é de ninguém", investimos num modo de construir o real que já não passa por sermos predadores e o real ser uma presa que eu vou dominar. há um outro espaço que se abre, há um outro espaço que se abre. um espaço talvez indefinível, talvez do não dito ou talvez mesmo do indizível, do invisível. mas é esse espaço outro, esse espaço já não de predadores e de presas que nós, na vigilância, somos chamados a pensar, ver, contemplar - rasgar o olhar, viver do assombro, alimentar-se da visão

quando, continuamente, os textos bíblicos nos desafiam às visões, não é para nos tornarmos visionários, termos uma visão disto ou uma visão daquilo, é para nos alimentarmos da visão, isto é, do acto de ver, do acto de observar a espantosa realidade das coisas, como o alberto caeiro dizia. por isso, o primeiro verbo é o vigiar, e percebemos como o vigiar nos obriga a uma conversão, nos obriga a uma transformação da nossa atitude, do nosso estar, daquilo que queremos para a vida, daquilo que buscamos.


o segundo verbo é o verbo negociar. negociar! e no final da sua conferência frei josé augusto mourão afirmava uma coisa muito interessante, um desafio, quase um apotegma, como tantas vezes ele usava, quase um enigma, quando dizia: "o que os biólogos marinhos, a indústria de peixe e os contadores de mitos partilham é realmente isto: ninguém sabe realmente o que é um peixe!" e quer através da ciência, quer através da técnica, quer através da poesia, quer através do amor e nós podemos dizer "quer através da fé", todos chegamos a esta conclusão: ninguém sabe realmente o que é um peixe!

ninguém sabe realmente o que é uma mulher, o que é um homem, o que é um crente, o que é uma árvore, o que é uma palavra, o que é um silêncio, ninguém sabe, realmente. e se nós aceitamos que não sabemos, então temos que tirar daí uma ilação: e a ilação é a capacidade, ou o risco, de trocar o conhecimento pela negociação. em vez de acharmos que já conhecemos, dizermos: "não, eu não conheço, eu não sei o que é um peixe!". então como é que eu me posso avizinhar de um peixe? - negociando! - isto é, querendo aprender, ouvindo, tentando estabelecer um pacto, um acordo, uma aliança, não a partir das minhas etiquetas, do meu saber, da minha teoria, mas sim a partir da epifania da própria realidade, a partir daquilo que é novo a cada instante.

e há também, sobre peixes, aquele conto extraordinário de herberto hélder que diz que um pintor está a pintar um peixe no aquário, e o peixe é encarnado. ele começa a pintar um peixe encarnado. e enquanto pinta, ele percebe que o peixe se tornou verde. apaga o encarnado e substitui-o por verde. mas quando ele está quase a acabar o verde, percebe que o peixe se tornou azul. ele então começou a meditar nisto e sem olhar para o peixe pintou-o de amarelo.

isto é a negociação - partir não apenas do que eu vejo neste momento, porque o que eu vejo neste momento é apenas uma etapa, é uma estação, é um momento, é um instante. eu tenho é de antecipar, a negociação é também uma antecipação do próprio ciclo, do próprio fluxo, do mistério do próprio tempo. isso é negociar, porque isso é ouvir aquilo que é novo a cada momento.

porque, não tenhamos dúvidas, nós estamos rodeados de perguntas, porque nós somos uma pergunta. aquilo que santo agostinho dizia: "magna questio factus sun mi" - tornei-me para mim mesmo uma grande pergunta. nós somos o "homo absconditus" não há apenas o deus absconditus, o deus escondido, nós somos o homo absconditus, a mulher e o homem escondidos, enigmáticos, o enigma faz parte da nossa própria vida. e não é o enigma a desventura, e não é o enigma o limite - o enigma é a possibilidade, como a fronteira, aquilo que está diante de mim, é a possibilidade. por isso, nós sabemos que nas nossas vidas o enigma não pode ser abolido, o enigma não se desfaz.

nós somos um segredo que, mesmo dito, continua a ser um segredo

o enigma não se desfaz. e não se desfaz pela racionalidade como por vezes se pensa. basta lembrar aquilo que dizia pascal, "o coração tem razões que a razão desconhece", isto é, há dimensões da existência que não são explicáveis, que não são da ordem da razão, cujo sentido não se consegue compreender através de um silogismo ou da matemática. há muito mundo que a ciência não consegue explicar, em cujo interior não tem ferramentas para mergulhar.

mas nem pela afectividade muitas vezes nós conseguimos desfazer o enigma. há que contrariar o mito da fusionalidade. os grandes mitos do amor, (é impressionante meditarmos nele) são mitos de procura de amor, de desejo de amor, não são histórias de fusão, porque não há a fusão, há a ilusão, há o desejo de uma fusão, isto é, de uma perfeição, de uma equivalência, de uma reciprocidade sem ângulos, sem fissuras, sem agastes, isso não existe, não existe.

a afectividade torna-se fecunda quando abraça o enigma, quando abraça a pergunta. se a afectividade tenta desfazer a pergunta, embate contra, digamos, a impossibilidade, acaba por se desfazer. na afectividade é preciso não temer o silêncio e amar o próprio silêncio, abraçar o próprio silêncio, porque o mito fusional é um mito impossível. basta pensar no mito de orfeu e eurídice, é impossível. o amor é feito de procura, o amor é feito de atenção. e por vezes há coincidências, por vezes há essa fusão, mas essa fusão não é uma coisa em si mesma, são pontos para intensificar a própria demanda, a própria abertura de coração.

como também a acção não desfaz o enigma, a ilusão das ideologias que nós vivemos no século XX mostrou-nos claramente que há muito para perceber acerca da pessoa humana, acerca daquilo que pode ser a nossa vida comum, e as ideologias, no fundo, acabam por ser todas redutoras, por isso mostraram toda a sua falência, todos os seus equívocos.

o mesmo se pode dizer da técnica. a técnica, também, só por si, não desfaz o enigma. veja-se o desespero do consumismo, o comprar, o adquirir, o último modelo, o último aparelho - o triunfo da própria técnica cria uma ilusão de felicidade que não passa disso, não passa de uma bolha. porque o enigma, a procura, continuam.

e o mesmo se pode dizer da própria fé. a fé não abole o enigma, a fé não resolve, a fé não é uma resposta. como nos diz claramente o livro do êxodo, (êxodo 33/21) "deus habita na nuvem", "deus habita na coluna de sombra", isto é, deus não habita a transparência mas deus habita aquilo que eu não vejo. e, por isso, é no interior da experiência da fé que eu sou chamado a viver a transcendência como uma forma de pobreza, em relação ao meu desejo, às minhas representações. no fundo, eu tenho que não desejar ser salvo, aceitar perder-me, só quem aceita perder-se é que vai encontrar, e este aceitar perder-se, no fundo, é aceitar perder o próprio deus.

aquele passo de angelus silesius que o frei josé augusto mourão traduziu: "onde é a minha morada? - onde eu e tu não estamos!" "onde é o fim último para o qual devo tender? - onde nenhum fim se encontra!" "onde devo ir então? - tenho de ir para além de deus, para um deserto"

o crente sabe que tem de ir para além de deus. nem deus é a última fronteira - nós precisamos de transcender o conhecimento de deus porque o conhecimento de deus ainda não é deus. o conhecimento de deus muitas vezes é um obstáculo ao encontro com o próprio deus. eu tenho que transcender o meu próprio conhecimento, aquilo que sei, para tocar o próprio deus

vem nesse sentido, aquele texto medieval tão importante na espiritualidade cristã, "a nuvem do não saber" - a espiritualidade cristã nasce do não saber

que ilacões podemos então tirar? - se eu não sei, se é o não saber que me é dado viver, eu tenho de negociar. e o que é negociar? negociar, eu diria, é aceitar duas coisas:

- primeiro, aceitar uma espiritualidade do provisório e cito o irmão roger, que escreveu tão liminarmente, de forma tão lapidar, sobre a teologia do provisório - "o provisório é aceitar ir de começo em começo" - aceitar a peregrinação, a desinstalação, isto é, aceitar que eu não vou construir aqui uma casa de pedra, que eu não vou construir aqui uma coisa para sempre.

aceitar o provisório é aceitar que o que eu vivo é uma parábola, que eu não vou viver uma história que vai ser contada e que vai ter uma validade universal, mas que eu posso contar uma parábola, que eu posso viver criando uma metáfora, criando uma imagem, criando um "como se", aceitando o provisório, aceitando a pobreza do provisório, aceitando não partir da certeza sempre mas muitas vezes partir da incerteza, não partir quando tenho já todas as coisas garantidas mas partir na confiança, dar valor aos pequenos passos, dar valor àquilo que tenho realmente. essa é uma espiritualidade do provisório.

- um outro ponto é um percurso de reconhecimento - negociar é fazer um percurso de reconhecimento. e aqui, cito aquilo que diz paul ricoeur, que entreabre o sentido da palavra "reconhecimento" - que, também no francês, tal como no português, tem dois significados - o que é reconhecer? reconhecer é identificar. e, numa negociação, eu tenho que identificar, isto é, tenho que saber quem é o outro, realmente. tenho de ouvir, tenho de ver, tenho de escutar, não o que eu ouvi dizer mas o que eu escuto, não o que eu conheci mas o que eu conheço, o que eu vejo. há um processo, uma dinâmica de identificação, de descoberta da identidade.

mas o reconhecimento, para nós, é, também, a gratidão, isto é, é também "colocar-me numa economia do dom" como dizia paul ricoeur - perceber que o outro é um dom, perceber que há uma dinâmica de dádiva que me liga ao outro. e, no fundo, o percurso do reconhecimento culmina no momento da gratidão, no momento em que eu digo obrigado por este, obrigado por esta, obrigado por isto. esse é o grande momento da negociação, quando eu da identidade passo ao dom e à economia do dom.

isto é negociar e nós precisamos de colocar o negociar no centro da nossa vida, do nosso agir, das nossas construções, da pulsão do nosso quotidiano

penso que nestas três palavras, "vigiar", "negociar" "passar", nós temos muito da herança de josé augusto mourão e da oferta de si que ele nos faz.


passo então ao último dos termos, que é este "passar" - diz ainda, na sua conferência, frei josé augusto: "todas as fixações teológicas de deus fazem-nos ajoelhar diante do altares, diante dos templos e diante dos livros" - e ele diz isto não como uma coisa boa, diz isto como uma insuficiência, isto é, se eu estou apenas ajoelhado diante do altar ou diante do livro ou diante do templo, eu ainda não estou diante de deus, não estou diante do defronte, "diante do diante", diante da verdadeira fronteira que me olha.

então de que é que eu preciso? eu preciso de viver o "entre" - o "entre" é o que faz viver. e o "entre", acontece na passagem .

escreve ele: "há transformações silenciosas que fazem o seu caminho em nós, que se infiltram, se ramificam e deixam levemente no corpo as marcas da sua passagem - esta é a passagem de deus por nós.

toda a linguagem é inadequada, são apenas traços, seja a súplica, seja a cognição, seja a adoração. o verdadeiro modo da experiência de deus é a passagem
esta é de facto uma das grandes intuições de josé augusto mourão, dizer deus na passagem, colher deus e colhermo-nos a nós próprios, na passagem

há um poema de alberto caeiro que eu gostava de trazer aqui esta tarde, que diz assim: "antes o voo da ave que passa e não deixa rasto que a passagem do animal que fica lembrada no chão. a ave passa e esquece, e assim deve ser. o animal, onde já não está - e por isso de nada serve - mostra que já esteve - o que não serve para nada. a recordação é uma traição à natureza, porque a natureza de ontem não é a natureza, o que foi não é nada e lembrar é não ver"

depois, o poema termina com uma oração: "passa ave, passa, e ensina-me a passar"

alberto caeiro cria uma espécie de dialéctica entre a ave e o animal que avança sobre a terra. o deixar rastro é deixar uma marca apenas lembrada no chão, uma imagem fixa, imóvel, que já não serve porque lembra o que foi, porque lembra o que esteve, porque, como ele diz, a recordação é uma traição. se nos prende, se nos sequestra num determinado momento do passado e não percebemos que a verdadeira recordação é a passagem, a verdadeira homenagem é a dinâmica da ponte, é o fluir permanente, é não interromper, é acreditar, é esperançar, esperançar no fluir, naquilo que é a própria vida entre margens, de margem para margem, aquilo que é a própria vida no "entre", que o entre seja o nosso pacto, seja o lugar do nosso compromisso, seja o lugar onde banhamos o nosso gesto, onde purificamos o nosso olhar

o escritor italo calvino, nas seis propostas para o próximo milénio, um conjunto de conferências que funcionam, certamente, como o seu testamento, cultural e espiritual, diz que o primeiro valor que nós temos que descobrir no próximo milénio, que é este que estamos a viver, é o valor da leveza. e o que é a leveza, para ele? ele explica: cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso digo para mim mesmo que eu devia voar para outro espaço. não se trata de fuga, para o sonho ou para o irracional, mas quero, sim, dizer que preciso de mudar de ponto de observação, preciso de considerar o mundo sob uma outra óptica, outra lógica, outros meios de conhecimento e de controlo. então o que é a leveza? - a leveza é a possibilidade de deslocar-se, de buscar outro ponto de observação, de considerar o mundo sob outra óptica, buscando outros meios de conhecimento

esta deslocação, para nós, é a condição de peregrinos, é a condição de buscadores, é a condição de mulheres e de homens que aceitam o desconhecido. mas podia ser de outra maneira?... como dizia rené char, "como viver sem ter diante de si o desconhecido?"

é este desconhecido que acolhemos, num viver que é, ele próprio, passagem. mas, calvino cita paul valéry num verso que traz muita luz - ele diz: "esta passagem, esta leveza, é ser leve como um pássaro mas não leve como uma pluma" - nós somos chamados a ser leves como pássaros mas não leves como uma pluma, isto é, não se trata de uma ligeireza, de uma superficialidade. este "viver entre" não é um descompromisso, não é um "truque" ou um modo para, no fundo, não estar em parte nenhuma, não ser de nenhum lado, não se comprometer, não se envolver com nenhum grupo, com nenhum aspecto da realidade. ser leve não é ser pluma. ser leve é ser como o pássaro, isto é, que vive na passagem, que vive o esforço e a fadiga de ser no próprio acto de passar

e para nós, este poema de alberto caeiro, "passa ave, passa e ensina-me a passar" é a melhor metáfora pascal - a páscoa, que etimologicamente significa passagem, outra coisa não é que o desafio a vivermos aí, nesse "entre", entre morte e vida, escolher, conseguir, lutar por encontrar o estilo do nosso olhar, o bater do nosso coração

01/06/2011

full circle



i'd rather be whole than good

c. g. jung

the open way



give up sainthood, renounce wisdom,
and it will be a hundred times better for everyone

give up kindness, renounce morality
and men will rediscover piety and love


tao te king

emptiness



there comes a time when an individual becomes irresistible and his action becomes all-pervasive in its effects, this comes when he reduces himself to zero

mahatma gandhi

fear




man created religion to protect himself from god

c. g. jung

se eu quiser falar com deus






se eu quiser falar com deus
tenho que ficar a sós
tenho que apagar a luz
tenho que calar a voz
tenho que encontrar a paz
tenho que cortar os nós
dos sapatos, da gravata
dos desejos, dos receios
tenho que esquecer a data
tenho que perder a conta
tenho que ter mãos vazias
ter a alma e o corpo nus

se eu quiser falar com deus
tenho que aceitar a dor
eu tenho que comer o pão
que o diabo amassou
eu tenho que virar um cão
eu tenho que lamber o chão
dos palácios dos castelos
sumptuosos do meu sonho
tenho que me ver tristonho
eu tenho que me achar medonho
e apesar de um mal tamanho
alegrar meu coração

se eu quiser falar com deus
tenho que me aventurar
eu tenho que subir aos céus
sem cordas pra segurar
eu tenho que dizer adeus
dar as costas caminhar
decidida pela estrada
que ao findar vai dar em nada
nada nada nada nada nada nada
nada nada nada nada nada nada
do que eu pensava encontrar

se eu quiser falar com deus


gilberto gil

eric baret - de l'abandon (2)

(tradução, adaptação e acréscimos - nc - 2011)

sentir-se vitimizado é um conceito; é, ainda, uma pretensão

há pessoas que se comprazem nesse papel, considerando-se vítimas da sociedade, dos seus pais, do seu corpo, da sua educação, da sua má pronúncia... trata-se de uma reivindicação como qualquer outra. sentir-se orgulhoso vai dar ao mesmo. uns são orgulhosos do seu passado, outros sentem-se vítimas dele: cada um com os seus fantasmas

não temos passado senão aquele que inventamos no instante, como exibição do nosso cartão de visita. o passado não existe. inventamo-lo sempre que ficamos sob a pressão do medo

não existe vítima. numa sala de boxe, as pessoas não se sentem vítimas cada vez que recebem um golpe, não dizem "sou vítima, sou vítima, sou vítima" - porquê? - aquelas pessoas são alvo de golpes que não agridem psicologicamente

há quem se sinta vítima da sociedade por não poder partir para férias, outros por não terem meios para comprarem uma sobremesa para os filhos, um carro ou uma pequena casa. cada um com a sua fantasia. basta fazermos uma viagem ao nepal ou à índia para nos sentirmos consideravelmente ricos, mesmo se não pudermos proporcionar a tal sobremesa aos filhos - podemos sempre dar-lhes arroz

este sentimento de vitimização justifica-se no mundo imaginário em que vivemos mas, profundamente, ele é grotesco - através dele, torno-me o joguete do meu próprio condicionamento

no mesmo sentido, a espiritualidade é um conceito

aquilo que cada um projecta na pretensa espiritualidade, aos seis anos projectava no grupo de escuteiros, aos dez anos na equipa de futebol, aos vinte na política, aos trinta no casamento... esta carência que tentávamos compensar por uma boneca, um combóio eléctrico, uma boa nota na escola, uma carreira, um filho, projectamos depois na espiritualidade. é o "pot-pourri" dos nossos medos! cada um, segundo a forma das suas ansiedades, vai sentir-se atraído por um certo tipo de espiritualidade. quando o fenómeno se apresenta, há que respeitá-lo: mas com a noção de que não se trata de nada mais que medo

a verdadeira espiritualidade é gratidão

meister eckhart diferenciava a verdadeira oração, prece do coração, celebração do acto divino, da oração proveniente da carência, que implora por uma rectificação. esta não é uma prece mas uma forma de abcesso

a verdadeira prece é agradecimento. a verdadeira espiritualidade é um dinamismo que se incarna numa disponibilidade a cada instante - quando o cancro, a doença, o nascimento, a violência, a emoção, vêm, estar disponível: aí encontramos a profundidade

quando nos confrontam com propostas que não correspondem à nossa visão do mundo, ficamos escandalizados

mas o verdadeiramente intolerável é a pretensão de saber - o intolerável, como reacção, demonstra que qualquer coisa perturba o nosso sistema de pretensão e põe em questão o mundo que criámos para nos defendermos, para existirmos. o que irrita é o que questiona a nossa pretensão de saber. há que viver a realidade, só a aceitação suplanta o sentimento do intolerável

andamos durante anos a considerar um violador ou um assassino horrendos e, um dia, observamos e compreendemos o funcionamento interior daquele que tem necessidade de violar, matar, de criar sofrimento para alcançar alguns instantes de bem estar. tal como nós fazemos outras tantas coisas - igualmente questionáveis - e pelos mesmo motivos. quando nos apercebemos da dimensão do desespero, tristeza, infelicidade que norteiam aqueles actos (como, tantas vezes, os nossos) eles surgem-nos como menos intoleráveis. compreendemos, simplesmente, onde se situa a acção justa

o intolerável é a defesa do nosso próprio mundo. é a origem de todos os fascismos (comunismos, outro ismos...)

tentar interditar o que nos é intolerável, auto-erigidos à qualidade de napoleões é a nossa atitude mais frequente

o que é profundamente sentido torna-se a porta para o essencial. se eu tiver a maturidade de sentir o medo, a raiva, na sua forma instantânea e não na sua história, este pressentimento transporta em si o germe da sua própria reabsorção na disponibilidade

a situação que me incomoda é uma dádiva que me faço para me reencontrar na emoção profunda. não há nada no exterior. acabamos por compreendê-lo mais cedo ou mais tarde

pensar é o medo de sentir, é uma compensação, em que me conto uma história, feliz ou infeliz. a ideia de ser livre traduz uma falta de clareza. o sentimento de disponibilidade é uma experiência profunda. a ideia "sou livre", tal como a ideia "estou tranquilo" é uma forma de agitação

referenciar-se a um não saber toca no sagrado. em contrapartida, a espiritualidade que aprendemos, que estudamos, não tem qualquer carácter sagrado - é uma "mise-en-scène" miserável destinada a pessoas que têm medo de viver. a espiritualidade que deriva do sagrado é não pensada, não organizada, não elaborada, não utilizável. essa espiritualidade é o próprio sagrado

a espiritualidade não é um refúgio, um meio, uma muleta. ela não existe para compensar o fracasso de uma vida. é um dinamismo, é o pressentimento de que os acontecimentos da vida têm um sentido para lá do pensamento. a espiritualidade é este pressentimento da humildade, dum total não-saber.

quando desperto para esta não compreensão da vida, quando paro de pretender explicar o que me acontece, de ter necessidade disto ou de pensar que aquilo não devia ocorrer, há humildade. finda a pretensão de saber o que é correcto para mim ou para o mundo, ocorre uma escuta. e essa escuta é, ela própria, o sagrado, a espiritualidade

todo o saber espiritual é uma miserável caricatura. todos os ensinamentos e codificações espirituais são actos de cegos a conduzirem outros cegos. o saber vem do pensamento, da memória, o que é que pode aí haver de sagrado?!

a espiritualidade que proporciona segurança não tem qualquer valor, excepto, talvez, no plano psiquiátrico. a espiritualidade que sabe o que se deve fazer, não fazer, o que é justo ou injusto, moral ou não, participa do universo policial posto em marcha pela sociedade. tal poderá ter algum significado ao nível jurídico mas não comporta nada de sagrado. é, simplesmente, uma ideologia que, como todas, provém do medo. sem medo, não tenho necessidade de ser o que quer que seja, de me identificar com isto ou com aquilo. é o medo que me inventa: crer-se francês, branco, negro, judeu, rico, pobre, budista, hindu, cristão, ateu: vem tudo do medo. num movimento de não-medo, não reivindico o que quer que seja e essa não reivindicação abre-me à disponibilidade. tudo o que me aparece se me torna próximo, fácil, profundamente eu próprio. não encontro nada senão eu próprio. não há nada de estranho ou exterior

quando estou com os meus filhos, não estou constantemente a pensar "amo o meu filho, amo o meu filho, amo o meu filho". quando estou com a minha mulher, não digo a todo o momento "amo a minha mulher, amo a minha mulher, amo a minha mulher"; quando estou com o meu cão, não estou sempre a afirmar "amo o meu cão, amo o meu cão, amo o meu cão" - não há necessidade de articular o inevitável

eu amo o meu cão, naturalmente: não há nada que eu não possa amar. amo aquilo que se me apresenta. eu amo o meu filho, mas quando tomo nos braços o filho da vizinha, amo-o menos?... deixamos de necessitar de uma localização. amamos aquilo que está ali, frente a nós, porque não há mais nada!

a certa altura perdemos o hábito de nos fazermos uma narrativa da nossa vida - quando comemos espargos saborosos, deixamos de ter que pensar - "que espargos tão bons que eu estou a comer" - o sabor dos espargos é suficientemente preenchedor e pleno para nem deixar surgir o comentário

isto não significa que não possamos continuar a formular as coisas. os cães, por exemplo, adoram ouvir palavras ternurentas. quando estamos com o nosso cão podemos dizer-lhe, uma e outra vez, o quanto ele nos é querido, essa expressão funciona como uma carícia de uma mão

podemos encontrar alguém e confessar-lhe o nosso amor - mas trata-se de "uma maneira de dizer" - podemos fazer o mesmo para com a nossa mão, um escritório, um carro, uma pedra no jardim, a lua... é belo proclamar o nosso amor à lua, podemos fazê-lo em voz alta sem que isso se torne perturbante. mas, a certa altura, quando olhamos para a lua, produz-se uma tal emoção que só um esboço de uma lágrima nos nossos olhos exprime esse sentir, deixa de haver o dinamismo de o declarar demasiado alto, é um amor sem cobrança, deixamos a lua livre. há, apenas, admiração

em certas circunstâncias, pela alegria da pantomima, podemos até perguntar à nossa amante se ela nos ama. podemos lançar essa interrogação ao nosso cão ou ao nosso filho de cinco anos, mas pela pura alegria da expressão, em que a palavra se torna ligeira, gratuitamente - pelo facto de a palavra ser nada, podemos brincar com ela, não há nada de profundo ali, só a emoção onde o diálogo acontece é profunda

não podemos amar enquanto pessoas, o amor é contemplação e essa emoção não se torna viva senão na ausência de um "eu". quando pretendemos amar, rebaixamos o outro ao nosso imaginário e ao nosso fantasma, é uma forma de agressão - utilizamos o outro, a imagem que temos do outro, para satisfazermos a nossa vaidade, a nossa fantasia do instante e, quando o outro já não é o mais conveniente, trocamo-lo.

aquilo que fazemos aqui faz ressonância a pouca gente. a maior parte das pessoas tem necessidade de um ensinamento, de um guru, duma tradição que possa seguir. aqui, não encontramos nada disso. não há guru, ensinamento, nada vos é pedido. regressarão a casa isentos de qualquer acréscimo ou competência. pouca gente tem a capacidade, maturidade ou o grau de loucura para gastar tanto tempo para nada

porém, esse nada, num dado momento, permanecerá convosco para sempre. todos os ensinamentos que podemos aprender, iremos esquecê-los. todas as técnicas que desenvolvemos, um dia deixaremos de poder praticá-las. deixaremos de poder referenciar-nos a tudo o que foi elaborado pelo pensamento e que nos pareceu tão importante, porque o nosso cérebro, o nosso corpo, deixarão de o permitir

esta emoção, contudo, vai ficar - acompanhar-nos-à no nosso leito de morte, quando todos os outros sentidos pararem de funcionar. ela é o coração das coisas. tudo o resto é distracção, superficialidade

é indispensável que desperte em nós essa total incapacidade de ser preenchido por o que quer que seja. enquanto um sorriso, um olhar, um amor, uma carícia, uma situação me podem contentar, permaneço indigno da questão profunda, da escuta profunda - porquê? - porque não é verdade! nada pode satisfazer o coração do ser humano, que não seja o seu próprio desmoronamento. a certa altura, chega-nos a graça de não poder continuar a ser satisfeito por um objecto. essa não satisfação é o reservatório de energia que permite essa interrogação constante, em que contemplo, a cada instante, a minha pretensão, a minha arrogância, o meu sofrimento. contemplo-as numa total abdicação de qualquer intenção de as mudar

na exacta medida em que transportamos ainda em nós a capacidade de nos satisfazermos e tranquilizarmos através de um automóvel, uma mulher, um cão, uma profissão, um futuro, um passado, um saber, uma espiritualidade, um ensinamento, ainda não há esse ardor indispensável à explosão daquilo que deve rebentar. essa total loucura de insatisfação é a energia necessária à explosão daquilo que em nós é superficial

entretanto, há momentos em que pressentimos profundamente que aquilo que procuramos não é isto nem aquilo; depois, "isto ou aquilo" enfeitiça-nos e eu digo que viver é maravilhoso e, aí, traio em mim a busca profunda. não se trata de uma traição moral mas de uma traição energética, porque a energia deixa de ficar disponível para essa loucura constante e é da intensidade dessa loucura que depende aquilo de que falamos aqui

essa energia não fica disponível senão na insatisfação permanente mas que deixa de ser insatisfação, porque chega uma altura em que o dinamismo de nos encontrarmos numa situação desaparece

podemos dar graças às situações, porque a vida é maravilhosa; a cada instante encontramos o novo, colocamos a mão por cima e acontece como o açúcar na água, deixamos de poder apropriar-nos de o que quer que seja. é um momento muito delicado, um pouco como o fio da navalha... tenho apenas direito a contemplar

na sua maior parte, os que me rodeiam continuarão, provavelmente, a sentir necessidade de garantirem a sua própria segurança, inventando-me desta ou daquela forma... mas, a certa altura, deixamos de poder concretizar-nos nas situações, o que não nos impede de irmos fazendo aquilo que temos a fazer: se temos filhos alimentamos os filhos, se temos amigos convivemos com os amigos, se temos uma cama fazemos a cama...sem qualquer dinamismo no sentido de nos encontrarmos nessas actividades

isto poderá parecer um pouco frio, num certo nível, mas, pelo contrário, é tremendamente caloroso, é uma loucura discreta, da qual só os mais íntimos se apercebem. porque deixamos de poder pertencer ao que quer que seja, a própria expressão "pertença" esvazia-se de sentido

a necessidade de ser qualquer coisa vem da pertença

aqui, não há segurança. a certeza vem de um saber mas aqui falamos de um não-saber, profundamente desconfortável para a pessoa, enquanto personalidade e para os que a rodeiam - quando lhes dizemos: "não posso fazer nada por ti, absolutamente nada" para muitos, trata-se de um grande choque. a pessoa deixa de poder representar um papel, o que pode acarretar, em seu torno, quer um amadurecimento, quer o desencadear de crises psicológicas

não podemos conservar uma segurança visando a não segurança: sinto-me pronto a largar todas as minhas referências? a deixar a minha raça, o meu nome, o meu país, a minha família, os meus filhos, o meu carro, a minha casa, o meu corpo, tudo o que eu possa chamar "meu"? estou disposto a não me apropriar de mais nada, nem do meu passado, nem do meu futuro, nem das minhas emoções? estou disponível para contemplar sem expectativa?... está tudo disponível no instante. não há necessidade de "sadhana", de busca espiritual. não há necessidade de nada. apenas, no instante imediato, sacrificar as nossas pretensões a ser o que quer que seja.

quem está livre para não ter nada?

aquilo que numa dada época nos fazia felizes, mais tarde deixa-nos indiferentes. mas não se trata de algo que possa ser provocado. enquanto continuamos satisfeitos por termos um automóvel vermelho, uma mulher loira, um corpo equilibrado, um futuro, um passado, uma raça, um país, há que vivê-lo. um dia, todas essas coisas deixarão de significar o que quer que seja para nós

mas, sobretudo, evitar tentar não ser nada, senão transformamos uma pura constatação num conceito como qualquer outro. evitemos tornar-nos um desses famosos "iluminados" da califórnia ou outros, afins, cujo obscurecimento é de tal ordem que crêem viver na claridade

não ser nada não é uma qualidade mas uma constatação. portanto, "não posso pretender ser alguém" - a pretensão está em ser o que quer que seja. não se trata, portanto, de decidir não ser nada. um belo dia, deixamos de pretender ser napoleão, não teremos mais necessidade de nos sentirmos a existir como "coisa", para viver. isto "vem", naturalmente, pelo que, não se trata de substituir uma ideia pela outra: "sou nada! sou ninguém"! - temos outra fantasia!

nada querer obter, não ambicionar iniciação, transmissão, ensinamento: tudo isto me embaraça, me tolhe, me encerra. não, não desejo nada - aí, referencio-me ao espaço, à ressonância

dar sem haver pessoa que dá. quando dou, descondiciono-me. dar, traz liberdade. a vida não é senão dádiva, não há separação

enquanto quero alcançar, receber, seguir um ensinamento, não posso senão recusar esse ensinamento que tenho a pretensão de desejar. como alguém que solicita uma iniciação, que reclama um presente. uma oferta não se exige, fica-se, simplesmente, disponível a ela. a iniciação, o ensinamento, o presente, acontecem na nossa disponibilidade. não há nada a ambicionar. na não cobrança, recebe-se tudo. quando ambiciono digo não

o mesmo para a compreensão: não há nada que possamos compreender. a clareza apresenta-se apenas na ausência da pessoa. logo que afirmo "compreendi", "caio na sopa". é como dizer: "sou iluminado" - é um emprego rentável, mas não mais que isso

a compreensão não traz nada. nada pode ser compreendido. nada precisa de análise. interpretar é uma fantasia. na verdade, basta deixar de projectar constantemente a não-compreensão

o professor é uma caixa de ressonância. quando ele nos encontra, ou é tocado pelo nosso perfume, pressente um certo número de ritmos, de movimentos, de sensibilidades. essa ressonância, essa vibração, sugere-lhe que faça a transmissão de atitudes que participam dessa mesma família vibratória

quando concretizamos as técnicas que nos foram transmitidas, o facto de ele ter colocado a tónica sobre a nossa sensibilidade mais que na aquisição de o que quer que seja, faz com que essa ressonância técnica se traduza de forma diferente na prática de cada dia

se o aluno tenta, pelo pensamento, lembrar-se da técnica que foi transmitida, vai dissociar-se dessa ressonância e não fará mais que reproduzir um esquema por memória. aquilo que proporciona uma segurança psicológica acarreta um adiamento da verdadeira clareza, procurar o que quer que seja numa actividade não pode senão remeter-nos ao nosso marasmo

inversamente, aquele que, livre de intenção, deixa ressoar em si a atmosfera, mais que a técnica que lhe foi transmitida, cada vez que se disponibiliza tem um contacto profundo com a corrente de vida onde professor e aluno se encontram eternamente unidos, onde a técnica não é mais que um suporte para permitir essa descoberta. suporte, também, ao entendimento de que a técnica é a expressão directa dessa ressonância

apercebemo-nos de que não há nada de pessoal na vida. por isso, em tempos idos, as obras não eram assinadas - ninguém se tomava a si próprio como criador. só deus, ou a vida, eram reconhecidos como criadores. e esses criavam, através das mãos, do pensamento ou da palavra. sem apropriação

podemos senti-lo, claramente, nos sermões de meister eckhart: ele nunca afirmou conhecer a verdade, dizia apenas que a verdade, que o atravessava, vinha directamente do coração de deus. sem se pretender alguém ou alguma coisa em particular, ele foi o instrumento perfeito. oriundo directamente da perfeição, o seu discurso pode ser considerado como revelação. porque ele se perdeu a si próprio completamente, deus pôde falar através dele

a prática do yoga, os múltiplos exercícios que existem, servem-nos para fazer a transposição desta mesma constatação para um plano sensorial. este pressentimento, esta abertura face à vida, vai-nos tornando mais disponíveis. nessa disponibilidade, pode acontecer o encontro com uma corrente de investigação, o próprio yoga poderá revelar-se

mas aquilo de que necessitamos está sempre presente, junto a nós. as técnicas que participam desta investigação fazem ressonância apenas àqueles que vivem essa intimidade com o momento presente

para poder receber estes suportes o aluno deve estar livre de expectativa, de cobrança. aquele que quer ser ensinado não tem capacidade de receber. a cobrança vai-se apagando, pouco a pouco, substituída por uma escuta não orientada, sustentada pelo professor. uma relação única, impessoal mas mais íntima que qualquer outra, vai-se instalando. o aluno está presente, sem exigência. essa espera sem expectativa é o espaço no qual a transmissão se concretiza. nada de objectivo é transmitido mas há transmissão, "entrada na via". estes momentos de intimidade, amiúde surgidos no silêncio, são o fermento da revelação

encontrar um grande guru não serve para nada. é sabido o quanto imensas pessoas cortejaram jean klein ou nisargadatta maharaj e continuaram miseráveis

a atitude de escuta perante a vida permitirá igualmente a escuta nestes encontros. numa não expectativa, eles podem florescer, a vida expandir-se. mas se procuro, não escuto. posso acumular encontros maravilhosos, continuarão a ser uma mera colecção

a busca espiritual é uma fuga

vamos descobrindo também que não há sabedoria. há que respeitar quem tem "experiências espirituais" mas isso não nos diz respeito. o que pode ser "experimentado" deixa-nos indiferentes. o que nos assiste é a luz por trás das experiências. chega uma altura em que chegamos a desenvolver uma espécie de repulsa face ao que pode ser experimentado

todas as experiências são mentais e aquilo que está para lá do mental não se experimenta. a escuta não se pode objectivar. o dinamismo abandona-nos

num outro plano, podemos constatar que há patamares de defesa que vão caindo. damo-nos conta de que hoje alguém nos insultou, ou nos criticou desta ou daquela forma e que nos apercebemos do quanto essa pessoa não podia fazer outra coisa, o quanto, segundo o seu ponto de vista, ela tinha razão. apercebemo-nos de que há dez anos a teríamos estrangulado pelo facto, há cinco teríamos ficado deprimidos e que hoje simplesmente escutámos...

a este nível, sim, podemos constatar uma forma de progressão - uma progressão da nossa ausência de imaginário. não nos sentimos atacados, postos em causa, agredidos pelo acontecimento. a ocorrência tornou-se neutra para nós, enquanto que antes poderia ter provocado um drama

podemos constatar este tipo de mudança - antes, quando ouvíamos falar de um sábio, não podíamos impedir-nos de ir vê-lo. hoje em dia, falam-nos de um sábio e nós ficamos tranquilamente com a nossa cana de pesca. deixamos de ser movidos pelo dinamismo de ir ouvir quem quer que seja. compreendemos que tudo o que temos a escutar é a nós próprios. não há mais nada

quando ouço falar de um mestre espiritual, posso sentir uma forma de alegria - porque é maravilhoso que haja pessoas que param de se queixar. mas deixa de haver o mínimo dinamismo no sentido de ir ao encontro de qualquer coisa ou qualquer pessoa. fazê-lo para quê? quem é que me pode dar o meu silêncio? quem é que me pode dar a visão? nada. ninguém

esta transformação que vou constatando em mim não é uma progressão: é uma perda de imaginação. ficamos com cada vez menos imaginação. ansiamos menos e menos. ficamos mais e mais presentes, sem intenção. mas não se trata de uma progressão por acumulação. numa dada época, quando uma mulher passava diante de nós instantaneamente surgia o pensamento de que esta poderia ser a mulher da nossa vida. presentemente, uma mulher passa diante de nós: é uma mulher a passar diante de nós, sem mais imaginário. não criamos nada com o acontecimento. o acontecimento é o que é

porém, quando o deixamos livre, o acontecimento é mágico - porque não há nada que não seja extraordinário. e não há nada que seja mais particularmente mágico porque tudo é mágico. a riqueza, a essência de todas as coisas encontra-se nas situações, nos objectos, nos gestos mais banais ou tidos como tais. mas pela sua mesquinhez, carácter repetitivo, complicado, vulgar, a minha imaginação impede-me de ver a beleza. repito constantemente os mesmos esquemas. estou sempre a cobrir as mulheres com as mesmas referências, as mesmas expectativas, as mesmas necessidades. cubro os automóveis e os mestres espirituais da minha exigência infantil: encontrar-me neles

a imaginação é miserável. quando ela se reduz, descobrimos que a mais pequena coisa contém o essencial, que ela é extraordinária, como uma flor. ao invés, a imaginação disseca a flor e rouba-lhe o perfume, como se a embalsamasse

de qualquer forma, a máscara revela sempre o que está por trás da máscara, portanto, o imaginário não é gratuito. não existe imaginário. está tudo certo. é apenas por razões pedagógicas, da mesma forma como nos dirigimos a uma criança, que falamos de coisas pessoais ou impessoais, de actos espontâneos ou intencionais, de imaginário ou de realidade

não me interessa se o conflito é imaginário ou não, ele é, antes de mais, vivido e sentido. deus não cometeu erros que me caiba vir reparar. tenho necessidade de todos os meus conflitos. reivindico as cicatrizes que transporto comigo. ninguém tem o direito de mas retirar. elas partirão quando tiverem que partir... este respeito permite uma profunda transformação. pretender rectificar os problemas com os meus pais, a minha mulher, o meu corpo, o meu passado, etc, é interminável...

não é o que eu escuto mas o próprio escutar em si que me tranquiliza

o ser humano deve olhar, é o estádio último


"all the human being can do is wonder and marvel"

meister eckhart


quando paro de pretender compreender, sobrevém uma compreensão não conceptual. vemos como os animais, a natureza, os objectos, estão para lá de um "sentido". estão de tal forma para lá de um sentido, que eles são uma ressonância, são eflúvios da verdade. a contemplação do nascer do sol, do movimento da lua ou de uma nuvem, do deslizar de um pato num lago, aniquila qualquer ideação. o mundo inteiro revela-se perante nós. toda a beleza, violência e tranquilidade do mundo são expressas ali

nessa paz, o segredo das coisas apresenta-se. não é um segredo conceptual. a alegria está inscrita em todas as coisas.

nesse momento, toda a minha juventude, a minha educação, as minhas loucuras, ganham um sentido. compreendo, duma maneira não mental, porque bebi tantas cervejas, li tantos romances ou tive, tantas vezes, a pretensão de ter sido abandonado. porque tive tanta necessidade disto ou daquilo, de amor e compreensão. todos os meus mecanismos vêm à superfície e eu reivindico-os, não quereria, por um instante sequer, ser um milímetro diferente do que fui, porque tal não seria a realidade

essa total aceitação das minhas características é uma constatação que se situa além de quaisquer características. a luz que as ilumina revela-se através delas. quando olho verdadeiramente, tudo faz sentido. um sentido informulável, para lá de qualquer sentido. o verdadeiro sentido é morrer. não há outro

"the meaning of life is that it stops"

f. kafka


sobre o suicídio:

há que aceitá-lo, se uma pessoa já não consegue defrontar-se com a vida, não tem escolha. há quem não tenha essa capacidade. não podemos manter uma pessoa viva a qualquer preço, torna-se uma obstinação terapêutica. se o suicida estiver ao alcance da nossa ajuda, trar-lhe-emos suporte, evidentemente. mas o suicídio não é um fracasso médico. fazemos o que podemos. há seres que precisam de passar por vivências de uma certa complexidade

a semana contra o suicídio é um símbolo típico da hipocrisia da nossa sociedade moderna, tal como o dia das mulheres, das mães, das crianças, dos cães, dos deficientes ou contra a violência. estes acontecimentos mediáticos apresentados como filosofia democrática de bom tom não servem senão para proporcionar boa consciência a uma sociedade que, por arrivismo económico, recusa trazer à luz do dia os seus mecanismos internos

ser feliz por viver não é mais escolha que renunciar à vida. aquele que consegue levantar cento e vinte quilos não é superior àquele que não o consegue fazer. aquele que não consegue estar à altura de vivenciar a investigação que é estar vivo, não se demite, apenas vive, claramente, o seu limite

sobre os limites:

vou a um museu, examino a porcelana chinesa ou coreana duma determinada época e, de repente, apercebo-me de que não consigo realmente ver nada, dou-me conta de que há todo um mundo de referências naqueles objectos que outras pessoas, mais habilitadas, poderiam apreciar, mas que não me é acessível. reconheço a minha incompetência artística, intelectual, sensitiva

na prática do yoga ou da dança, constatamos, igualmente, que certos movimentos não nos são convenientes. é assim! - não temos que nos sentir diminuídos pelo facto. não tenho que ficar contrariado pelos limites do meu corpo, ou da minha inteligência. não tenho que ser receptivo à porcelana chinesa ou ficar condicionado pela ideia de que o meu corpo deveria fazer isto ou aquilo... aceito as minhas incapacidades e, ao respeitá-las, elas tornam-se bastante elásticas

se eu tiver oportunidade de ir contemplar a porcelana chinesa com um apaixonado por essa arte, poderei, ao meu nível, começar a apreciar igualmente as suas qualidades extraordinárias. só o amor tem poder de transmissão, ele traz vida ao olhar daquele que admira e ao que o rodeia. aí, então, conforme as minhas capacidades, vai acontecendo em mim uma ressonância e a descoberta começa. mas se eu for observar junto de alguém que apenas aprendeu coisas, um intelectual, a minha percepção permanecerá superficial. há que apreender uma arte com um amante dessa arte, apreciamos melhor a música na companhia de um músico...

o que é que há de mais intenso que a sensação do instante? - constatar a que ponto a tento denegrir, pensando que qualquer coisa lhe é superior... a qualificação da incontornável intensidade do instante como "não intensa" protege-me dele, como se dissesse "não sinto a minha mão" - é apenas a codificação verbal que utilizo para descrever a sensação que efectivamente até tenho... da mão

não podemos ver a claridade, apenas podemos ver a obscuridade e, quando a vemos, ela desaparece: quando iluminamos a escuridão ela deixa de existir

não podemos ver a luz, daí que, no islão, não exista a representação do "último" e a abordagem directa seja definida como a "via pela negativa" - ver em mim o limite é o não-limite. quando me apercebo da arrogância que me habita, essa visão é humildade. a pretensão de humildade não é senão arrogância. não posso ver senão a minha arrogância. essa visão absorve o que é visto. a arrogância torna-se, então, a porta para essa humildade em que não existe a pessoa humilde

não podemos apropriar-nos de nada, tornar-nos qualquer coisa, ser qualquer coisa

seria necessário ser poeta para poder expressá-lo melhor...

não somos proprietários dessa palavra. é o poema que inventa os poetas e não os poetas que inventam os poemas

o poema sonha os poetas...

sobre a morte:

esqueçamos a morte e dêmo-nos claramente à vida. quando se proporciona sentir o medo da morte, agradecê-lo. se o experimentarmos agora, não teremos que o sofrer mais tarde, no nosso leito de morte. deixemo-la falar-nos sensorialmente. na verdade, não temos medo, sentimos o medo, que se vai, pouco a pouco, esvaziando. quando nos acontece ter medo, se tentamos minimizá-lo, por esta ou por aquela técnica, fugimos dele cada vez um pouco mais e ele virá ter connosco no momento da morte

viver disponível. a morte torna-se um não acontecimento e deixamos de pensar nela. não é necessário qualquer tipo de conhecimento

evitar ler o livro tibetano dos mortos. não adiemos a vida preparando-nos para a morte. não são necessários padres nem conhecimentos esotéricos. é inútil entrar em fantasmagorias religiosas ou culturais. se vos parecer indispensável, façam-no, mas com a noção clara de se tratar de uma fantasia

morrer para as nossas expectativas, angústias, inquietudes: é essa morte que é importante. se essa morte se corporizar em nós, dar-nos-emos conta de que a reflexão sobre a morte do corpo deixa de surgir

quanto mais informação tivermos sobre a morte, mais inquietos nos tornaremos. a nossa cultura é localizada na nossa memória e é bastante provável, conforme a idade com que morrermos, que a nossa memória seja afectada pelos anos. face à degenerescência do cérebro, todas as aquisições que foram sendo acumuladas, o que fomos lendo, as técnicas e experiências românticas às quais nos fomos prestando, deixarão de estar acessíveis e, portanto, quaisquer preparações são inúteis

não há nada a saber. a disponibilidade para o presente acompanha-nos, naquilo que é importante

todas as reflexões que podemos desenvolver sobre o assunto não passam de uma memória, um amontoado de referências captadas através da televisão ou no acompanhamento de pessoas próximas que foram morrendo. e é com base neste somatório de noções distorcidas que vamos basear a nossa própria ideia da morte

esqueçamos o grande mestre, o lama, todos os que nos poderiam assistir. solitário, numa sarjeta ou numa cama de hospital, morrer tranquilamente. nem padre, nem assistência nem família em pranto: sem qualquer necessidade de estar acompanhado. morrer, simplesmente, como vivemos. livremente

se aqueles que vos rodeiam, consternados, estiverem lá, há que aceitá-lo, igualmente. se, em virtude do seu "mau karma", um lama tibetano é levado a querer vir ajudar-vos, ou um padre católico bendizer-vos deixá-los fazê-lo, visto necessitarem dessa acção para a sua própria sobrevivência psicológica. a sua agitação ritualizada permite-lhes adiar o seu próprio medo. estas acções psicopatas não vos assistem, em nada

nada vos pode ajudar, porque nada é necessário - e é maravilhoso!

como pela noite: o corpo morre no sono, o pensamento desaparece, a percepção elimina-se... as pessoas contentes por nos verem partir podem descansar. e as que ficam tristes deviam ser proibidas de estar presentes à cabeceira do moribundo. ficar aflito é uma falta de respeito, uma falta de amor. os vossos verdadeiros amigos regozijar-se-ão quando souberem da vossa morte... mais uma vez, ressalvo que aquilo que é dito aqui não é apropriado para qualquer pessoa...

o yoga é a arte de morrer. ao trabalhar corporalmente, aprendemos a morrer. e não me refiro ao facto apenas do ponto de vista simbólico, mas de forma efectiva. aprendemos a morrer, aprendemos a viver, é a mesma coisa

portanto, esquecer tudo isto: saír deste encontro como um cão que viu um osso e a quem o retiramos antes de ele conseguir cravar-lhe os dentes. é esse sentimento que se situa imediatamente antes da frustração que importa guardar. a sensação da boca vazia é uma não conclusão, um espaço onde ressoa a nossa liberdade